domingo, 29 de outubro de 2017

A CATALUNHA, A EUROPA E O MUNDO





A recém-proclamada independência da Catalunha suscita-me umas breves reflexões. Breves, porque sendo o assunto de evidente complexidade, não me atrevo a nele mergulhar com a profundidade que o tema porventura exigiria.

Ninguém desconhece que desde há muito tempo os catalães aspiram à independência. Por razões de ordem histórica, de ordem cultural, quiçá sentimentais, que hoje se procuram desvalorizar, atribuindo tal sentimento à educação proporcionada pela Generalitat às gerações mais novas ou a uma espécie de lavagem do cérebro nas escolas, nos jornais, nas televisões, et al. Esta pós-verdade, largamente difundida pelo centralismo madrileno, não tem colhido os seus frutos, como se comprova pelas manifestações maciças de cidadãos clamando pela independência.

É um facto que a Catalunha é (ou era) uma região autónoma de Espanha, e que constitucionalmente a separação teria de obedecer a um sem número de quesitos que na prática inviabilizariam a sua concretização. Seriam precisas várias eleições nacionais, a votação de todas as regiões autónomas, etc., etc. Assim sendo, entendeu o governo regional catalão organizar um referendo para auscultar a vontade da população, e avaliar se a maioria dos eleitores seria favorável à proclamação da independência.

Todos sabemos o que aconteceu. O governo de Madrid enviou a Guardia Civil para impedir o acesso às urnas e os cidadãos que dispunham do seu boletim de voto como única arma foram largamente espancados e impedidos de pacificamente expressar a sua vontade soberana.

Perante este erro monumental do governo de Mariano Rajoy, um primeiro-ministro sem a mínima dimensão de estadista, o parlamento catalão entendeu por maioria proclamar a independência, estimando que a votação do dia 1 de Outubro legitimara essa decisão. Como o escrutínio decorreu numa tumultuosa jornada de intervenções policiais, não sabemos se esse resultado exprime de facto a vontade da maioria dos cidadãos ou não. Muitos terão certamente ficado em caso com receio da repressão policial, o escrutínio dos boletins de voto poderá também não ter sido exemplar. Mas só deverão imputar-se responsabilidades a quem tentou por todos os meios evitar a consulta popular.

Surge agora o governo de Madrid a retirar à Catalunha o seu estatuto autonómico. Eu diria, como se canta em muitas óperas italianas: «È TARDI!".

Ignoro, neste momento, qual será o evoluir da situação no futuro próximo, se os novos governantes nomeados agora por Madrid, conseguirão exercer realmente os seus cargos e se os governantes em exercício de funções o permitirão, a menos que sejam todos detidos manu militari.

Mas o objectivo deste texto transcende a Questão Catalã, ainda que esteja convencido que mais tarde ou mais cedo a Catalunha se tornará um estado independente.

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, ainda não saradas as feridas do conflito e recordando-se o ancestral conflito entre a Alemanha e a França, com um Reino Unido que perdera o seu império e perante o que se considerou ser a ameaça do comunismo soviético, entendeu a Europa Ocidental, com o largo patrocínio dos Estados Unidos, para quem a simples palavra "socialismo" provoca temores e tremores, criar o embrião de um conúbio, as comunidades europeias, que viriam mais tarde a constituir a União Europeia. Deve dizer-se aqui que os sucessivos tratados que transformaram acordos meramente económicos no monstro burocrático que está hoje sediado em Bruxelas, foram negociados directamente por políticos e raramente os povos foram convidados a pronunciar-se. E quando o foram e o resultado não convinha aos poderes constituídos, repetiram-se as votações até se alcançar o resultado almejado. Chamam eles a isto "democracia".

Um dos aspectos mais salientes do pós-1945 foi o estabelecimento de fronteiras um pouco à vontade dos vencedores (Vae victis) e proclamada a sua inalterabilidade ad aeternum. E durante umas décadas as coisas ficaram assim. Mas não para sempre. Na sequência da Queda do Muro de Berlim e da desintegração da União Soviética, logo a União se apressou a integrar os países que se encontravam para lá da Cortina de Ferro, iniciando-os nas delícias do capitalismo, que ainda era praticado com alguma moderação. E surgiu o primeiro desmembramento. A Checoslováquia partiu-se ao meio. De um lado a Boémia e a Morávia integraram a República Checa, ou Chéquia, do outro lado ficou a Eslováquia. Para bem de todos, foi uma separação mais ou menos indolor. Outro tanto não sucedeu na Jugoslávia, onde uma guerra sangrenta, sob o pretexto de terríveis genocídios, provocou milhões de mortos e feridos. As regiões da Jugoslávia foram-se cindindo progressivamente, num processo delirante, largamente apadrinhado pelos Estados Unidos, pela Alemanha e até, pasme-se, pelo Vaticano. Ninguém se preocupou então com a Constituição da Jugoslávia, e assim ficámos com a Sérvia, a Croácia, a Eslovénia, a Bósnia-Herzegovina (esta ainda interiormente tripartida), a Macedónia e o Montenegro. Mas havia ainda um minúsculo território de estimação, parte antiga da Sérvia e que era necessário extirpar, o Kosovo. E, com a participação das máfias albanesas, satisfazendo-se os interesses comerciais e militares dos Estados Unidos, também ele ascendeu à independência.

