sexta-feira, 30 de março de 2018

A HOMOSSEXUALIDADE DE FERNANDO PESSOA





Comecei a ler o livro Homossexualidade e Homoerotismo em Fernando Pessoa, de Victor Correia. Quase 500 páginas compactas. A obra inclui uma introdução de 100 páginas e cerca de 400 páginas de transcrições dos livros hoje publicados de Pessoa (ortónimo, heterónimos, semi-heterónimo e pseudónimos) e de manuscritos existentes no espólio da Biblioteca Nacional.

Do pouco que já li, infiro que o autor está plenamente convencido da homossexualidade de Fernando Pessoa, ainda que o poeta possa não ter passado do pensamento ao acto. O que é duvidoso, ainda que possível.

Desde que mergulhei, há muitos anos, na obra de Pessoa, que, aliás, não conheço integralmente, sempre estive convicto de que o autor de Mensagem era homossexual. O trabalho exaustivo de Victor Correia, agora dado à estampa, vem confortar-me nessa convicção.

Não haverá, na infinidade de papéis de Pessoa, algum manuscrito que comprove uma prática homossexual? Ainda existem, hoje, centenas ou mesmo milhares de papéis por exumar. Ou dar-se-á o caso de se terem ocultado alguns escritos para "salvaguardar a sua imagem"! Tudo é possível.

Vou prosseguir a leitura do livro.

terça-feira, 27 de março de 2018

D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO OCASO DO ANTIGO REGIME (III)

 


Concluímos, com a publicação da 3ª parte, a apresentação do texto da conferência do embaixador Fernando Ramos Machado, na Sociedade de Geografia, em 20 de Março passado:



Na verdade, a vida do Grão-Priorado do Crato parece seguir o seu rumo próprio, sem aparecer afectada por qualquer ingerência russa. Registam-se, aliás, alguns desenvolvimentos de relevo.

A 6 de Novembro, seis dias antes do ofício triunfalista do Ministro russo em Lisboa, o Príncipe Regente enviara ao Grão-Priorado o Regulamento Provisional que ele apresentara a Hompesch e que este, como vimos, aprovara em Maio, dois meses antes de resignar. Com este diploma, procurava-se ultrapassar o impasse criado pela desestruturação dos organismos centrais da Ordem, no seguimento da ocupação da Ilha pelos franceses. Era criado, na Corte, um Tribunal do Venerando Priorado de Portugal, que substituía a Assembleia da Língua de Castela e Portugal, que, anteriormente, funcionara em Malta, enquanto, numa fórmula que já encontrámos, se esperava “um feliz resultado de circunstâncias, em que seja estabelecida a Religião de Malta na sua antiga independência e unidade”. A primeira reunião teve lugar, a 11 de Novembro, no Palácio da Bemposta. Como Presidente do Tribunal, foi nomeado o Bailio de Acre e Fregim, Rodrigo Manuel Gorjão, como “anciano”, isto é, o Cavaleiro mais antigo.

A 27 de Novembro, D João comunica ao Grão-Priorado que, por motivos políticos, não poderia usar a Cruz da Ordem, que lhe fora oferecida, permitindo, porém, que seu filho, o Infante D. Pedro, a recebesse. Quais seriam os motivos políticos, invocados pelo Regente? Acharia, porventura, que não deveria acumular a Chefia do Estado com a Chefia do ramo de uma Ordem religiosa? Escrúpulos que, no outro extremo da Europa, Paulo I não teve.
 
 
Palácio dos Grão-Mestres da Ordem de Malta, em La Valetta

A 14 de Dezembro de 1799, D. Pedro, com pouco mais de um ano de idade, recebeu, das mãos de Frei Francisco de Carvalho Pinto, Gão-Prior de Hibernia, a insígnia de Grã-Cruz, marcando a sua instalação e reconhecimento como Grão-Prior hereditário do Crato. Essa dignidade cabia-lhe, já que era filho secundogénito, mais novo três anos que seu irmão D. António. Na menoridade de D. Pedro, seu pai seria Administrador do Grão-Priorado.

A Ordem de S. João de Jerusalém e a Ilha de Malta continuavam, entretanto, a ser objecto de disputas. Ainda em 1798, a Marinha inglesa, sob o comando de Nelson, impõe um bloqueio à Ilha. A Rússia tentou, em vão, assumir o domínio de Malta, quer fomentando uma revolta interna, quer aliando-se a Nápoles. Os franceses vieram a render-se, a 4 de Setembro de 1800. Os ingleses contaram, em dois períodos, com o apoio de uma Esquadra portuguesa, sob chefia do Marquês de Niza, tendo a sua actuação merecido os maiores elogios. Não deixa de ser tristemente irónico que, no ano seguinte, Portugal tenha sido “persuadido” a aceitar a ocupação da Madeira, por forças inglesas.

Um acontecimento imprevisto veio alterar substancialmente a situação na Europa – a 23 de Março de 1801, Paulo I era assassinado. Alexandre I retomou o título de Protector da Ordem de S. João de Jerusalém, mas procurou pôr termo à situação irregular em que seu pai a colocara. Desistiu de pretensões sobre a Ilha e, não pretendendo ser Grão-Mestre, devolveu aos Cavaleiros a escolha do seguinte. Na impossibilidade, dadas as circunstâncias, de reunir um Capítulo Geral, foi decidido um procedimento excepcional, submetendo-se ao Papa uma lista de nomes apresentados pelos Priorados (dela constando os portugueses Rodrigo Manuel Gorjão e Francisco Carvalho Pinto, já aqui mencionados). Pio VII acabou por escolher, em Fevereiro de 1803, Giovanni Battista Tommasi.

O Tratado de Amiens, de 17 de Julho de 1802, entre França e Inglaterra, reconhecia o direito da Ordem à Ilha de Malta, sob a alta protecção do Rei das Duas Sicílias, mas os ingleses nunca cumpriram. Quando o Grão-Mestre Tommasi manifestou vontade de se dirigir para Malta, não foi autorizado, pelo que ficou na Sicília (primeiro Messina, depois Catânia). Quando morreu, em 1805, Pio VII considerou não estarem reunidas as condições para a eleição de um Grão-Mestre, pelo que, até 1879, a Ordem de Malta foi dirigida por lugar-tenentes.

