quinta-feira, 23 de março de 2017

A ESTRANHA CAMPANHA PRESIDENCIAL FRANCESA




Uma pequena mas muito interessante entrevista do filósofo francês Jacques Rancière (nº 2731, de 9 a 15 Março 2017), sobre as eleições presidenciais francesas.


Mais pourquoi se disent-ils tous “anti-système” ? Entretien avec Jacques Rancière

Le philosophe de "la Haine de la démocratie" n'est pas surpris par l'étrange campagne de la présidentielle. Pour lui, en confiant tous les pouvoirs à des politiciens professionnels, notre système fabrique mécaniquement des candidats de rupture.



L'OBS. Du renoncement de Hollande aux ennuis judiciaires de Fillon, la campagne présidentielle en cours est une succession de coups de théâtre. De ce spectacle, vous êtes un observateur singulier. Depuis des années, vous dénoncez les impasses de la démocratie représentative, incapable, à vos yeux, de produire une véritable démocratie. Comment analysez-vous ce qui se passe?
Jacques Rancière. « Démocratie représentative» est un terme plus qu'équivoque. Il véhicule l'idée fausse d'un peuple déjà constitué qui s'exprimerait en choisissant ses représentants. Or le peuple n'est pas une donnée qui préexiste au processus politique: il en est le résultat. Tel système politique crée tel peuple, et non le contraire. Par ailleurs, le système représentatif est fondé sur l'idée qu'il y a une classe de la société qui représente les intérêts généraux de la société.
Jacques Rancière : "L'élection, ce n'est pas la démocratie"
Dans l'esprit des pères fondateurs américains, c'était la classe des propriétaires fonciers éclairés. Ce système crée un peuple qui se reconnaît dans cette classe de représentants légitimes et la re..............




Porque a entrevista não está integralmente disponível online, apresentamos a digitalização: 



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quarta-feira, 22 de março de 2017

"DER FLIEGENDE HOLLÄNDER"




Ignoro se Jeroen Dijsselbloem prefere homens a mulheres ou água mineral a bebidas alcoólicas. O problema é dele e não me permito interferir na sua vida privada. Todavia, as suas declarações são supinamente infelizes. Não só as mais recentes, mas a maioria das anteriormente proferidas, como estaremos certamente recordados. E demonstram inequivocamente uma ignorância do mundo e da história. Os povos do Sul não preferem mais as mulheres do que os do Norte. E no que ao álcool se refere, talvez os países nórdicos não se encontrem nas melhores condições para emitirem juízos sobre a matéria.

O senhor Dijsselbloem é como o "holandês voador", de Richard Wagner. Vagueia incessantemente não de porto em porto mas de disparate em disparate. O facto de ser presidente dessa não-instituição europeia que é o Eurogrupo deve-se tão só ao facto de se ter transformado no porta-voz do senhor Wolfgang Schäuble, que é quem realmente tem "ditado" as ordens aos países da Zona Euro.

O senhor Schäuble tem um problema com ele mesmo e outro com a história. E nenhum deles é resolúvel. Para mal dele e nosso. Constato agora que é pedido o imediato afastamento de Jeroen Dijsselbloem do lugar que ocupa. Esse afastamento será certamente inevitável, até porque o indivíduo, por força dos resultados das eleições holandesas, deverá abandonar o cargo de ministro das Finanças do seu país. Mas poderá ser rapidamente substituído por outro tão tonto como ele. Quem deveria ser afastado era o senhor Schäuble porque esse sim, esse tem mesmo um plano para a Europa, quero dizer mais concretamente, um plano para a Alemanha.

Mas isso são contos, e contas de outro rosário.


terça-feira, 21 de março de 2017

HOMOSSEXUALIDADE, PEDERASTIA E PEDOFILIA





O nº 577 (Março de 2017) de "Le Magazine Littéraire" consagra uma notável análise de Hubert Prolongeau ao tema "Pédophilie: des Totems au Tabou". Tratando-se de matéria de plena actualidade, conhecendo-se a forma como o problema tem sido tratado pela comunicação social, atendendo à ignorância reinante sobre o assunto, mesmo por parte de pessoas cuja formação académica faria supor estivessem sobre o mesmo minimamente esclarecidas, e last but not least, sabendo-se que os costumes se têm modificado (e vão coninuar a modificar-se) continuamente ao longo da História, afigura-se pertinente transcrever o citado texto, que não estando disponível online (à excepção da introdução), implicará a sua digitalização ou, para os mais interessados, a aquisição da revista.



Pédophilie, des totems au tabou


Michel Tournier vient d'entrer dans La Pléiade : l'imaginaire pédophile de certains de ses textes rebuterait sans doute aujourd'hui les éditeurs. Depuis une trentaine d'années, on touche là à une ligne rouge, y compris en pure fiction. Ce qui rend d'autant plus surprenante la tolérance qui a pu entourer auparavant certains auteurs reconnus.




Le 27 mai 2016, Jérôme Noirez, auteur de romans de science-fiction et de livres pour la jeunesse, était condamné en première instance à trente mois de prison (dont quinze fermes) pour avoir échangé en très grand nombre sur Internet des photos d'enfants à caractère sexuel. Très vite, l'un de ses éditeurs, Gulf Stream, spécialisé en littérature jeunesse, annonçait non seulement qu'il renonçait à le publier mais arrêtait la commercialisation de ses livres encore inscrits à son catalogue, cinq romans dont le contenu n'a rien de pédophile. Dans un communiqué laconique, il précisait : « Certains sujets ne peuvent être traités avec nuance, et notre engagement auprès des jeunes lecteurs ...

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sábado, 18 de março de 2017

CAMBACÉRÈS, "A MAN FOR ALL SEASONS"




É sempre útil revisitar a História, mormente quando se trata de um período conturbado e ainda hoje não suficientemente conhecido do grande público: a Revolução Francesa.

Temos (ou tínhamos), desde o ensino secundário, uma ideia geral do que foi esse acontecimento, que alterou a estrutura da Europa e que passou a ser utilizado como marco divisório entre a Idade Moderna e a Idade Contemporânea. Lembramo-nos de nomes como Robespierre, Danton, Marat, e alguns mais, e especialmente de Bonaparte, depois Napoleão I. Não creio que, então, alguém me tenha referido a figura de Cambacérès,

É evidente que o ensino, nomeadamente na Europa, se tem degradado nos últimos anos, a velocidades siderais, a que não é alheio o infame processo de Bolonha. Reconheço hoje, falando com gente mais nova, que nada sabem de ninguém!

Vem isto, a propósito, de um livro publicado no ano passado, Cambacérès - L'art de servir tous les régimes, de Louis Faivre d'Arcier, a biografia de um homem entre nós quase desconhecido, mas que desempenhou um papel, quiçá demasiado discreto mas nem por isso menos decisivo, na Monarquia, na Convenção, no Directório, no Consulado, no Império e na Restauração, um pouco como Talleyrand ou Fouché, homens que tiveram também a suprema arte de se adaptarem, talvez sem transigir intimamente com as suas convicções, aos sucessivos  regimes que vigoraram em França dos finais do século XVIII aos princípios do século XIX.

Com alguns lapsos e imprecisões, este livro não deixa de constituir uma importante abordagem de uma figura tão importante quanto pouco conhecida, mesmo em França, como Jean-Jacques Régis de Cambacérès, que nasceu em Montpellier em 18 de Outubro de 1753 e veio a falecer em Paris em 8 de Março de 1824.

Magistrado de carreira, haveria de ingressar na vida política, alcançando os mais elevados cargos do Poder. A primeira parte da  sua vida decorreu na vigência da Monarquia, então protagonizada por Luís XVI, mas não deixou, desde o início, de tecer uma rede de influências e amizades que lhe seriam úteis durante toda a vida, entre as quais se conta indiscutivelmente a sua pertença à Maçonaria.

