sábado, 1 de abril de 2017

A POESIA ÁRABE PRÉ-ISLÂMICA






Faz parte da cultura literária o conhecimento dos grandes poetas do Islão. Mas são certamente menos conhecidos os poetas árabes da época pré-islâmica que se notabilizaram pelas suas odes (qasā'id, em árabe).

Esses poetas tinham por hábito pendurar os seus poemas na Ka'aba, de Meca, donde a designação atribuída aos mesmos de "Poemas Suspensos".


Sete desses poemas, considerados dos mais notáveis do referido período, da autoria de sete poetas diferentes, foram reunidos numa compilação, Mu'allaqat (pendurado, em árabe). Encontram-se traduzidos em várias línguas e foram objecto de várias edições, sendo a mais recente a versão inglesa que agora se comenta, organizada por Paul Smith, um especialista na matéria.


O gramático Ahmed ibn Muhammad Al-Nahhas (m. 949) escreveu num comentário sobre o Mu'allaqat: «Quando Hammad Ar-Rawiya (Hammad o Recitador) se apercebeu como os homens pouco cuidavam da poesia, instou as pessoas a estudá-los [aos poemas], dizendo-lhes: "Estes são poemas notáveis". Isto está de acordo com todas as outras informações. A recitação de poemas era a sua profissão. Hammad (que viveu nos três primeiros quartéis do século VIII) foi talvez de todos os homens o que melhor sabia de cor a poesia árabe. Para um tal recitador era conveniente efectuar uma selecção e está adquirido que foi também ele o responsável pelo fantástico título de "suspensos"».


A compilação dos sete poemas por Hammad parece ter sido a mesma que hoje se encontra nas edições modernas. Eles foram numerados quer por Ibn Abd Rabbih (860-940), quer pelo citado Nahhas, quer pelos comentadores que se seguiram, embora seja evidente que  num período inicial se verificassem alguns pequenos arranjos.


Parece que os grandes poetas Nabigha e Al-A'sha teriam pertencido a uma primeira recolha, em vez de Antara e Harith, mas hoje não figuram na compilação.


Quando o grande historiador Ibn Khaldun (1332, Tunis-1406, Cairo) refere na sua obra Muqqadimah (texto fundador da sociologia da história) a existência de nove poemas mu'allaqat trata-se de uma evidente confusão relativamente aos poetas que teriam figurado anteriormente e depois saído da versão "oficial" da recolha tal como é hoje conhecida.


Também, ao contrário do que afirma Ibn Khaldun na obra citada, não eram os próprios poetas que penduravam os seus poemas. Como a difusão da poesia era exclusivamente efectuada de forma oral, segundo Nahhas «muitos árabes tinham o costume de se encontrarem num mercado ao ar livre em Okaz, perto de Meca, para recitarem versos. Então, se o rei gostava de alguns poemas, dizia: "pendurem-nos e preservem-nos entre os meus tesouros"». Não se tratava evidentemente do rei de todos os árabes mas muito provavelmente de qualquer rei árabe que assistia à "feira" de Okaz. Esta, mais do que uma "feira" era um ponto de encontro dos árabes para resolver disputas, efectuar julgamentos, anunciar tratados e tréguas, realizar competições desportivas e poéticas e reuniões religiosas. Tinha lugar anualmente, durante duas semanas, durante o mês de Dhu al-Qi'dah. Os concursos poéticos destinavam-se também a formalizar as regras da gramática da língua árabe. Extinto o Suq Okaz pelos kharijitas em 726, a sua localização foi redescoberta pelo historiador Muhammad bin Abdallah al-Blahad. É hoje um popular destino turístico, com manifestações similares às do passado e cobre uma superfície de catorze milhões de metros quadrados.


Há uma outra versão, menos sustentada pelos comentadores, que refere que os poemas não chegariam a ser pendurados na Ka'aba, que a designação é metafórica e que apenas significaria que possuíam o valor bastante para figurarem nas paredes do santuário.


A história de que os poemas foram escritos a ouro originou também a designação de "poemas dourados", uma expressão figurativa por excelência.