O Czar encerrou o “episódio russo” da Ordem de Malta, confiscando, em 1810-1811, as propriedades dos dois Grão-Priorados Russos, católico e não-católico, e confirmou, em 1817, a sua completa dissolução. Todas as associações que, actualmente, se apresentam como Ordens de Malta, reivindicando uma qualquer filiação russa ou ortodoxa, são de fantasia, não assentando em nenhum fundamento histórico ou jurídico.

Foram sendo formuladas alternativas, para proporcionar uma base territorial à Ordem. Ainda no final do Séc. XVIII, um Bailio alemão sugeriu a fusão daquela Ordem com a Teutónica (como, séculos antes, se havia ponderado uma fusão do Templo e do Hospital), a sua instalação em Ilha adriática pertencente aos Habsburgos e a criação de uma Língua Russa, aberta aos gregos desejosos de lutar contra o Império Otomano.

Em 1806, Gustavo IV da Suécia que, numa visita a S. Petersburgo, havia, de Paulo I, recebido a Grã-Cruz, veio colocar, à disposição da Ordem, a Ilha de Gotland, no Báltico, que, na Idade Média, chegara a ser momentaneamente ocupada pela Ordem Teutónica. A oferta foi declinada, pois os Cavaleiros ainda conservavam a esperança de recuperar Malta.                                                                          
Em Novembro de 1807, o Príncipe Regente, a Família Real e grande parte do escol dirigente partem para o Brasil, quando as tropas invasoras napoleónicas já tinham entrado em Território português. Nove anos antes, ao ocupar Malta, Napoleão não quisera aprisionar os Cavaleiros, que preferiu expulsar. Agora, Junot via frustrada a sua intenção de aprisionar o Príncipe Regente, colocando-o numa posição idêntica à de Carlos IV e do futuro Fernando VII de Espanha. Napoleão não abolira a Ordem de Malta, mas esta, sem Território e desestruturada, mantinha apenas uma sombra da sua Soberania. Napoleão podia decretar que a Casa de Bragança deixava de governar pois, no Brasil, o Príncipe Regente mantinha a base territorial da Soberania portuguesa.

 
Co-Catedral de S. João, em La Valetta

Com a queda de Napoleão, o Congresso de Viena ocupou-se em reorganizar a Europa. Portugal teve uma participação condigna naquele encontro, admitido no círculo das oito principais Potências. Já a ordem de Malta não conseguiu fazer ouvir a sua voz. Apresentou um memorial aos Soberanos e Plenipotenciários, no qual figura a seguinte passagem: ”Tendo a Ordem sempre beneficiado da alta protecção do Príncipe magnânimo que governa Portugal, podemos recear a perda das Comendas que foram conservadas pelo Priorado com tanto zelo e vigilância?” É confiança que se exprime, mas não isenta de dúvida. Com modéstia, afirma-se, no documento, que não cabe à Ordem, mas aos Soberanos, designar o local dum futuro estabelecimento, mas adianta-se que não deveria ser muito longe do centro do Mediterrâneo, ter um porto seguro e capaz de acolher todos os navios, bem como espaço para um arsenal, um lazareto, uma igreja, um hospital “ essência da nossa instituição”. Acrescentava ainda: “A Ordem não pede grandes coisas, mas o estabelecimento tem de ser independente e livre”.

Dois protagonistas do Congresso de Viena, Metternich e Talleyrand, tinham planos relativamente à Ordem de Malta. O primeiro sugeria que lhe fosse dada a Ilha de Elba, mas punha a condição de os Habsburgos terem o direito de nomear os Grão-Mestres. Já Talleyrand, nas instruções que redigiu para os Embaixadores franceses ao Congresso, afirmava que seria honroso, para a Inglaterra, juntar-se às Potências católicas, para obter uma reparação para a Ordem, à qual se “poderia atribuir Corfu, sem comprometer os interesses de nenhum Estado da Cristandade”. Mas, nem no Congresso de Viena nem, anos depois, no de Verona, a Ordem de Malta haveria de conseguir obter uma base territorial.

Em 1823, no quadro da luta dos gregos pela independência, houve um projecto, de contornos pouco claros, visando restabelecer a Ordem na sua antiga posse sobre Rodes. Chegou a haver diligências e negociações, mas a iniciativa acabou por fracassar.

Em 3 de Julho de 1821, chamado pela Revolução Liberal, D. João VI estava de volta a Portugal, deixando seu filho D. Pedro no Brasil.    

Por cartas de Janeiro de 1824, dirigidas ao Marquês de Palmela, Ministro dos Negócios Estrangeiros, Frei António Busca, Lugar-Tenente do Grão-Mestrado, oferece ao Rei e ao Infante D. Miguel, futuro Grão-Prior do Crato, a Grâ-Cruz da Ordem, em sinal de regozijo pelo regresso do Brasil da Família Real. D. João, que um quarto de século antes, declinara ostentar a Grã-Cruz de Malta, invocando motivos políticos, recebia-a, agora, a 12 de Janeiro, em cerimónia no Palácio da Bemposta. Mas, diferentemente do que ocorrera, em Dezembro de 1799, com D. Pedro, a insígnia não pôde, nesta ocasião, ser entregue a D. Miguel, que se encontrava em Viena, no seu primeiro exílio.

 
Paço da Bemposta

D. João VI faleceu naquele mesmo Palácio, a 10 de Março de 1826, muito provavelmente vítima de envenenamento. Vivera no ocaso do Antigo Regime, do qual, ele próprio, em certa medida, era também a imagem. Tendo reinado em dois Continentes, atravessou duas vezes o Atlântico, algo que, jamais, nenhum Monarca europeu fizera. E, entre todos os Reis portugueses, foi o único a ter sido, no decurso da sua vida, Rei absoluto e Monarca constitucional. Grão-Prior do Crato, seguiu atentamente as vicissitudes da Ordem de Malta, num período atribulado.