Desde a sua iniciação maçónica, Cambacérès manteve sempre uma ligação com a Obediência, tendo sido eleito 1º Grão-Mestre-Adjunto do Grande Oriente de França em 13 de Dezembro de 1805 e instalado como venerável de honra da Loja de Santa Carolina dois dias mais tarde. Em 1 de Julho de 1806, tornou-se Soberano Grande Comendador para a França (rito escocês) e ocupou ainda outros altos cargos.

Em Fevereiro de 1789, parte para Paris acompanhado do primo, Fulcrand-Jean-Joseph d'Aigrefeuille, procurador-geral junto do Tribunal de Contas, também ele franco-maçon. A personagem de Aigrefeuille desempenhou sempre um papel crucial na vida de Cambacérès, sendo tão próximos que lhes foram atribuídas relações amorosas uma vez que era pública, ainda que discreta, a homossexualidade do segundo.

O ano de 1789  é decisivo para a mudança do regime em França. Em 14 de Julho assiste-se à tomada da Bastilha, evento que se tornou um símbolo da Revolução Francesa. Esta data é ainda hoje comemorada como Dia Nacional da França.

Os acontecimentos precipitam-se. Em 10 de Agosto de 1792, é tomado o Palácio das Tulherias e Luís XVI acolhe-se à protecção da Assembleia Legislativa , que o envia com a família para a Prisão do Templo.

Em 21 e 22 de Setembro é abolida a Monarquia e proclamada a República.

No decorrer deste tumultuoso processo que alterou profundamente os meios urbanos franceses, que não tanto o país profundo, Cambacérès, com a sua firmada reputação de competente jurista, foi acompanhando e interferindo neste processo em curso, mais próximo dos jacobinos do que dos girondinos, uma terminologia que a história haveria de consagrar.

No julgamento de Luís XVI, quando a Convenção decidiu autorizar o rei a escolher dois defensores, Cambacérès sugeriu que a mesma enviasse quatro comissários e que a Assembleia posteriormente deliberasse, dado ter sido erigida em juiz. Os votos de Cambacérès de 20 de Janeiro de 1793, apesar da sua prudência, fizeram dele um "regicida" ambíguo, mas mesmo assim um regicida, como seria mais tarde considerado. O rei seria condenado à morte e guilhotinado a 21 de Janeiro, na Praça da Revolução (a antiga Praça Luís XV), hoje chamada Praça da Concórdia.

A título de curiosidade, deve mencionar-se que a Convenção Nacional instituiu em 6 de Outubro de 1793 um Calendário Republicano, declaradamente anticlerical, destinado a simbolizar a queda da Ordem Antiga e o início da Nova Ordem. O novo calendário, reportado a 22 de Setembro de 1792, baseou-se no ciclo da natureza e era composto por 12 meses de 30 dias (três semanas de 10 dias), totalizando, obviamente 360 dias. Para completar o número de dias eram acrescentados no fim de cada ano 5 dias (ou 6), no caso do ano bissexto.

O ano começava a 22 de Setembro (equinócio de Outono), data da proclamação da República, e os meses reflectiam as condições climatéricas da época e as fases do ciclo agrícola francês.

O primeiro mês chamava-se Vindemiário; os seguintes, Brumário, Frimário, Nivoso, Pluvioso, Ventoso, Germinal, Floreal, Prairial, Messidor, Termidor e Frutidor. Este calendário vigorou até 31 de Dezembro de 1805, quando Napoleão Bonaparte ordenou o restabelecimento do Calendário Gregoriano. O conhecimento destes nomes tem interesse para referenciar os acontecimentos em França, durante o período em questão, mas não pode deixar de registar-se esta desvairada preocupação "revolucionária", que introduziu naturalmente uma imensa confusão no país, sem qualquer utilidade pública, numa altura em que havia tantos e tão prementes problemas para resolver no interesse nacional.

Regressando a Cambacérès, deve-se-lhe principalmente a elaboração do primeiro Código Civil, inspirado nas Instituta, de Justiniano e que foi apresentado em 9 de Agosto de 1792.

Entretanto, a Revolução, como Saturno, foi devorando os próprios filhos. Maximilien de Robespierre, o "Incorruptível", após ter mandado executar Danton, foi ele mesmo guilhotinado em 28 de Julho de 1794 (9 do Termidor Ano II).

Em 9 de Setembro de 1794 (23 do Frutidor Ano II), foi apresentado o segundo projecto de Código Civil.

Em 11 de Outubro de 1794, Cambacérès presidiu à transferência para o Panteão das cinzas de Jean-Jacques Rousseau. E em 1795 é eleito membro da 2ª Classe (Ciências Morais e Políticas) do Instituto.

O golpe de Estado de 4 de Setembro de 1797 (18 do Frutidor Ano V) leva à constituição do Segundo Directório. Em 18 de Junho de 1799 (30 do Prairial Ano VII), novo golpe de Estado em que se promove nova remodelação do Directório, sob a égide de Siéyès, tornando-se Cambacérès ministro da Justiça.

Em 16 de Outubro de 1799, Bonaparte regressa a Paris, após a campanha do Egipto.

Os três Cônsules no Palácio do Luxemburgo: Bonaparte, Cambacérès e Lebrun (Louis-Charles-Auguste Couder)

Em 9 de Novembro de 1799 (18 do Brumário Ano VIII), um golpe de Estado põe fim ao regime do Directório (1795-1799) e institui o Consulado, que durará até 1804, data da proclamação de Bonaparte como Imperador Napoleão I. A 19 do Brumário, Bonaparte, Siéyès e Roger Ducos instalam-se como cônsules provisórios no Palácio do Luxemburgo. Em 12 de Dezembro (21 do Frimário Ano VIII), sendo necessário designar os cônsules efectivos, Bonaparte propôs a designação de Siéyès, auto-excluíndo-se avisadamente do jogo. Em contrapartida, Siéyès propôs Bonaparte, Cambacérès e Charles-François Lebrun, que passaram a exercer o poder.

Em 15 de Dezembro de 1799, foi promulgada a Constituição do Ano VIII, sendo Siéyès, presidente do Senado, Talleyrand, ministro das Relações Exteriores e Fouché, ministro da Polícia.

Em 12 de Agosto de 1800, um decreto dos cônsules nomeia uma comissão de quatro membros para prosseguir a elaboração do Código Civil.

Durante o Consulado, é estabelecido um acordo com a Igreja - a Concordata de 1801 - e os sacerdotes passam a ser uma espécie de funcionários públicos remunerados pelo Estado. Em troca, o papa Pio VII renunciaria às terras confiscadas pela Revolução. A "paz religiosa" foi assinada  em 15 de 1801 (26 do Messidor Ano IX), por Joseph Bonaparte, ministro do Interior.

Em 21 de Março de 1804 foi finalmente outorgado por Bonaparte o Código Civil, também designado por Código Napoleónico, respeitante às pessoas e aos bens, tendo sido posteriormente publicados outros códigos abordando o direito penal, o direito processual penal e o direito comercial.

Retrocedendo. Em 2 de Agosto de 1802, após plebiscito aprovado por 3.600.000 votos favoráveis (sendo 8.374 desfavoráveis), o Senado proclamou Bonaparte cônsul vitalício. E em 4 de Agosto, concedeu-lhe o direito de designar não só os seus colegas (igualmente tornados vitalícios) mas também o de indicar o seu sucessor.

