segunda-feira, 1 de maio de 2017

A MORTE DO MARQUÊS DE LOULÉ




Foi publicado há poucos dias um interessante livro de Fernando de Almeida e Vasconcellos, O Marquês que Desafiou a Morte, cuja apresentação teve lugar na Sociedade Histórica da Independência de Portugal. Trata-se de uma obra sobre a estranha morte de Agostinho Domingos José de Mendoça Rolim de Moura Barreto, 1º marquês de Loulé e 8º conde de Vale de Reis, ocorrida no Paço de Salvaterra de Magos, em 28 (ou 29) de Fevereiro de 1824.

Esta edição recordou-me que há muitos anos comprara (mas não chegara a ler, devido a outros afazeres), um livro sobre o mesmo tema: Uma Tragédia na Corte  - A Morte do Marquês de Loulé, de António Cabral.

Por uma questão cronológica, resolvi ler agora, em primeiro lugar, o livro de António Cabral e só depois o de Fernando Vasconcellos.

O assunto é o mesmo. O marquês de Loulé (1780-1824), estribeiro-mor de D. João VI, foi encontrado morto, na manhã do dia 29, em cima de um monte de entulho de um saguão para o qual dava uma janela, sem protecção, próxima da saída da tribuna real do teatro do Paço de Salvaterra, onde tivera lugar, a 28, uma representação por ocasião das festas de Carnaval desse ano.

Tratando-se de uma das mais ilustres figuras do Reino, o facto provocou a maior comoção, tanto mais que, desde o primeiro instante, se suscitaram fortes suspeitas de que o fidalgo pudesse ter sido assassinado. O Auto de Exame do Corpo de Delito concluía como pouco provável uma queda acidental do marquês quando se dirigiu do teatro para os seus aposentos, ainda antes de terminado o espectáculo, atendendo à posição em que se encontrava o cadáver e à ausência de ferimentos, à excepção da cabeça, que teria sido atingida por instrumento contundente. Dadas as circunstâncias, ordenou D. João VI que se iniciasse imediatamente uma Devassa, com a finalidade de averiguar a identidade do(s) autor(es) do crime. A hipótese de acidente estava, pois, afastada desde o início. Ouvidas dezenas de testemunhas, nunca se apurou a verdade, e em 24 de Junho de 1825, numa tentativa de conciliação nacional, o rei decretou um indulto que abrangia os implicados no assassínio do marquês de Loulé e na "Abrilada", que ocorrera posteriormente ao crime, salvaguardando algumas pessoas que deveriam ser exiladas do país, mais por causa da "Abrilada" do que do caso Loulé. As devassas foram seladas e arquivadas na Secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça.

Não cabe aqui uma descrição minuciosa do caso, tanto mais que ambos os livros aproveitam o tema para se debruçarem sobre outros assuntos da época.



Em António Cabral, podemos ler uma descrição da vida em Portugal naquele tempo, nomeadamente na Corte, e de alguns mistérios que a História para sempre guardou. E também, e inevitavelmente, a referência à disputa entre liberais e legitimistas, que percorreu todo o reinado de D. João VI. O autor transcreve o depoimento da maior parte das testemunhas e conta como conseguiu ter acesso ao volumoso processo, que julgava desaparecido. Foi através do escritor Rocha Martins que tomou conhecimento de que se achava arquivado na secção "Feitos findos", da Torre do Tombo, então junta à Basílica da Estrela. A partir dele, pôde elaborar o seu trabalho, concluindo que a morte do marquês se deveu a acidente e não a homicídio e procurando sempre afastar qualquer suspeita em relação a uma intervenção do infante D. Miguel, que, dadas as suas posições opostas às do marquês, sempre foi considerado como um provável instigador do crime. É aliás patente ao longo do livro a simpatia do autor pela causa legitimista, por D. Miguel e pela rainha D. Carlota Joaquina.

Fernando de Almeida e Vasconcellos procede também à descrição da vida na Corte e no país, mas começa por enfatizar a iniciação maçónica do marquês de Loulé, em Outubro de 1801. Descreve depois as conspirações da nobreza, as invasões francesas, a adesão de Loulé à Legião portuguesa de Napoleão Bonaparte, a condenação à morte por traição à pátria e a ida ao Brasil solicitar o perdão real, a "Vilafrancada", os laços estabelecidos com D. João VI e a lei anti-maçónica de 20 de Junho de 1823. Sendo discutida nas lojas maçónicas a hipótese de destronar o rei e afastar D. Miguel e D. Carlota Joaquina, resolveu Loulé manifestar publicamente a sua inequívoca lealdade ao  monarca, assinando um documento em que se comprometia a não pertencer desde então a qualquer sociedade secreta (8 de Julho de 1823).  Durante a sua brilhante carreira política e militar, Loulé fizera muitos amigos mas também muitos inimigos, um dos mais conhecidos o marquês de Abrantes. As suas ideias liberais incompatibilizavam-no com os mais legitimistas dos membros da nobreza. A sua morte, que foi certamente um homicídio, poderia dever-se aos ideais políticos, já que fora uma das personagens a incentivar D. João VI a tomar a decisão de "encabeçar" a "Vilafrancada", frustrando os desígnios de D. Miguel. Todavia, Vasconcellos, inclina-se decisivamente para uma conspiração maçónica contra o marquês, quer pela sua deserção da Maçonaria, quer pelo facto de poder estar na posse de segredos maçónicos que os outros maçons, entre os quais o conde de Paraty, receavam pudessem vir a ser divulgados. A própria morte, devidamente analisada, configura um assassinato ritual, embora ninguém fosse sentenciado devido ao régio indulto. Mas o livro regista determinadas personagens, algumas de baixa escala social, que poderiam ter sido as executoras do crime. Também Vasconcellos procede à transcrição do processo, como o fizera António Cabral.

A morte do 1º marquês de Loulé impressionou muito D. João VI, que imediatamente confirmou seu filho mais velho Nuno (havia também um filho bastardo)  como 2º marquês e 9º conde de Vale de Reis. Nuno José Severo de Mendoça Rolim de Moura Barreto, que haveria de casar em 1828 com a infanta D. Ana de Jesus Maria, filha (reconhecida) de D. João VI e de D. Carlota Joaquina, teve uma importante carreira política, tendo sido várias vezes ministro e presidente do Conselho de Ministros, senador e par do Reino. Em 1862, D. Maria II elevou-o à categoria de duque de Loulé.

A morte do 1º marquês de Loulé permanece oficialmente um mistério, embora se possa sustentar como inadmissível a hipótese de acidente. Tratou-se pois de um crime, e certamente que D. João VI teve conhecimento dos seus autores, seja de quem mandou, seja de quem executou.

Sendo hoje praticamente impossível encontrar o livro de António Cabral, poderão os interessados ler, com vantagem, o recém-publicado livro de Fernando Vasconcellos. E tirar as suas conclusões.



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