Seus filhos, D. Pedro e D. Miguel, que também assumiram a dignidade de Grão-Prior do Crato (VII), também reinaram, um como Monarca constitucional, o outro como Rei absoluto. Uma guerra civil, duplamente fratricida, dividiu o País e, só no final dela, se pôde considerar abolido, definitivamente, o Antigo Regime, em Portugal. Em Junho de 1834, D. Miguel parte para o segundo exílio, menos de quatro meses depois, falecia D. Pedro IV. No quadro do Decreto de 30 de Maio desse ano, que extinguia as Ordens Religiosas, o Grão-Priorado do Crato fora abolido e, até ao fim do século, não haveria presença da Ordem de Malta em Portugal.

Mas, nesse mesmo ano, 1834, a Ordem de Malta fixava a sua Sede em Roma, onde ainda hoje se encontra, em instalações que beneficiam da extra-territorialidade. Terminava, assim, a errância que, desde 1798, levara a Ordem, de Malta, a Trieste e S. Petersburgo, Messina, Catânia e Ferrara. Era também o termo de uma peregrinação, começada em Jerusalém quase 800 anos antes Despida do carácter militar que, durante séculos, assumira tão gloriosamente, a Ordem regressava ao seu propósito inicial, humanitário, ao serviço dos pobres e dos doentes.

* * * * *

 (I) Por uma aparente ironia, não incluo, neste número, aquele que ficou, na História Portuguesa, como “o” Prior do Crato, D. António, sendo a razão para tal a circunstância de não ser consensualmente reconhecido como Rei de Portugal.

(II) A designação oficial é, actualmente, Ordem Soberana Militar Hospitalária de S. João de Jerusalém, de Rodes e de Malta.

(III) Outros cargos eram os de Grão-Preceptor (Provença), Grão-Marechal (Auvergne), Grande Hospitalário (França), “Drapier” (Aragão), Almirante (Itália), “Turcopilier” (Inglaterra),  Grão-Bailio (Alemanha).

(IV) Gáfete, Sertã, Amieira, Proença-a-Nova, Cardigos, Oleiros, Belver, Envendos, Gavião, Tolosa, Carvoeiro e Pedrogão Pequeno.
(V) Designadamente Leça (Bailiado), Vila Cova, Oliveira do Hospital, Vera Cruz e Portel, Oleiros, Santa Eulália da Ordem, Águas Santas, Chavão, Ansemil, Sernancelhe, Barrô, Frossos e Rossas, Rio Medo, Alvações, Freixiel, Abreiro, Moura Morta, Elvas e Montoito, Fontes, Trancoso. 

Num trabalho recente, de António Brandão de Pinho, reproduzem-se 87 Brasões autárquicos, nos quais figura a Cruz de Malta, o que ilustra bem a implantação que os Hospitalários alcançaram no Território português.

(VI) Os membros do Grão-Priorado, conforme vejo numa relação da altura, seriam 74, provenientes sempre de famílias com poder e influência. O seu número deveria ser mais ou menos constante, pois, da leitura de outras listas, verifica-se que, entre 1692 e 1775, quase 100 portugueses terão sido admitidos na Ordem de Malta.

(VII) Devo ao meu caro Colega e Amigo Dr. Paulo Santos, actualmente Conselheiro na nossa Missão junto da ONU e, anteriormente, na Embaixada em Moscovo, o ter chamado a minha atenção para esta publicação.

(VIII) Há alguma indefinição quanto às datas em que D. Pedro e D. Miguel foram Grão-Priores do Crato. Como vimos, D. Pedro foi investido naquela dignidade a 14 de Dezembro de 1799. Na capa interior da “Lista dos Cavalleiros, Freires Capellães Conventuais e Serventes D’Armas do Venerando Priorado de Portugal”, de 1800, figura um retrato do “Sereníssimo Senhor Infante D. Pedro, Grão-Prior do Crato”. A “Nova História da Militar Ordem de Malta e dos Senhores Grão-Priores della em Portugal”, de José Anastácio de Figueiredo, também de 1800, porém, é “oferecida a S.A.R. o Grão-Prior actual, o Príncipe Nosso Senhor”, isto é, o Príncipe Regente; mas D. João seria, mais propriamente, Administrador do Priorado, dada a menoridade de D. Pedro.

A “Dissertação Histórico-Jurídica sobre os Direitos e Jurisdições do Grão-Priorado do Crato”, de 1809, da autoria de Pascoal José de Melo Freire, contém uma passagem, pelo menos, que aponta noutro sentido: ”mas o Príncipe Nosso Senhor conhecendo que a ele só, como Grão-Prior na menoridade de S.A.R. o Sereníssimo Senhor Infante D. Miguel, a quem Deus prospere (…)”. Haveria plausibilidade para tal afirmação – com a morte de seu irmão mais velho, D. António, em 1801, D. Pedro tornou-se Príncipe Herdeiro. A seu irmão D. Miguel, nascido em 1802, caberia a titularidade da Casa do Infantado e do Grão-Priorado, mas tal não se teria concretizado, em 1809, pelo que haveria um lapso na obra (aliás póstuma, de Pascoal de Melo).

Dois documentos de 1821, das Cortes Gerais, saídas da Revolução do ano anterior, afiguram-se relevantes:

Num debate, a 9 de Maio, um Deputado, que teve conhecimento que, nesse dia, iria ter lugar uma reunião do Grão-Priorado do Crato, no Paço da Bemposta, pretende que seja impedida a sua realização, ainda que a mesma contasse com autorização “de S. Majestade e do Sereníssimo Príncipe, o Senhor D. Pedro, Grão-Prior do Crato” (a votação não vai nesse sentido).

A 7 de Julho, escassos dias após o regresso de D. João VI a Lisboa, as Cortes aprovam o Decreto nº 103, cujo art.º 6 estipula “Continuará El-Rei no Administração da Casa do Infantado, consignando ao Sereníssimo Senhor Infante D. Miguel as mezadas que julgar convenientes”. Estariam, nesse momento dissociadas as duas titularidades, D. Pedro com o Grão-Priorado, D. Miguel com a Casa do Infantado.  