Cambacérès, como Príncipe-Arquichanceler do Império (Henri-Frédéric Schopin)

Em 18 de Maio de 1804, Cambacérès (Segundo Cônsul) informou Bonaparte da decisão do Senado de designá-lo Imperador dos Franceses. O Senado aprovou igualmente a criação de seis dignidades de altos funcionários inamovíveis. A Cambacérès foi atribuído o título de Arquichanceler do Império, função sem precedentes no Antigo Regime. As suas atribuições não eram especificadamente definidas, mas ficaria como consultor privilegiado do Imperador e como seu substituto nas ausências durante as sucessivas guerras que travou.

Os cônsules Cambacérès e Lebrun informam Bonaparte que o Senado lhe conferiu a dignidade imperial

Escusado será dizer-se que Cambacérès movimentou toda a sua rede de influências não só no seu interesse pessoal como na passagem do Directório a Consulado e a Império. Não foi só ele, mas ele foi uma das mais actuantes e eficazes personagens.

Em 2 de Dezembro de 1804, Bonaparte foi coroado em Notre-Dame de Paris, com a presença do papa Pio VII, como Imperador dos Franceses, com todo um cerimonial capaz de fazer inveja às mais conservadoras monarquias europeias, cerimonial concebido ao ínfimo pormenor por Cambacérès, um perito nestas matérias.

A Coroação de Napoleão (Jacques-Louis David) - Em primeiro plano, à direita, a segunda figura é Cambacérès

Em 14 de Janeiro de 1810, Napoleão (sem filhos), divorciou-se de Joséphine de Beauharnais. Viria depois a casar com a arquiduquesa Maria Luísa de Áustria, filha de Francisco II (I) e sobrinha-neta de
Maria Antonieta. Desse matrimónio nasceu Napoleão (II), proclamado, segundo a tradição imperial do Ocidente, como rei de Roma.

* * * * * 

Façamos uma pausa política para uma breve incursão  na vida privada de Cambacérès. Apesar do seu carácter discreto, este funcionário que alcançou os mais altos lugares na hierarquia do Estado, em todos os regimes, gozou sempre de uma pública reputação de homossexual, conforme a história o atesta. Foram múltiplos os ataques de que por tal motivo foi alvo e as publicações satíricas da época não o pouparam ao longo da vida.

Ainda há poucos anos, uma associação, "Les Enfants de Cambacérès", tomou-o por estandarte na sua luta pelo reconhecimento da causa homossexual no seio da Franco-Maçonaria (p. 139)

O arquichanceler nunca se casou, ainda que lhe tivesse sido atribuída, tardiamente, a intenção de desposar Madame-Mère, isto é, a mãe do próprio Napoleão Bonaparte.

O imperador não se eximia, em sessões de Conselho, de por vezes ironizar a propósito das suas tendências, mas nunca o discriminou, nem deixou de nele depositar inteira confiança. Aliás, é suposto que Napoleão preferia um arquichanceler celibatário, porque sempre receou, e com razão, os problemas que as mulheres dos altos dignitários suscitavam na Corte, em razão das suas pretensões e de questões protocolares que importava incessantemente resolver.

[Refiro, a talhe de foice, que é atribuída a Napoleão pelo menos uma relação homossexual, ainda que de curta duração, com o marechal Junot, um jovem e belo sargento que o imperador escolheu como seu ajudante-às-ordens durante o cerco de Toulon, e que foi sucessivamente promovido, comandou a primeira invasão napoleónica a Portugal, onde foi feito duque de Abrantes, e acabou derrotado pelo duque de Wellington. O seu temperamento impetuoso levou Napoleão a distanciar-se dele, facto que Junot nunca aceitou, ou compreendeu, dada a sua verdadeira paixão pelo imperador. Após alguns insucessos militares, e não tendo conseguido a desejada reaproximação, acabou por suicidar-se.]

Entre as conquistas amorosas de Cambacérès, é-lhe atribuída uma paixão pelo seu secretário Lavallée, considerado um lindo homem, casado com uma das suas sobrinhas, e que o acompanhou durante largo tempo.

Há, todavia, uma questão que importa esclarecer. É atribuída a Cambacérès a autoria da despenalização da homossexualidade em França. Inexacto. Ainda que para tal possa ter indirectamente contribuído, foi a Assembleia Constituinte, da qual ele não fazia parte, que em 1790 providenciou nesse sentido.

* * * * *

O ano de 1808 marca o início de um período complexo para o regime imperial. A obra de pacificação anteriormente realizada começa a acusar um progressivo desgaste. As contínuas campanhas militares no estrangeiro provocam o descontentamento do povo, a que se veio acrescentar o divórcio do imperador e o conflito com o papa.

A primeira conspiração, a do general Malet, oficial caído em desgraça, em Junho de 1808, tinha como objectivo (Napoleão encontrava-se então em Espanha) proclamar a abolição do Império e a instituição de um governo provisório. Cambacérès que, como habitualmente, ficava encarregado da regência na ausência de Napoleão, era o alvo dos conjurados, que previam prendê-lo no seu palácio a fim de o impedir de tomar as adequadas medidas.

Mas a conspiração, denunciada a Cambacérès que a desmontou, revelou-se um fracasso. Todavia, o informador do arquichanceler foi um prefeito da polícia e não o respectivo ministro, Joseph Fouché, já então Duque de Otranto, por quem Cambacérès nutria profunda antipatia, aliás amplamente retribuída. Avisado, Napoleão pediu a Cambacérès para vigiar mais estreitamente o ministro da Polícia.

Em 26 de Outubro, Napoleão informou Cambacérès de um novo projecto para cuja consecução tinha necessidade da sua competência. Sendo inegavelmente um bom jurista, estava constitucionalmente encarregado do estado civil da Família Imperial. Ora o imperador, casado com Joséphine (n. 1763), não podia esperar dela um filho, atendendo à idade.

Mas que fazer de uma monarquia hereditária sem herdeiro? Não seriam os seus irmãos a poder substituí-lo. Solução fora de questão para o imperador. E quanto ao príncipe Eugène de Beauharnais, filho do primeiro matrimónio de Joséphine, apesar das suas grandes qualidades e de adoptado pelo próprio Napoleão, não seria aceite pela família Bonaparte. Cambacérès mostrou-se inicialmente hostil ao divórcio; o imperador iria afastar-se ainda mais da Revolução, donde proviera, e Joséphine era muito popular, quer entre os civis, quer mesmo entre os militares. Separar-se para desposar uma Habsburg ou uma Romanov significaria o regresso ao Ancien Régime.

Esta atitude de oposição do arquichanceler foi incontestavelmente corajosa, já que a Família Imperial não gostava da imperatriz e não via qualquer inconveniente na separação. Além disso, mais do que da perenidade do Regime ou do seu reconhecimento internacional, esta atitude afrontava o ego de Napoleão.

Vencido, mas não convencido, com a sua proverbial sagacidade, Cambacérès providenciou no sentido de que o divórcio se processasse por consentimento mútuo. E que o casamento com Joséphine fosse anulado por uma entidade eclesiástica, já que o imperador pretendia desposar uma princesa católica e que o primeiro matrimónio, realizado clandestinamente na véspera da Sagração, se efectuara religiosamente.

Assim, o arquichanceler inventou um processo de excepção, que foi seguido ponto por ponto. Após reunião do Conselho de Família, em 15 de Dezembro, o imperador e a imperatriz fizeram uma declaração com vista ao divórcio (em que Napoleão verteu algumas lágrimas). No dia seguinte, o Senado pronunciou a dissolução do casamento.

Foi Cambacérés quem redigiu o "Sénatus-Consulte" (Senatus Consultum): «O casamento entre o imperador Napoleão e a imperatriz Joséphine está dissolvido.»

A questão foi mais complicada no que respeitou ao foro do casamento religioso. O pedido de anulação foi desencadeado em 22 de Dezembro, perante o tribunal eclesiástico de Paris. Os membros declararam que seria necessário apelar a Roma - uma má ideia, já que o papa estava cativo em Savona e acabara de excomungar o imperador - ou, pelo menos, aos bispos reunidos em Paris.