A propósito de Qasida importa dizer que se trata de uma forma poética da Arábia pré-islâmica, que transitou mais tarde para os persas e para os turcos. Traduz-se habitualmente como ode. Trata-se na maior parte das vezes de um panegírico escrito em louvor de um rei ou um nobre. Este tipo de qasida é conhecido como madih (louvor). As qasā'id árabes são compostas por três partes: começam com uma abertura nostálgica em que os poetas reflectem sobre o que se passou (nasib). O nasib é habitualmente seguido pelo takhallus ou libertação onde se descreve a transição da primeira para a segunda parte do poema, rahil (secção de viagem) onde o poeta contempla a dureza da natureza e da vida longe da tribo. Finalmente há a mensagem do poema, que pode assumir diversas formas: louvor da tribo, fakhr; sátira acerca das outras tribos, hija; ou máximas morais, hikam.



Os poetas incluídos em Mu'allaqat são:


1) Imra' Ul-Qays (500-535), filho de Hujr

2) Tarafa Ibn Al'Abd Bin Sufyan Bin Malik Al Bakri (543-568)
3) Amru (séculos VI a VII), filho de Khultun
4) Harith (m. c. 570), filho de Hilliza
5) Antara Ibn Shaddad Al-'Abs (525-615)
6) Zuhair Ibn Abu Sulma (520-609)
7) Labid (560-661), filho de Kabila

Porque Zuhair é um dos maiores autores da poesia árabe dos tempos pré-islâmicos contidos nesta colectânea, seria interessante traduzir a sua ode. Porém, é tarefa difícil, já que as traduções mais infiéis são sempre as da poesia (mais do que do ensaio, da ficção ou do teatro), e especialmente quando o original está escrito em árabe.


Assim, traduzimos apenas os quatro últimos versos, que dão uma pálida imagem do original.


«Um homem velho nunca chegará a sábio depois de fazer alguma coisa louca...

mas um jovem pode ganhar sabedoria depois de despender a sua loucura.
Nós pedimos, vós destes... nós repetimos os nossos pedidos e os vossos presentes
foram novamente dados; mas quem pede muitas vezes acabará por descobrir a decepção.»

Resumindo o assunto do poema, poderíamos dizer:


Na primeira parte, o poeta chora sobre as ruínas da casa da sua amada de outrora;


Na segunda parte, louva o papel do homem que pôs fim à guerra de Dahis e Ghabra,  que durou cerca de quarenta anos;


Na última parte, partilha a sabedoria de um homem com oitenta anos, idade com que Zuhair escreveu a sua ode.


É interessante uma referência à guerra de Dahis e Ghabra (ou entre Abs e Dhubiyan):


A tribo de Dhubiyan fazia a protecção do comércio das caravanas de Al-Nu'man Ibn Al-Mundhir, que ere então o rei da região. Como falharam na sua missão, o rei confiou o encargo à tribo de Abs, o que enfureceu os Dhubiyan. 


As duas tribos, Abs e Dhubiyan, cujos chefes eram  respectivamente Qaïs ben Zouhaïr e Hamal Ben Badr, acordaram na realização de uma corrida de cavalos para resolver a disputa e determinar quem continuaria a proteger as caravanas. A tribo de Abs possuía um cavalo chamado Dahis, famoso pela sua velocidade; o cavalo de Dhubiyan chamava-se Ghabra. O percurso teria a distância de cem lançamentos de flecha por arco e a aposta valia cem camelos.

  
Durante a corrida, Ghabra tomou a dianteira, mas Dahis ultrapassou-o e estava quase a ganhar a corrida quando os Dhubiyanitas fizeram uma emboscada e puseram o cavalo fora da corrida. Sabendo desta jogada desonesta a tribo de Abs proclamou a vitória mas Dhubiyan recusou-se a pagar a aposta. 

Ressentidos pela traição os Abs mataram o irmão do chefe dos Dhubiyan ao que estes corresponderam matando o irmão do chefe dos Abs. Em consequência, estalou uma guerra sangrenta que durou aproximadamente de 610 a 650. O propósito do poema é louvar os dois homens que conseguiram pôr termo à guerra, Haram Ibn Sinan e Hareth Ibn A'ouf, pagando do seu bolso uma avultada importância às duas tribos, como compensação pelos mortos em combate.


Este episódio foi várias vezes glosado na poesia árabe do tempo.


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