D. João VI manteria a Administração desta última, ou talvez de ambas, mais provavelmente, ainda, no que toca ao Grão-Priorado, quando D. Pedro decidiu ficar no Brasil e quando, pouco depois, D. Miguel partiu para Viena, no seu primeiro exílio. D. Miguel veio a assumir ambas as titularidades, após a morte de seu pai, em 1826, e até ao final do seu Reinado, em 1834.


D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO OCASO DO ANTIGO REGIME (II)





Continuação do texto da conferência do embaixador Fernando Ramos Machado, na Sociedade de Geografia, no passado dia 20 de Março:



Mas a entrada em cena do então ainda apenas General Napoleão Bonaparte, veio alterar dramaticamente a situação e trazer novas e sérias ameaças para a Ordem de Malta. Napoleão não tinha nenhuma simpatia pela Ordem, tendo-a descrito como “uma instituição para dar apoio, na ociosidade, aos filhos mais jovens das famílias privilegiadas”; por outro lado, tinha perfeita consciência do valor estratégico da Ilha. 

Ao tomar conhecimento da Convenção entre a Ordem e a Rússia, que podia ser vista como um acto hostil para com a França (tenha-se presente que o futuro Luís XVIII e a sua Corte haviam encontrado acolhimento em Mittau, nos Estados do Czar) Napoleão ordenou, em Abril de 1797, o sequestro das Comendas da Ordem de Malta nas regiões de Itália que as suas tropas então ocupavam, assim agravando, ainda mais, a situação financeira da Ordem.

O Grão-Mestre Emmanuel de Rohan morre em Julho de 1797, sendo eleito, para lhe suceder, Ferdinand von Hompesch, o primeiro alemão a ascender àquela dignidade. Para exprimir o agradecimento da Ordem, perante a generosidade de Paulo I, ofereceu-lhe o título de Protector, que o Czar aceitou, a 10 de Dezembro de 1797.

Em Junho de 1798, uma esquadra francesa, em rota para o Egipto, chega à Ilha de Malta, atacando as posições da Ordem, a qual, a 12, se rende a Napoleão, sem praticamente ter oposto resistência. Hompesch parte para Trieste No momento da rendição, estavam na Ilha 362 Cavaleiros, dos quais 260 franceses; portugueses seriam, apenas, 8. Alguns Cavaleiros regressam aos seus Países, incluindo 77 franceses, 17 acompanham Hompesch, 53 alistam-se para a expedição ao Egipto, outros acolhem-se aos Estados do Czar. Uma guarnição francesa fica a ocupar Malta.

Quando chega a S. Petersburgo a notícia da queda de Malta, os membros do Grão-Priorado Russo exprimem a sua indignação, decretando, a 26 de Agosto de 1798, a destituição de Hompesch, convidando os outros Priorados a aderir a esta decisão.

Finalmente, a 7 de Novembro do mesmo ano, o Czar vê satisfeito o sonho que há muito acalentava: todos os Cavaleiros presentes em S. Petersburgo elegem-no Grão-Mestre da Ordem de S. João de Jerusalém. Pela primeira e única vez na História, um Soberano tornava-se também Grão-Mestre da Ordem de Malta. Um mês depois, criou, ao lado do já existente Grão-Priorado Russo, católico, um novo, ortodoxo ou, mais propriamente, não católico.

 
La Valetta vista do mar

A eleição de Paulo I foi, manifestamente, ilegal, já que o Czar era leigo, casado e ortodoxo. Além disso, o Papa não fora consultado e Hompesch, em Trieste, não se demitira; acabou por fazê-lo só a 6 de Julho de 1799, forçado pelo Imperador Germânico, Francisco II, de quem, em última análise, era súbdito e para quem as relações com Paulo I se revestiam da maior importância.

O Papa, literalmente prisioneiro dos franceses, mal podia fazer ouvir a sua voz. A generalidade dos Soberanos não desejaria desagradar ao poderoso Czar de Todas as Rússias. Apenas do lado da Corte de Madrid, terá havido objecções, e não deixa de ser extraordinário que a Rússia, em 1800, no quadro das negociações visando a pôr termo às Guerras da Segunda Coligação, tenha exigido à França que lhe fosse garantida a posse de Malta e que a Espanha fosse persuadida a reconhecer o Grão-Mestrado de Paulo I.

Mas, ao nível dos Priorados propriamente, os Cavaleiros encontravam-se divididos, perante o evoluir dos acontecimentos. Alain Blondy, a grande autoridade sobre este Período, resume assim a situação: um forte Partido, dirigido pelo Cardeal-Decano Albani e agrupando os italianos, os espanhóis e os portugueses, recusou reconhecer o Mestrado dum cismático, atrás do qual se alinhavam os alemães, os bávaros e os franceses próximos de Luís XVIII. A iniciativa (…) de Paulo I conduzia a um grave cisma na Ordem. Os Cavaleiros dos Países do Sul rejeitavam um pretenso Grão-Mestre, que afastava deles a Sede da Ordem.

Portugal, porém, encontrava-se numa posição única: A 10 de Fevereiro de 1792, perante a demência que afectava D. Maria I, D. João assume a regência, embora em nome de sua mãe, até 15 de Julho de 1799, quando se torna Regente, em nome próprio. Cabe-lhe, de facto, a governação do Estado e, cumulativamente, mantém-se como Grão-Prior do Crato.