Na perspectiva de um fracasso, Cambacérès reuniu uma comissão eclesiástica para decidir sobre a forma do julgamento que deveria ser convertido em matéria canónica. O arquichanceler encarregou-se da composição da comissão, que foi composta por cinco capelães do imperador e dos príncipes e que se reuniu no palácio do cardeal Feschi. A comissão declarou que a autoridade diocesana de Paris era competente para julgar o caso. A decisão foi tomada em 9 de Janeiro de 1810, e publicada no "Moniteur" em 14 de Janeiro seguinte. Napoleão ficou, assim, livre dos seus laços com Joséphine.

O imperador queria, finalmente, fazer parte de uma família de reis. Por razões que não é possível aqui detalhar, Cambacérès era partidário de uma aliança com a Rússia (os Romanov) de preferência à Áustria (os Habsburg). Essas eram, também, as preferências do imperador. Tratando-se de uma questão de Estado, os intervenientes abstiveram-se de considerar as inclinações pessoais do imperador por qualquer das princesas.

Num primeiro momento, foram ouvidos Champagny, ministro das Relações Exteriores, Murat, Lebrun, Eugène de Beauharnais, Talleyrand, Garnier, Fontaine e, evidentemente, Cambacérès. A maioria optou pela solução austríaca, e a escolha recaiu, como já referimos anteriormente, na arquiduquesa Maria Luísa, filha mais velha de Francisco II (I). O casamento realizou-se por procuração em Viena, em 11 de Março e Maria Luísa chegou a França em 27 desse mês. Em 1 de Abril, as Tulherias foram o grandioso cenário do casamento civil.

Os meses seguintes foram mais calmos para Cambacérès. Estando o imperador em Paris, o arquichanceler pôde dedicar-se aos problemas da sua especial competência: justiça e assuntos eclesiásticos e familiares.

Do ponto de vista religioso a situação era sensível. O arquichanceler trabalhou na restauração da rede de paróquias mas as nomeações episcopais constituíam caso mais delicado. O papa, na situação de cativo, recusava a investidura canónica dos bispos nomeados em Itália, na França e na Alemanha pelo imperador, situação que entravava a vida religiosa, uma vez que os bispos nomeados pelo poder não podiam assegurar o respectivo ministério.

Napoleão desejava resolver rapidamente a questão das investiduras canónicas, através de um "Sénatus-Consulte", mas Cambacérès opôs-se energicamente a esta solução que só teria provocado uma ruptura imediata ao criar uma Igreja nacional. Propôs-se então convocar uma comissão eclesiástica que sugerisse a realização de um concílio. Não querendo Pio VII convocá-lo, e estando o imperador reticente, a decisão só foi tomada em 1811. Os bispos reuniram-se em Notre-Dame de Paris  mas não se inclinaram para a solução desejada. Napoleão determinou  a suspensão das sessões em Agosto de 1811, prevendo o reenvio dos prelados para as suas dioceses.

Mais uma vez Cambacérès conseguiu exercer moderação e propôs uma manobra. Em resumo: era deixado ao papa o seu direito institucional, mas ele não poderia opor-se à escolha imperial mas tão só retardá-la. Se decorridos seis meses o papa não tivesse dado o seu acordo, o arcebispo metropolita ou o bispo mais antigo da província eclesiástica providenciariam nesse sentido.

O papa recusou e o conflito prosseguiu até ao fim do Império e contribuiu para minar a autoridade do regime.

Alguns prelados, a começar pelo cardeal Feschi, arcebispo de Lyon, Primaz das Gálias e tio de Napoleão (o sobrinho catapultara-o para a chefia da Igreja em França), começaram a marcar as suas distâncias. Cambacérès evitou o pior, mas não coneguiu conciliar os pontos de vista antagónicos.

O nascimento do rei de Roma (Napoleão II) em 20 de Março de 1811, cumpriu os votos de Napoleão Bonaparte. Cambacérès esteve presente em toda a cerimónia, e registou com emoção o acto, tendo sido encarregado, como de uso, da preparação do baptizado do herdeiro do trono, que teve lugar em 9 de Junho, festa da Santíssima Trindade.

Iniciada a guerra com a Rússia, como fora aliás previsto, em Maio de 1812, Cambacérès ficou com a gestão dos assuntos correntes a seu cargo. Em 22 de Outubro, teve lugar a segunda tentativa de golpe de Estado do general Malet. A conspiração, cujos pormenores não cabe aqui descrever, pareceu ter êxito nas primeiras horas, mas foi debelada, devido às informações fornecidas por um oficial do Estado-Maior. O arquichanceler foi verdadeiramente apanhado de surpresa. Napoleão mostrou-se desta vez verdadeiramente preocupado, abreviou o seu regresso da Rússia (uma campanha desastrosa) e apesar dos elogios tecidos a Cambacérès a sua confiança neste ficou diminuída.

Os últimos acontecimentos convenceram o imperador que, apesar da lealdade de Cambacérès, não era conveniente deixar o exercício do poder (na sua ausência) a uma só pessoa. Resolveu nomear a imperatriz como regente e fazer coroar o rei de Roma, deixando, todavia nas mãos do arquichanceler a gestão dos assuntos correntes. Sendo as circunstâncias do momento desfavoráveis à coroação de Napoleão (II), os altos funcionários prestaram juramento de fidelidade (um ano mais tarde) ao efémero rei de Roma.

Quanto à regência, Cambacérès pretendera que ela fosse confiada a Joseph Bonaparte, o irmão mais ligado a Napoleão, mas o imperador não queria ninguém da sua família em tal lugar.  A regência passou a ser exercida por um Conselho, onde o arquichanceler (1º conselheiro) mantinha a direcção dos assuntos correntes, tarefa que já lhe era familiar. A imperatriz-regente presidia ao Senado e ao Conselho de Estado  e os ministros, cujo Conselho seria presidido pelo arquichanceler, teriam competência nos departamentos respectivos.

As armas de Cambacérès

No dia da investidura da Regente, em 30 de Março de 1813, o imperador disse a Cambacérès que não valia a pena sujar o espírito de uma jovem com certos pormenores. Ele leria os relatórios e escolheria os que deveriam ser comunicados à imperatriz.

Em 15 de Abril de 1813, depois de ter feito o Senado votar uma incorporação de mais 180.000 homens, o imperador voltou a reunir-se ao exército.

Em 26 de Abril de 1813, mal chegou a Mayence, o imperador escreveu ao ministro da Polícia, Savary, para lhe pedir que não enviasse à imperatriz relatórios que lhe pudessem "gâter l'esprit". Aliás, o arquichanceler apenas receberia uma cópia dos relatórios enviados directamente ao imperador.

Registando o lado anedóctico, ficámos a conhecer, a propósito da imperatriz ter recebido no seu quarto o arquichanceler, prática muito usual na alta sociedade da época, uma carta do imperador repreendendo a mulher: «Madame et chère amie, j'ai reçu la lettre par laquelle vous m'avez fait connaître que vous avez reçu l'archichancelier étant au lit: mon intention est que , dans aucune circonstance et sous aucun prétexte, vous ne receviez qui que ce soit étant au lit. Cela n'est permis que passé l'âge de trente ans.»

A imperatriz continuava a presidir ao Senado e ao Conselho de Estado, sempre acompanhada por Cambacérès, que permanecia com os assuntos políticos a seu cargo, incluindo a vigilância do rei Joseph, com quem o irmão estava descontente, e a do ministro da Polícia.

Em Junho de 1813, o arquichanceler foi encarregado de transmitir ao ministro da Polícia que as suas mensagens relativamente ao estado da opinião pública começavam a importunar seriamente o imperador: o que era necessário era "fazer arrepender a Áustria das suas pretensões loucas".