Estava quebrado o mito da imutabilidade das fronteiras, que só a hipocrisia dos dirigentes ocidentais se empenhava em manter. Havia ainda a a velha questão do Chipre, que fora "resolvida" precariamente há décadas, mas por ora a ninguém especialmente incomodava.

Mas eis que surge a pretensão da Escócia. O Reino Unido não impede, obviamente o referendo, e sendo a votação ainda minoritária, a Escócia permanecerá por mais algum tempo agregada à Inglaterra. Todavia, o Brexit venceu! É praticamente certo que num próximo referendo, a votação a favor da independência da Escócia será maioritária.  Dar-se-á então a cisão, à qual se seguirá a do País de Gales. A Irlanda do Norte, essa oscilará entre a independência e a sua integração no Eire.

O caso da Catalunha está em curso. Ou agora, ou mais tarde, será também independente, seguindo-se nessa via o País Vasco e talvez a Galiza e a Andaluzia. Ou seja, o desmembramento da Espanha está próximo. Uma questão de poucos anos.

Mas há outras nuvens no horizonte. A Córsega, que desde há muito tempo luta pela independência, retomará força e vigor. E mesmo dentro da França continental algumas regiões aspiram à autonomia.

Na Bélgica, ninguém ignora as pretensões autonómicas da Flandres e na Itália as da Lombardia e do Véneto. Mais recentemente surgiram também movimentos pela independência da Sardenha e da Sicília. Que a Baviera pretende sair da Alemanha não é segredo para ninguém. O próprio partido conservador nacional (CDU) tem uma expressão bávara (CSU). As fronteiras da Polónia, da Hungria e da Roménia são igualmente voláteis, devido à construção artificial desses países, integrando minorias uns dos outros. A Morávia, uma das três partes da antiga Checoslováquia, quer ser agora também independente.

A Ucrânia já foi amputada da Crimeia e de Donbass, devido às políticas da União Europeia e da NATO. Mas na Rússia assiste-se, ao contrário, a uma tendência centrípeta.

Muito mais haveria a dizer, mas isto são meras reflexões. A União Europeia, tendo-se submetido à vontade hegemónica da Alemanha, sem uma França capaz de dizer "Não" (De Gaulle deverá ter-se revirado na tumba), entrou em fase de desagregação inelutável, mostrando-se forte com os fracos e fraca com os fortes. Todo o edifício "europeu", que durante algum tempo concitou esperanças, aparece agora despido aos olhos dos cidadãos: afinal, o rei ia nu.

De resto, e à guisa de conclusão, creio poder afirmar-se que a União Europeia foi um desagradável equívoco, que todavia alimentou ambições - e corrupções - durante algumas décadas. Teve alguns méritos? Obviamente que sim, e nem poderia ser de outra forma. Mas o saldo é infelizmente negativo. Talvez surja mais tarde uma Federação Europeia, com estados mais pequenos, depois de todas as secessões anunciadas. E que possam coexistir em pé de igualdade, mas conservando o seu património genético. Leis europeias para povos estruturalmente diferentes foi uma experiência horrenda só possível de conceber pelas mentes distorcidas e prostituídas dos funcionários de Bruxelas.

Mas não se julgue que este movimento autonómico se confina à Europa. Por esse mundo, sob o olhar complacente do "Ocidente", quando ele pode, outras cisões se anunciam ou estão já no terreno: o Iraque, a dividir entre etnias sunitas, xiitas e curdas, a Síria, retalhada e ainda em luta, o embrião de um Curdistão do qual a Turquia nem quer ouvir falar, o antiquíssimo problema de Jammu e Caxemira, a fronteira da Birmânia (Myanmar) com o Bangla Desh, as convulsões no interior da União Indiana, as disputas de ilhas do Mar Nipónico, os movimentos separatistas da Indonésia e das Filipinas, a Líbia com diversos governos depois da invasão da NATO, a confusão no Sudão, o problema da Palestina, velho de meio-século, o Sahara Ocidental, os outros movimentos na África sub-sahariana, o adiado caso do Québec, as ilhas do Pacífico, as disputas fronteiriças na América do Sul. E mais haveria porventura a dizer!

A procissão ainda está no adro. O tempo, "esse grande escultor", como escreveu Marguerite Yourcenar, cidadã da Orbe, se encarregará de pôr ordem na Velha Casa Europeia. E também no Mundo. Ou talvez não.

Valete, Fratres.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom. Mais uma vez obrigado.