Voltando ao artigo fundamental de Maria Inês Versos, pode ler-se: “É assim que no momento de impasse criado pelos interesses dos imperadores russos, aos quais a Rainha D. Maria I e o Príncipe D. João tinham manifestado a sua solidariedade, os membros do Priorado de Portugal afirmam perante o Regente o seu apoio aos defensores do antigo Grão-Mestre Hompesch e a sua contestação perante os actos ilegais dos ditos imperadores”. (VI)

 
Castelo da Ordem de Malta, em Rhodes

Ora, do primeiro volume, de 2004, da publicação do MNE “Relações Diplomáticas Luso-Russas – Colectânea Documental Conjunta” (VII) constam alguns documentos de grande interesse para compreender esta matéria. Conjugados com outras informações, mostram-nos uma certa duplicidade de D. João, justificada pela situação. Duplicidade, aliás, a que Diplomacia portuguesa, para preservar a independência do Reino, se via também obrigada a recorrer, na mesma época, ao manobrar entre as pressões inglesas e as ameaças francesas.

Como curiosidade, veja-se que, a 27 de Dezembro de 1798, na assinatura do Tratado de Amizade, Navegação e Comércio entre os dois Países, um dos Plenipotenciários russos, o Chanceler, Príncipe Bezborodko, ostenta, entre os seus títulos, o de Grã-Cruz da Ordem de S. João de Jerusalém, isto menos de dois meses após a eleição do Czar como Grão-Mestre e imediatamente após a criação do Grão-Priorado não-católico.

Por despacho de 6 de Janeiro de 1799, o Secretário de Estado Luís de Sousa Coutinho transmite ao nosso Ministro em S. Petersburgo, Francisco José de Horta Machado, cópia da nota que escreveu ao Ministro da Rússia em Lisboa:

“Levei à Real presença de Sua Majestade o ofício de Vossa Senhoria, em data de 24 de Dezembro, com a declaração de sua Majestade Imperial de todas as Rússias, a respeito da Ordem de Malta, datada de 10 de Setembro. A Rainha Fidelíssima viu com a maior complacência o generoso interesse que sua dita Majestade se digna manifestar a respeito de uma Ordem ilustre, infeliz e oprimida, tomando-a debaixo da sua protecção, e Sua Majestade Fidelíssima, seguindo um tão glorioso exemplo, oferece ao ilustre Priorado de Portugal igual protecção nos seus Estados, esperando que um resultado feliz de circunstâncias possa restabelecer a Ordem de Malta na sua antiga independência e unidade e na posse daqueles domínios que lhe foram tão injustamente usurpados “.
  
Ao transmitir esta resposta, que afasta, com elegância mas claramente, que a “protecção” de Paulo I abranja o Priorado do Crato, o Secretário de Estado acrescenta, para exclusivo conhecimento do nosso representante em S. Petersburgo, que:

"Não devo porém omitir (…) o quanto pareceu aqui estranho que um único Priorado da Ordem se arrogasse a autoridade de depor o seu chefe, sem o concurso dos outros e sem que fosse citado ou ouvido para defender a sua causa”.

A Corte de Lisboa teria, pelo menos, dúvidas quando ao comportamento de Paulo para com a Ordem de Malta, e isto sem ter ainda conhecimento da sua eleição para o cargo de Grão-Mestre, embora a mesma já tivesse ocorrido há meses. Não quer, contudo, pôr em risco a aproximação que, desde há algum tempo vinha fazendo à Rússia, como mostra o Tratado de Amizade, Navegação e Comércio, já mencionado; adopta, pois, uma atitude prudente.

Entretanto, ao longo de 1788, depois de ter tido de abandonar Malta, Hompesch, na qualidade de Grão-Mestre e, em várias ocasiões, escrevera a D. Maria I e a D. João, pedindo, designadamente, que protestem contra a invasão da Ilha, que sejam enviados três Comendadores para Trieste, onde se encontrava, e que seja dada autorização para utilização de parte dos rendimentos do Grão-Priorado do Crato.

 
Manuel Pinto da Fonseca

A 19 de Maio de 1799, o Czar envia instruções extensas e detalhadas ao seu Ministro em Lisboa; quase no final, lê-se:

“Vossa Excelência sabe do Nosso interesse que sempre manifestámos pela Ordem de S. João de Jerusalém e ainda mais agora, desde que consentimos em aceitar o título de Grão-Mestre (…). Não queremos que Vossa Excelência intervenha, sem obter a Nossa autorização prévia, em quaisquer assuntos que digam respeito a essa Ordem em Portugal, ficando unicamente autorizado a, onde for preciso, interpretar as Nossas ideias e disposições directas, que ficam longe de atentar contra as vantagens ou benefícios de alguém”. 

Prudência, também, por parte de Paulo I.

Na véspera, 18 de Maio de 1799, Hompesch e o Convento interino, em Trieste, haviam aprovado o “Regulamento Provisional”, proposto por D. João, diploma importante, a que voltarei.

A 15 de Julho de 1799, D. João escreve ao Czar, informando-o de que assumiu a Regência em nome próprio. O Príncipe Regente enumera os seus Títulos, que são os dos Reis de Portugal desde D. Manuel e ocupam três linhas na carta; os do Czar ocupam treze linhas, sendo o último deles o de Grão-Mestre da Ordem de S. João de Jerusalém. Desta forma discreta, Lisboa aceitava a pretensão de Paulo I. Por que razão o teria feito? A explicação vem noutro documento.

De um despacho, de 14 de Agosto de 1799, de Luís de Sousa Coutinho para o nosso Ministro em S. Petersburgo, destaco seguinte parágrafo:

“Nas ratificações do Tratado de Comércio, ultimamente concluído entre uma e outra Monarquia (…) não podiam ir todos os títulos do Imperador, por não ser esse nunca o costume desta Secretaria de Estado (…). Porém, na carta que actualmente escreve o Príncipe Regente nosso Senhor ao Imperador da Rússia, observará Vossa Senhoria que se não omitiu de se lhe dar o título de Grão-Mestre de Malta, com cuja circunstância espero ficarão aplanadas todas as dificuldades que sobre essa matéria pudessem ocorrer”.

Assim, os russos teriam exigido, para a ratificação do Tratado de Comércio, que figurasse nele o título de Grão-Mestre de Malta de Paulo I. Invocando (ou pretextando?) a prática habitual, o lado português objectou, mas encontrou um hábil expediente para salvar o Tratado, dando satisfação ao lado russo e utilizando uma via mais discreta (numa carta e não num tratado) para o reconhecimento do título de Grão-Mestre. 