A continuação da guerra implicava sucessivas incorporações de soldados: mais 90.000 em Agosto; mais 280.000 em Outubro; mais 300.000 em Novembro. Uma caricatura da época, Le Minotaure Corse, mostrava Cambacérès servindo a Napoleão grandes pratos cheios de soldados. As finanças acusavam também um profundo desgaste.

Em 9 de Novembro, Napoleão regressou a Paris. Tratava-se de obter novos recursos financeiros que o Senado tinha, entretanto, autorizado. Mas importava a decisão do Corpo Legislativo, cuja convocação se afigurava inoportuna, dado que não era muito submisso às iniciativas imperiais. Como os deputados se encontravam já em Paris, Napoleão resolveu presidir à sessão de 19 de Dezembro, o que permitiu a Cambacérès uma nova - e última - manobra parlamentar. Foi decidido nomear uma comissão mista composta por membros do Senado e do Corpo Legislativo, para examinar os principais documentos das negociações e produzir um relatório para o imperador, que deveria ser publicado: esta comissão concluiu pelo regresso às "fronteiras naturais" da França, isto é, um refluxo para cá dos Alpes, dos Pirenéus e do Reno. Conhecendo bem Napoleão, Cambacérès esforçou-se por dourar a pílula, e as observações relativas à governação propriamente dita foram devidamente moderadas.

Em 29 de Dezembro, o Corpo Legislativo decidiu a publicação do relatório, por quase-unanimidade. O imperador pretendeu imediatamente adiar a publicação, pois via neste documento um ataque pessoal, urdido pelos seus inimigos.

Uma vez mais, Cambacérès teve a coragem de dizer a Napoleão que o adiamento significaria pura e simplesmente uma ruptura entre a França e o imperador, o que representaria um perigo extremo. Apesar de tudo, Napoleão persistiu na sua intenção e assinou, em 31 de Dezembro, o decreto de adiamento. No dia seguinte, proferiu um discurso perante o Corpo Legislativo, dizendo em substância que a salvação da Nação repousava sobre o monarca e não sobre uma assembleia que dependia de si.

Em 25 de Janeiro de 1814, Napoleão deixou Paris, reunindo-se aos seus marechais em Châlons. Entretanto, Cambacérès e Joseph organizaram a defesa e o aprovisionamento da cidade, mantendo sob vigilância a imperatriz e os ministros.

Escusado será referir que a confiança pública se afundou definitivamente e o Mont-de-Piété suspendeu os reembolsos. Em 5 de Fevereiro, Cambacérès solicitou instruções sobre a destruição dos seus papéis em caso de fuga. E em 6, anunciou que estavam a ser organizadas preces públicas nas Tulherias pela salvação da França. Napoleão ficou fora de si: estariam todos doidos em Paris?

Apesar de alguns sucessos militares em fins de Fevereiro e princípios de Março, que mais não fizeram do que retardar o inexorável, a situação piorou francamente nos finais deste mês. Enquanto os membros do Conselho insistiam no sentido de a imperatriz permanecer em Paris, segundo o que eles supunham ser o desejo do imperador, Joseph deu conta de duas cartas recebidas do irmão, pedindo que o rei de Roma fosse a todo o custo subtraído às mãos dos aliados. Em 29 de Março, a imperatriz decidiu-se a partir, acompanhada pelo filho e sob a protecção do arquichanceler. Foi combinado que Talleyrand os acompanharia. Mas este, usando um estratagema, conseguiu ser intersectado na fuga pelos guardas nacionais. Pôde, assim, permanecer na capital, enquanto Cambacérès percorria o caminho em direcção ao vale do Loire. Uma vez liberto de constrangimentos, podia agora Talleyrand trabalhar a favor do regresso dos Bourbons.

Em 1 de Abril, o Senado designou um governo provisório presidido por Talleyrand e em 3, proclamou a destituição do imperador. A notícia só chegou no dia 7 a Blois, onde se encontrava a imperatriz. Cambacérès escreveu imediatamente a Talleyrand para lhe assegurar a sua "adesão a todos os actos emanados do Senado a partir do dia 1 de Abril corrente". Esta atitude, por parte do mais fiel conselheiro do imperador, traduz inequivocamente a maleabilidade das suas convicções face ao curso dos acontecimentos. Dois dias depois, chegou um emissário do Tsar, com a incumbência de tomar conta da imperatriz e do seu filho e de os conduzir a Orléans. A comitiva da imperatriz dispersou-se, cada um apressando-se a regressar o mais rapidamente possível a Paris.  Cambacérès, esperando fazer-se esquecer, acompanhado do sobrinho regressou também a Paris.

Cambacérès esperou que o fim do regime imperial lhe trouxesse a paz da reforma. Mas tal não aconteceu. Como a mudança de regime não lhe retirou a qualidade de senador, participou na sessão em que o Senado apelou a "Son Altesse Royale Monseigneur le Comte d'Artois, sous le titre de lieutenant général du Royaume, en attendant que Louis-Stanislas-Xavier de France appelé au trône des Français, ait accepté la Charte Constitutionelle".  A Assembleia tentou, assim, preservar as formalidades produzidas durante a Revolução: a dignidade de rei, adquirida pelo direito constitucional do Ancien Régime a partir da morte do seu predecessor, não se adquiriria, segundo o texto, a não ser em virtude da Carta e da vontade da Nação. O novo monarca não teve em conta esta ficção, preferindo aquela segundo a qual ele reinava desde 1795 (data da morte de Luís XVII, que não chegou a reinar, na Prisão do Templo, em Paris).

A partir da queda do Império, Cambacérès perdeu todos os seus cargos oficiais e o título de duque de Parma, mas conservou o título de duque de Cambacérès. Deixou de ser arquichanceler e de velar pelo destino da Justiça, tendo sido substituído pelo chanceler Dambray. Quando o Senado foi substituído por uma Câmara dos Pares, não obteve a qualidade de Par de França, já que os antigos deputados à Convenção que haviam votado a morte de Luís XVI foram excluídos. E renunciou ao seu cargo de Grão-Mestre-adjunto do Grande Oriente de França, e a todos os seus cargos nas lojas de que era mestre, apesar da insistência dos seus irmãos maçons, que teriam desejado vê-lo continuar em funções.

Os caricaturistas, esses foram impiedosos a seu respeito, não poupando alusões à sua homossexualidade.

Convém, no entanto, referir, que Cambacérès manteve a sua imensa fortuna e o seu palácio na rua Saint-Dominique. Despediu uma parte do pessoal doméstico, a fim de reduzir as despesas, e deixou de receber em grande estilo, mantendo todavia os seus convivas mais próximos. A sua atitude em relação ao novo regime foi de acolhimento, recusou participar nos complots para restaurar Napoleão e foi ostensivamente a Saint-Denis, em 21 de Janeiro de 1815, aquando da transferência das cinzas de Luís XVI. Todavia, permaneceu suspeito. Quando, por essa altura, Barras escreveu a Luís XVIII para lhe sugerir a substituição dos ministros impopulares por antigos servidores do regime imperial, entre os quais Cambacérès, a sugestão foi tomada como um complot e o próprio Fouché foi visitá-lo para o aconselhar a fazer provisão de roupa adequada, caso viesse a ser preso. Não aconteceu nada mas a inquietação de Cambacérès manteve-se.

Quando estalou a notícia do regresso de Napoleão, Cambacérès não a acolheu com alegria, pois não desejava retomar o seu serviço. Verdadeiramente doente, declarou a Carnot: «je tiens à être oublié, à ce qu'il [Napoléon] me laisse à l'écart. [,,,] J'ai promis au roi de ne pas bouger.» Absteve-se mesmo de ir saudar o imperador às Tulherias e só se apresentou quando, velho e alquebrado, este o mandou chamar. Napoleão dirigiu-lhe então o cumprimento que parece traduzir a verdadeira definição do seu papel: «On se figure que vous êtes mon régulateur, que sans vous, je casserais, je briserais tout.» Foi-lhe atribuída a pasta da Justiça, no governo dos "Cem Dias".

Prestando juramento ao novo soberano, em nome do Governo, proferiu um discurso que é todo um programa político, de reconciliação, respeito e liberdade:

«Déjà Votre Majesté a tracé à ses ministres la route qu'ils doivent tenir; déjà elle a fait connaître à tous ses peuples, par ses proclamations, les maximes d'après lesquelles elle veut que son Empire soit désormais gouverné. Les Bourbons avaient promis de tout oublier et n'ont point tenu leur parole. Votre Majesté tiendra la sienne, oubliera les violences des partis [...] Elle oubliera aussi que nous avons été les maîtres du monde et ne fera de guerre que pour repousser une agression injuste. Elle [...] veut le respect des personnes, le respect des propriétés, la libre circulation de la pensée, et nous serons heureux de la seconder dans l'acomplissement de cette tâche [...].»

O Império restaurado não era já, teoricamente, o mesmo regime que terminara em 1814. O imperador prometia uma monarquia constitucional. Cambacérès, que já vira passar tantos regimes, não acreditava em grandes modificações. Em 22 de Abril, Napoleão promulgou o Acto Adicional às Constituições do Império, que de adicional só tinha o nome, já que o regime fora radicalmente alterado. O Governo prestou juramento à nova Constituição em 1 de Junho de 1815.

A formação de nova coligação contra a França obrigou Napoleão a partir novamente para a guerra. Foi estabelecida uma nova regência, desta vez sob a autoridade de um Conselho presidido pelo rei Joseph. O papel de Cambacérès como ministro da Justiça, nesta nova orgânica, era absolutamente secundário. A regência durou pouco mais de uma semana. A derrota de Waterloo precipitou o regresso de Napoleão a Paris, em 21 de Junho. Na reunião do Conselho de Ministros, no Eliseu, Cambacérès evitou manifestar-se sobre as propostas do imperador, que desejava retomar o combate. Vencido pela agitação parlamentar e renunciando a um golpe de Estado, Napoleão abdicou em 22 de Junho. Perante o fracasso, o ministro da Justiça não colocou qualquer obstáculo à dissolução da Câmara dos Pares, a que agora presidia. Em 8 de Julho, Luís XVIII retomava o trono e Cambacérès regressava à vida privada,

Nos primeiros tempos a sua vida foi calma. Sempre preocupado com as suas economias, vendeu o seu palácio à duquesa d'Orléans e instalou-se num mais modesto no Faubourg Saint-Germain, no nº 21 da rue de l'Université. Todavia, os ultra-realistas empenhavam-se em afastar todas as pessoas que tinham sido próximas do ogre da Córsega. Encorajados por Chateaubriand, permitiram-se desencadear uma violenta campanha de imprensa contra Cambacérès, a que este respondeu com o silêncio. Contudo, as eleições para a Câmara em 7 de Outubro de 1815 vieram baralhar os dados. Em 12 de Janeiro de 1816 foi votada uma lei dita de amnistia que ia, na realidade, contra a vontade de perdão que Luís XVIII expressara no seu segundo regresso do exílio. Desta amnistia ficavam excluídos os titulares dos grandes cargos civis e militares que haviam participado nos Cem Dias e os regicidas que tinham aceite lugares do usurpador. Isto é, Cambacérès se não entrasse numa categoria, entrava na outra. Aos vexames sucediam-se as perseguições.


Cambacérès foi banido, mas conservou grande parte da sua fortuna. A exemplo das outras grandes figuras do Império, foi privado das suas dotações e excluído do Institut, mas conservou os seus móveis e imóveis. Mudando-se para o novo reino dos Países-Baixos, passou três anos em Bruxelas, num modesto apartamento. Entregava-se a obras de caridade e deslocava-se ostensivamente à Catedral. Todos os dias ia ao parque de Bruxelas na companhia do já citado Lavollée, onde se encontrava com outros exilados.

Todavia, Cambacérès não esquecia Paris, e o exílio era-lhe demasiado penoso. As diligências feitas junto de Decazes, primeiro-ministro de Luís XVIII, acabaram por resultar e o ex-arquichanceler obteve ganho de causa.

Uma disposição real de 13 de Maio de 1818, concretizou o perdão: Cambacérès recuperou as suas rendas em 5%, os seus direitos civis e políticos, o grande cordão da Legião de Honra e o direito de habitar em Paris.

Os últimos anos da sua vida foram consagrados a preparar as suas Memórias. Fechado em casa, recebendo apenas a família e os íntimos, passou a viver uma espécie de luto permanente, vestindo-se habitualmente de preto ou castanho. Em 1 de Março de 1824, depois de um almoço com a família. foi acometido de um ataque de apoplexia - a que hoje chamaríamos acidente vascular cerebral - que o deixou em estado vegetativo, até á sua morte, em 8 de Março seguinte. Em 12 de Março, o "Journal des Débats"  lembrava, em breve notícia necrológica, que na sequência do perdão do rei, «la conduite de M. le duc de Cambacérès fut irréprochable.»

As exéquias do antigo arquichanceler foram sumptuosas. Pelas 10 horas foi erguida uma câmara ardente sob a grande porta do palácio da rue de l'Université. Perante ela desfilou imensa multidão. O cortejo fúnebre iniciou-se ao fim da manhã, sendo o carro funerário precedido por 300 soldados de infantaria e uma companhia de veteranos. Mais de mil pessoas acompanharam o cortejo à igreja da sua paróquia, Saint-Thomas d'Aquin, inteiramente revestida de negro e decorada com as suas armas. O catafalco foi rodeado de quatro estátuas: a Religião e as três virtudes teologais (Fé, Esperança e Caridade). À celebração religiosa estiveram presentes, além das pessoas que conseguiram entrar na igreja, muitos dos sobreviventes da Revolução e do Império. Talleyrand, Gaudin, vários marechais, o primeiro-ministro Decazes, a título pessoal.

Cambacérès escolheu para sua última morada um jazigo sóbrio, no cemitério do Père Lachaise, que ainda hoje pode ser visitado.

Jazigo no Cemitério do Père Lachaise

No que à sucessão respeita, o governo esforçou-se por recuperar os papéis julgados importantes do famoso homem político. Quanto aos bens foram herdeiros os dois sobrinhos, filhos do seu meio-irmão, o mais velho com dois terços e o mais novo com um terço do património. Outras pessoas da família foram igualmente contempladas, e também Séguier, primeiro presidente do tribunal real de Paris (ignora-se porquê?), o fiel secretário Lavollée e a Igreja Católica, especialmente a sua paróquia de Paris e a catedral de Montpellier.

Ao fim de uma vida realmente agitada, Cambacérès morreu como um grande senhor.

O antigo membro da Convenção tornado duque era um paradoxo vivo. Avaro com os estranhos era generoso com as pessoas com quem mantinha laços de amizade ou de interesse. Libertino, não gostava das mulheres e só se encontrava à vontade com os seus próximos. Tímido, mantinha uma faustosa vida mundana, plena de jantares e recepções, no decorrer das quais saciava a sua gula, o que lhe evitava soçobrar de angústia. As suas convicções religiosas e políticas levavam-no a dar a impressão que já não conseguia distinguir muito bem o ritual cívico do ritual religioso. Franco-maçon convicto, favoreceu simultaneamente a reorganização da Ordem Maçónica e o renascimento da Igreja Católica após o período revolucionário.