Em Setembro de 1799, na assinatura do Tratado de Aliança Defensiva, um dos Plenipotenciários russos, Conde de Kotschoubey, ostenta o título de Comendador e, outro, o Conde de Rostopsin, os de Grã-Cruz e Grão-Chanceler da Ordem de S. João de Jerusalém. Como se recordará, o cargo de Grão-Chanceler pertencia à Língua de Castela e era exercido, alternadamente, por um português ou por um castelhano…

 
António Manoel de Vilhena

Documento muito relevante é um ofício, de 16 de Novembro de 1799, do Ministro da Rússia, para Paulo I. Refere um encontro com Luís Pinto de Sousa Coutinho, no qual o Secretário de Estado, ao abordar o recém-celebrado Tratado de Aliança Defensiva, exprimiu a apreciação da Corte de Lisboa perante os novos laços de amizade com a Rússia e disse que ela se apressava a reconhecer o Czar como Grão-Mestre da Ordem de S. João de Jerusalém. Sousa Coutinho teria acrescentado que o Prior (provável lapso por Priorado, Prieuré e não Prieur) de Portugal, desunido pelas desordens anteriores de Malta, voltara a juntar-se e responderia, a todo o momento, à notificação oficial que lhe fora feita, pelo Vice-Chanceler.

Num parágrafo que julgo truncado o Plenipotenciário russo menciona, por um lado, as intrigas da Espanha, dos eclesiásticos daqui e os movimentos dos furiosos da cabala francesa e, por outro, a firmeza do Príncipe Regente, que presta homenagem a Paulo I na qualidade de Grão-Mestre, que ele se tinha dignado aceitar para prosperidade pública.

O Conde Maltits tece alguns auto-elogios à forma como geriu esta matéria e informa o Czar que porá aos seus pés as listas dos rendimentos e os nomes de todos os Cavaleiros portugueses.

Pareceria, pois que, em contrapartida do Tratado de Aliança, o lado russo teria conseguido que Portugal lhe desse satisfação no tocante à Ordem de Malta. Mas seria mesmo assim?


 (Continua)

D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO OCASO DO ANTIGO REGIME (I)





No passado dia 20 de Março, o embaixador Fernando Ramos Machado apresentou, na Sociedade de Geografia de Lisboa, uma comunicação intitulada "D. João VI e a Ordem de Malta no Ocaso do Antigo Regime". Por se tratar de um assunto de relevante interesse, e dada a inquestionável qualidade da investigação do conferencista, que é também membro da Ordem de Malta, transcrevemos, com a devida autorização, o referido texto, que, dada a sua extensão, será apresentado em três posts sucessivos:



D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO OCASO DO ANTIGO REGIME



Em 2018, passam 200 anos sobre a Aclamação, como Rei, de D. João VI no, Rio de Janeiro, pelo que é apropriado evocar a sua memória. Mas, por que razão, associar D. João VI e a Ordem de Malta?

D. João VI presidiu ao ramo português da Ordem de Malta, na sua qualidade de Grão-Prior do Crato. Dos 34 Reis de Portugal, só quatro foram Grão-Priores do Crato, sendo um deles D João VI e, dos outros três, um foi seu Pai, D. Pedro III, e, os outros dois, seus filhos, D Pedro IV e D. Miguel. (I)

Mas esta situação pessoal, única, não é a principal motivação do presente trabalho.

Portugal e a Ordem do Hospital, geralmente designada, desde meados do Séc. XVI, como Ordem de Malta (II) mantêm relações muito antigas e estreitas, tanto bilateralmente, como sujeitos de Direito Internacional, também pela participação de portugueses nos Órgãos de Governo da Ordem e, ainda, pela presença da Ordem no Território português. Ora, durante mais de metade da vida de D. João VI (nasceu em 1767 e faleceu em1826) tanto o nosso País, como a Ordem, sofreram duramente o impacto das sequelas da Revolução Francesa, iniciada em 1789, e das Guerras Napoleónicas. Ambos viram a própria existência ameaçada, mas sobreviveram, atravessando os anos turbulentos do fim do Antigo Regime e emergindo, renovados, nos Tempos Modernos. Por outro lado, para além dos choques externos, também as dinâmicas internas haveriam de alterar as relações entre Portugal e a Ordem de Malta, neste período e nos anos imediatamente subsequentes.

Mal previa eu, contudo, que iria ser confrontado com vários pontos obscuros que precisarão, pelo menos, de mais algum tempo, mais investigação e mais reflexão, para serem deslindados, tarefas a que me proponho dedicar, e, por agora, fico-me pelo juntar de alguns factos, mais ou menos conhecidos, contando com a indulgência dos presentes para com a modéstia deste trabalho.

A presença da Ordem em Território português é muito antiga, remontando à segunda década do Séc. XII, sendo anterior, portanto, à Fundação do Reino. Os nossos Governantes foram fazendo sucessivas concessões aos Hospitalários, a primeira das quais um mosteiro já construído, em Leça. Foram-se instituindo numerosas Comendas que, no seu conjunto, integravam o Priorado de Portugal, conhecido comummente, a partir do Séc. XIV, como Priorado, ou Grão-Priorado do Crato.

A Ordem teve origem, na segunda metade do Séc XI, em Jerusalém. A Santa Sé, há mais de 900 anos, reconheceu-lhe a independência perante todas as outras autoridades religiosas e temporais. A partir da conquista de Rodes, em 1310, tornou-se soberana, qualidade que mantém até aos dias de hoje. Não tendo transferido a sua Sede para a Europa Continental (diferentemente do que fizeram os Templários e se lhes tornou fatal) a Ordem do Hospital constituiu, durante séculos, uma Potência naval de primeiro relevo no Mediterrâneo, combatendo o expansionismo otomano e os piratas do Norte de África.
  