O segundo cônsul tinha todas as qualidades para exercer um lugar de adjunto, no qual se movimentava perfeitamente, mas nenhuma para exercer ele mesmo a chefia. Homem fiel, entre as personagens que trilharam o caminho sob a Revolução e o Império, foi paradoxalmente dos mais leais a Napoleão, sem nunca abandonar as ideias que mantivera desde as suas origens.

Esforçou-se por fazer entrar o excepcional na norma, sem todavia o conseguir. Contudo, as pesquisas de Cambacérès testemunham também o colapso do direito divino. Mesmo em regime monárquico, tentou sempre encontrar algo para fundamentar a ordem social e o arbitrário. Definitivamente, foi porque incarnava o "extremo-centro" e não qualquer dos partidos que se opunham, que o arquichanceler pôde implementar algumas das mais preciosas realizações da Revolução e do Império: a unificação das leis e a pacificação da sociedade.


sábado, 11 de março de 2017

O GRANDE ABANDONO




Pela sua relevância, transcrevemos o artigo hoje publicado por Pacheco Pereira no PÚBLICO. Não que os refugiados, na sua maioria por causa das políticas ocidentais, não mereçam o nosso especial acolhimento, mas pelo sentimento de injustiça que os autóctones experimentam ao serem confrontados com alojamentos e outras condições para "estrangeiros" que em toda a sua vida nunca tiveram.

Interrogo-me, muitas vezes, e não é "teoria da conspiração", se toda a política ocidental no mundo árabe não terá sido intencionalmente planeada com o propósito, inconfessável, de provocar uma crise civilizacional, como o profeta da desgraça, Samuel Huntington, preconizou em The Clash of Civilisations, em 1996:



Na semana passada a televisão portuguesa fez várias notícias sobre a recepção de refugiados yazidis sírios e iraquianos e as condições que lhes estão a ser preparadas por algumas organizações, autarquias e o próprio Estado. Mostrava-se o interior de uma casa que ia ser entregue a uma família refugiada, e as condições em que iam recomeçar a sua vida em Portugal. Estava a ver essas imagens num café e restaurante popular, onde várias mulheres trabalham na cozinha. Conheço-as pessoalmente – é gente que tem um salário mínimo e que trabalha em muito más condições, num local quente e acanhado, durante imensas horas. Não são estatisticamente pobres, mas são pobres. Têm salário, têm uma profissão, precária que seja, têm famílias e filhos, são umas novas e outras de meia-idade, mas são pobres.

Já várias vezes tinha reparado que, quando há algo que lhes interessa na televisão, que ouvem mas não vêem na cozinha onde trabalham, chegam à porta da sala onde se serve café e ficam a ver. Não saem do espaço da cozinha, mas espreitam de lado. Crimes, raptos, histórias de doenças, pedofilia, prisões têm o seu olhar assegurado. Mas, neste caso, era a história dos refugiados e, perante as imagens da casa preparada para os receber, exprimiam uma profunda reprovação, total, completa: “Vão-lhes dar uma casa melhor do que minha.” “Eu trabalho toda a vida e a mim ninguém me dá nada.”

É verdade. E isto é algo que é sentido como uma enorme injustiça. E é uma injustiça. O bem-estar destas famílias e das pessoas como aquelas que estão ali a trabalhar duramente foi abandonado. E estamos assim a alimentar claramente o populismo, como Trump percebeu, como Le Pen percebeu, como os partidos que alinharam nestes anos de lixo do “ajustamento” não perceberam, socialistas, sociais-democratas, centristas, não perceberam ou lhe foram soberbamente indiferentes. E, com excepção do PCP, com as limitações do seu casulo ideológico, nem o Bloco de Esquerda, nem muita da esquerda mais radical não só não o percebeu, como ajudou a tapar esse enorme ressentimento e sentimento de perda com distracções que, podendo ser em si importantes, ao deslocarem-se para o centro do debate político, como as chamadas “causas fracturantes”, funcionaram como um real abandono destas famílias e pessoas. E como o discurso do Bloco de Esquerda faz muito da agenda política da esquerda, a começar pelo PS, o abandono destas pessoas pela política leva-os a procurar outros meios de representação que lhes dêem voz. É por isso que, como tenho insistido, existe uma correlação entre a política destes anos do “ajustamento” e o crescimento do populismo, e este é um resultado de um grande abandono político, à direita e à esquerda.

Mesmo o discurso, tanta vez abstracto, sobre os pobres ajuda a este abandono. Falar dos pobres é politicamente intangível, toda a gente fala dos pobres, mesmo que não faça nada por eles. E é verdade que os mais pobres sofreram muito com estes anos de política da troika, mas, como as suas expectativas não eram grandes, ficaram no seu gueto cuidadosamente vigiado pela assistência caritativa a que a politica de direita os remeteu. O papel do Estado na criação de um elevador social que lhes desse a esperança de sair da pobreza foi travado e eles ficaram ali, onde já estavam, numa redoma social, que a política do Governo PSD-CDS quis acima de tudo manter com receio da agitação social.

Mas, como muitas vezes acontece, a agitação social veio de outros lados, não da parte mais de baixo da escala social. Se analisarmos esses anos, as únicas organizações com algum sucesso em alargar a mobilização social e política foram do “meio” da escala social: os “precários” de diferentes associações, com muitas ligações ao Bloco de Esquerda, e os “reformados” da Apre!, que representavam um sector da “classe média”, profissões liberais, funcionários públicos, muitos que tinham sido eleitores do PSD e do PS. A isso se deve acrescentar, por justiça, e no meio de enormes dificuldades e num período de refluxo, a CGTP e os sindicatos. Sobre estes últimos repito o que já disse: imaginem o que seria o mundo laboral e a legislação do trabalho se não fosse a resistência sindical, e, mesmo assim, muito perderam com a aplicação mais durável e com maior sucesso e zelo do programa da troika pelo Governo PSD-CDS.

As mulheres que se revoltavam com a casa para os refugiados estão na parte mais de baixo desse “meio”, mas aquilo que sentem ter perdido, ou ter direito a ter, não vem em nenhuma estatística. Como acontece com uma parte do eleitorado trabalhador de Trump, não perderam tanto como pensam que perderam, mas o que perderam chega para se sentirem desprezados e abandonados. Conseguem manter algum rendimento, mas têm mais do que um emprego para sobreviver e olham para as ruínas das cidades industriais à sua volta e têm nostalgia da dignidade que lhes vinha de serem trabalhadores numa grande fábrica de automóveis, de terem um trabalho com um certo grau de especialização que era respeitado, nuns EUA que eram a “grande fábrica da democracia”.

Em Portugal, passa-se o mesmo. Podem não ter sido as principais vítimas do processo de “ajustamento”, mas foram-no também. E perderam muito mais coisas que os distinguem dos mais pobres, que esses perderam menos. Perderam a esperança de melhorar no futuro, encontraram no destino dos filhos uma barreira que antes não existia – a de verem a geração que se lhes seguia ter muito menos oportunidades que, mesmo assim, eles tiveram. Ainda conheceram nos seus pais e mães o que era a pobreza, mas têm o sentimento de que saíram dela, por serem mais educados e terem um trabalho que não era no campo. Não têm a certeza de que o mesmo vá acontecer aos seus filhos.

Se fizermos a transposição desse olhar de revolta para o plano político, há um factor que convém ter em conta – é que a direita está a perceber mais depressa do que a esquerda a essência do “trumpismo”. Ainda não é capaz de mobilizar esse descontentamento, porque está muito acantonada socialmente e o populismo precisa de líderes e protagonistas vindos da televisão que escasseiam. Mas caminha para aderir ao seu modus operandi naquilo que é mais perigoso – o discurso social e a “pós-verdade” que circula pelas redes sociais.