 
D. João VI


De carácter multinacional e supranacional, a Ordem estruturava-se nas chamadas Nações ou Línguas: França, Provença, Auvergne, Itália, Alemanha, Inglaterra e Espanha. Esta última subdividiu-se, no Séc. XV, nas de Aragão (que incluía Navarra) e de Castela (que incluía Portugal); a de Inglaterra foi suprimida no Séc. XVI, sendo, no final do séc. XVIII, criada a Anglo-Bávara. A cada Língua cabia, de Direito, um cargo na estrutura governativa da Ordem, sendo que à de Castela pertencia o de Grão Chanceler, exercido, alternadamente, por um castelhano e por um português. (III)

A posição suprema na Ordem, a de Grão-Mestre, era (e é) electiva e vitalícia. Até ao Séc. XVIII, apenas dois portugueses exerceram aquela função, e por períodos muito curtos - Afonso de Portugal, filho natural de D. Afonso Henriques (1202-1206) e Luís Mendes de Vasconcelos (1622-1623). O Séc. XVIII, contudo, já foi designado “ O Século português de Malta “. O prestígio alcançado pela participação portuguesa na Batalha Naval de Matapão, em 1717, terá sido relevante na eleição de António Manoel de Vilhena, em 1722, como Grão-Mestre da Ordem de Malta, à frente da qual ficou até 1736, sendo a sua governação objecto de consensual aplauso. Ainda mais longo e igualmente brilhante, foi o Grão-Mestrado de Manuel Pinto da Fonseca (1741-1773); foi ele que consolidou os títulos de Príncipe, Alteza Eminentíssima, e fez encimar o escudo das suas armas com uma coroa fechada, como a dos Reis. Porém, como por vezes acontece, o pináculo do esplendor antecedeu, apenas em alguns anos, a ruína da Ordem de Malta.

Entretanto, em Portugal, e como uma face da centralização do Poder, os Reis tinham procurado subordinar as Ordens Religiosas Militares, cerceando, drasticamente, a sua autonomia. Tal processo pode-se considerar concluído, em 1551, no tocante às Ordens de Cristo, Aviz e Santiago, com a união perpétua dos Mestrados à Coroa, tornando-se o Rei Governador e Administrador das mesmas. Não teve lugar, porém, no tocante ao ramo português da Ordem de Malta, por se reconhecer o carácter “estrangeiro” da mesma. Mas, em todo o caso, não deixaram os Soberanos de procurar trazer aquele ramo para a sua órbita, designadamente pela indigitação de familiares seus para o cargo de Prior do Crato. Tal ocorreu em relação ao Infante D. Luís (o primeiro que se intitulou Grão-Prior), filho de D. Manuel e irmão de D. João III, e em relação ao filho natural de D. Luís, D. António, “o” Prior do Crato.

Após a Restauração, D. João IV instituiu a Casa do Infantado, dotada de um substancial património, com vista a garantir uma situação financeira mais confortável aos Filhos Segundos dos Reis. A intenção do Monarca era que o Senhor da Casa do Infantado acumulasse, com aquela posição, a dignidade de Grão-Prior do Crato. A indigitação do Infante D. Pedro (futuro Rei D. Pedro II) não foi aceite pelas instâncias da Ordem. Mas, em 1675, a Santa Sé reconheceu aos Reis de Portugal o direito de nomear os Infantes Grão-Priores do Crato, sem interferência do Grão-Mestre; isso veio a concretizar-se com o filho de D. Pedro II, o Infante D. Francisco (Grão-Prior de 1695 a 1742) e com o Infante D. Pedro, filho de D. José e futuro Rei D. Pedro III, pelo seu casamento com D. Maria I (Grão-Prior de 1742 a 1786).


D. Pedro IV


E chegámos, assim, à altura do nascimento do futuro D. João VI, a 13 de Maio de 1767, em Queluz. Era filho, pois, da Princesa D. Maria, futura Rainha D. Maria I, e do Infante D. Pedro, tio dela, Senhor da Casa do Infantado e Grão-Prior do Crato, futuro Rei D. Pedro III. Em Malta, Pinto da Fonseca reinaria ainda por mais seis anos e, em Portugal, D José, e o seu poderoso Ministro, por mais dez; estava-se em pleno Despotismo Esclarecido. 

D. João era filho segundo, não se previa que viesse a reinar; o futuro Soberano deveria ser o Príncipe D. José, mais velho que ele seis anos. A D. João caberia, entre outros títulos, os de Senhor da Casa do Infantado e de Grão-Prior do Crato. D. Pedro III conservou aquelas duas posições, até à morte, em 1786; sucedeu-lhe nelas D. João, o qual, com a morte de seu irmão, o Príncipe D. José, dois anos depois, viria a ocupar o primeiro lugar na linha de sucessão ao Trono.

Um desenvolvimento muito relevante teve lugar então, quanto à situação da Ordem de Malta em Portugal. O Papa Pio VI, dando satisfação a um pedido formulado por D. Maria I, decreta (Bula Expedit Quam Maxime, de 24 de Novembro de 1789) por um lado, a automática acumulação das posições de Senhor da Casa do Infantado e de Grão-Prior do Crato e, por outro, que “fique unida e incorporada ao património e Casa do Infantado, acima dita, a Administração do dito Priorado do Crato”. E, pela Bula Quoniam Ecclesiasticum, de 8 de Janeiro de 1793, confirma a independência, perante Malta, da Administração do Grão-Priorado do Crato, no domínio temporal, e declara a sua dependência exclusiva perante a Santa Sé, no tocante à jurisdição espiritual.

Tem sido discutido a alcance daquelas medidas, sendo uma das opiniões a de que, com as decisões papais de 1789 e 1793, “se deu a separação plena e perpétua do Grão-Priorado do Crato da Soberania da Ordem de Malta”. Mesmo sem este radicalismo, afirma-se com frequência que o Grão-Priorado do Crato “ficou independente de Malta e integrado na Casa do Infantado”. A aceitar-se esta interpretação, não seria compreensível a História das quatro décadas subsequentes. Ora, para Maria Inês Versos, que estudou este assunto em profundidade, o braço português da Ordem de Malta foi sempre, formalmente, reconhecido como parte de uma estrutura internacional. E, quanto à integração, na Casa do Infantado, da Administração, sublinho, da Administração do Grão-Priorado, Maria Inês Versos destaca que dizia respeito apenas à Comenda Prioral, isto é, à Comenda associada à dignidade de Grão-Prior; era opulentíssima, abrangendo, além da Vila do Crato, doze povoações (IV) mas não constituía a totalidade do Priorado, o qual compreendia, ainda, mais de uma vintena de Comendas (V) que continuariam a ser administradas pela Ordem, como até ali. Contra a tese da separação, refira-se que a Bula Expedit Quam Maxime estipula responsões , isto é, os montantes com que os ramos nacionais estavam obrigados a contribuir para o Tesouro Comum, fixando-os em 7.500 Cruzados, em Moeda Portuguesa, por ano, mais 400 mil Reis, por Annata e Mortorio. E os próprios termos em que a Bula recorda o que se passara com as Ordens de Aviz e Santiago parecem indiciar que, no tocante à Ordem de Malta, a solução adoptada era bastante diferente – às decisões de seus predecessores, quando “separaram as Ordens Militares de Aviz, e de Santiago de Velles, no Reino de Castela, e concederam perpetuamente a Administração, e Grão-Mestrado delas, e da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo; aos Reis de Portugal”, Pio VI contrapõe - “pelo teor das presentes; unimos, incorporamos, ordenamos e declaramos que fique unida e incorporada ao Património, e Casa do Infantado, acima dita, a Administração do dito Priorado do Crato, do referido Hospital”.

Assim, afigura-se que, nos casos de Aviz e Santiago houvera dois momentos: primeiro, numa lógica nacional, a separação dos ramos portugueses dos troncos castelhanos e, depois, em 1551, numa lógica política e financeira, a incorporação dos respectivos Mestrados na Coroa. No caso da Ordem de Malta, não se verificou um corte com o Grão-Mestrado, mas a incorporação, e apenas parcial, do património da Ordem em Portugal na Casa do Infantado. 


D. Miguel


A Expedit Quam Maxime, de Novembro de 1789 terá produzido algum abalo nas finanças da Ordem. Mas nada teve de comparável com o processo que, quatro meses antes, começara com a tomada da Bastilha. Para a Ordem de Malta, a Revolução Francesa teve o efeito de um terramoto e de modo não circunscrito aos aspectos financeiros. No caso português, o Papa acedera ao pedido de uma Rainha, devota e Fidelíssima, no sentido de fortalecer a sua Família, em termos principalmente económicos, no culminar de séculos de progressiva centralização do poder real. Já em França, a Ordem de Malta sofria os ataques desferidos pelos revolucionários, contra as instituições de carácter religioso e/ou aristocrático. A Ordem de Malta era vista como representativa do Antigo Regime, do Trono e do Altar, como então se dizia. Se o respeito pelo carácter “estrangeiro” ainda funcionou como travão, durante algum tempo, em 1792 foram-lhe confiscados todos os bens. Foi um golpe quase fatal, pois era em França que a Ordem de Malta obtinha mais de metade do seu rendimento total. A urgência de compensar aquela perda iria ter, e a muito curto prazo, sérias consequências.

A Espanha, em particular nos tempos de Carlos V e Felipe II, e a França, de Luís XIV e Luís XV, tinham mantido estreitas relações com a Ordem de Malta, o que era normal, tratando-se de Potências católicas e bem presentes no Mediterrâneo. Um parceiro imprevisível iria surgir agora – a Rússia. Para o compreender, há que recuar alguns anos.

Uma longa disputa jurídico-política, na Polónia, tivera o seu termo, em 1774, de forma muito satisfatória para a Ordem de Malta, com a criação de um Grão-Priorado Polaco. Ora, em 1793, o território em que se situavam estes domínios, Ostrog, na actual Ucrânia, passaram para a posse da Rússia, nos termos da Segunda Partilha da Polónia. Para a Ordem, afectada pelas recentes perdas em França, era vital negociar com S. Petersburgo, para garantir o rendimento das suas propriedades polacas. Mas Catarina II não mostrou pressa. Albergava possivelmente algum ressentimento contra a Ordem que, ainda que com habilidade diplomática, repelira as aproximações da Imperatriz (as primeiras das quais datadas de 1764, ainda no tempo de Pinto da Fonseca). Catarina procurara arrastar a Ordem de Malta para uma suposta aliança contra a Turquia (quando o perigo otomano já se desvanecera) e, sobretudo, pretendera que os navios de guerra russos pudessem ter direito de entrada permanente no porto de La Valletta. Conseguira, apenas, que o Grão-Mestre Rohan enviasse a S. Petersburgo, para apoiar tecnicamente a renovação da Armada russa, o Bailio Giulio Litta, aristocrata lombardo que, com seu irmão Lorenzo, Núncio em Varsóvia, haveria de desempenhar um papel de destaque, ainda que mais que controverso, nos acontecimentos que se seguiram.  

Estes viriam a precipitar-se a grande velocidade, o que, aliado à lentidão das comunicações, originou não poucos mal-entendidos. Catarina II morreu em Novembro de 1796. A Ordem terá considerado como uma bênção providencial que lhe sucedesse seu filho Paulo; diferentemente de Catarina, o novo Czar não teria particular interesse pela posição estratégica da Ilha, mas, desde muito novo, nutria uma admiração sem limites pela Ordem de Malta. As negociações, conduzidas, do lado maltês, pelo Bailio Giulio Litta, concluíram-se de um modo que excedia as expectativas mais optimistas da Ordem – logo em Janeiro de 1797 é assinada uma Convenção, pela qual Paulo I reconhece à Ordem a propriedade virtual das suas antigas possessões polacas, no quadro de um Grão-Priorado russo que criava, com rendimento anual de 300 mil Florins, isto é, 2,5 vezes superior ao que fora previsto aquando da constituição do Grão-Priorado polaco. Para o cargo de Grão-Prior, designa o Príncipe de Condé e nomeia Cavaleiros numerosos emigrados da Corte do futuro Luís XVIII.


(Continua)