Não é de agora a proximidade da direita portuguesa ao programa de Trump, já vem de antes, mas falta-lhe a componente populista. Quando se vê um conjunto de cartazes da Juventude Popular, já com alguns anos, é patente a proximidade. Aliás, enquanto o CDS passou a Partido Popular, e depois de novo a CDS-PP, a antiga Juventude Centrista mudou para Juventude Popular e por aqui ficou. Esses cartazes falam de “liberdade”, “segurança” e “impostos”, mas em que termos? A “liberdade” é: “A nossa geração não precisa de subsídios. Só queremos que nos deixem trabalhar.” A “segurança” é: “O Estado protege os criminosos. Quem nos protege a nós?” Os “impostos” são: “Dois milhões de pessoas com rendimento mínimo. Quem pensas que anda a pagar essa avareza?” Para além dos jovens populares não saberem o que significa “avareza”, não se ficam por aqui. Há outros cartazes com imagens, com jovens muito “betos” para serem eficazes fora do círculo social do CDS, mas mesmo assim esclarecedores: “Trabalhas toda a noite num bar para pagares a faculdade, o Estado tira-te 20% para dar a quem não quer trabalhar.” “O Estado rouba-te os sonhos e distribui-os por quem nada quer fazer.” E uma defesa do cheque-ensino ao modo da secretária de Trump para a Educação, Betty DaVos.

Portanto, o programa está cá, falta apenas o salto populista. O abandono a que foram deixados os trabalhadores, os pequenos empresários, os operários, uma massa de gente a quem tiraram o futuro e amachucaram o presente geram ressentimento que, como a água, segue o caminho mais fácil. Ele encontra-se no olhar para a casa limpa e composta que espera os refugiados e não precisa dos mastins da extrema-direita para lhe indicar os alvos. Eles sabem que o CDS, o PSD, o PS os abandonaram à sua sorte, estão-se literalmente borrifando para as “causas fracturantes” do Bloco de Esquerda, e a “linguagem de pau” do PCP não os mobiliza. Eles esperam no seu fel – até um dia.

quinta-feira, 9 de março de 2017

A HOMOSSEXUALIDADE NO CINEMA



"Les Ailes"

A propósito da recente atribuição de um Oscar ao filme Moonlight, de Barry Jenkins, o escritor François Reynaert publicou no nº 2730 de "L'OBS", desta semana, um artigo que, embora muito sucinto, aborda a problemática da apresentação nos ecrãs da questão da orientação sexual, que Hollywood sistematicamente camuflou em nome dos "bons costumes", ainda que a maior parte dos celebrados galãs da Meca do Cinema se tenham entregado ao longo da sua vida, mais ou menos clandestinamente, aos prazeres homófilos. Como hoje se sabe já muita coisa, e apesar de novos tabus, não pôde mais Hollywood ignorar a realidade, acabando por premiar este ano, ainda que no meio de certa confusão, um filme cuja temática é uma relação gay, ainda por cima entre afro-americanos, o que deverá ter sobressaltado os ortodoxos WASP's, cuja hipocrisia nunca é demais enaltecer.

Pelo seu interesse transcrevemos o texto:

PASSÉ-PRÉSENT. En donnant un Oscar au film de Barry Jenkins, Hollywood entend combattre l'homophobie. Pendant des décennies, elle l'a promue.

 

La critique a été unanime et les lauriers s'enchaînent : le voici Oscar 2017 du meilleur film. "Moonlight", de Barry Jenkins, l’histoire de l’acceptation de son orientation sexuelle par un jeune Noir d’une banlieue sinistrée de Miami, est un des grands succès de l’année. 

Tous les commentateurs ont salué l’originalité du propos : parler de l’homosexualité chez les Afro-Américains, ça n'est pas fréquent. Parler de l’homosexualité tout court, si. Le sujet, à Hollywood, est devenu banal. Il n’est pas indifférent de rappeler que dans la puritaine Amérique, cela n’a pas toujours été le cas.

Contrairement à ce que l’on pense généralement, cette histoire n’a rien de linéaire. Les premiers temps du cinéma sont plus ouverts qu’ils ne le seront. Sans doute ne peut-on parler d’homosexualité stricto sensu – jusque dans les années 1960, elle est illégale dans pratiquement tous les Etats –, mais clairement d’homo-sensualité. Un des tout premiers films de 1895, intitulé plus tard "The Gay Brothers", montre deux hommes dansant au son d’un violon.

Que dire de l’hallucinante scène finale des "Ailes" ("Wings", sorti en 1927), une ode aux as de l’aviation sur le front français, pendant la Grande Guerre. L’émouvante mort du héros dans les bras de son compagnon d’armes est un passage obligé du récit militaire, mais pousser l’émotion à ce point ! Durant quatre longues minutes, les deux hommes se caressent le visage et s’embrassent sur les lèvres en pleurant à chaudes larmes.


"Moonlight"

 Les spectateurs voyaient-ils dans ce grand moment ce que l’on y voit de façon évidente, aujourd’hui ? En tout cas, cela n’a pas empêché le film d’être le premier de l’histoire à être couronné par un oscar en 1929.

Dietrich en smoking

Cinq ans à peine plus tard, c’eût été impensable. En entrant dans l’ère du parlant, le cinéma découvre aussi le bâillon. Pour se conformer à l’ambiance nouvelle qui règne dans un pays jeté à genoux par la crise, Hollywood accepte de se conformer à un "code de moralité" élaboré par le sinistre William Hays, pasteur et politicien, qui lui a laissé son nom.
 
 
Marlene Dietrich, em "Morocco"
 
Pendant quelques années – appelées par les spécialistes "pre-code Hollywood" –, le texte n’est qu’un paravent. Les studios continuent à mettre en scène tout ce qu’ils adorent, des gangsters plus sympathiques que les policiers, des prostituées qui font fortune ou, dans "Morocco" (1930), Dietrich en smoking d’homme, se penchant vers une femme pour la baiser sur la bouche.
 
La pression des ligues de vertu, surtout catholiques, a raison de ces dérives. A partir de 1934, le Code Hays est appliqué à la lettre. 

Ce "jeune homme triste"...

Désormais l’homosexualité doit disparaître ou n’être évoquée que de façon clairement négative. Même la moquerie visant la "folle" – pourtant un pilier ancestral de l’homophobie – n’est pas si fréquente : M. Hays proscrivait les jeux sur les rôles sexuels.

Sal Mineo e James Dean, em "La Fureur de Vivre"

Il faut être un génie comme Billy Wilder pour prendre le sujet à bras le corps dans "Certains l’aiment chaud" (1959) – l’histoire de deux musiciens obligés de se déguiser en femme pour échapper à la mafia – et réussir à en faire un hymne merveilleux à la tolérance.

En général, on a moins d’humour. Le gay – tout au moins celui que tout le monde devine tel –, c’est ce "jeune homme triste" dont parle l’historien du cinéma Richard Dyer, c’est l’ami fragile de James Dean dans "la Fureur de vivre", le fils sensible de "Soudain l’été dernier", dont on sent bien, dès le début, qu’il va mal finir.

Quand il n’est pas tué, il tue. "La Corde", de Hitchcock ("Rope", 1948), raconte l’histoire de deux étudiants qui, par jeu philosophique, assassinent un de leurs camarades : rien n’est dit des mœurs de ces deux esthètes délicats. Tout clignote pour qu’on les comprenne.

Le courage de Rock Hudson

Dans les années 1960, le Code est abandonné. La société entière semble prête à faire craquer son corset. En 1969, les "émeutes de Stonewall – la révolte des clients d’un bar gay de New York contre la police – marquent traditionnellement le premier jalon de la libération. La route reste longue. En 1970, "les Garçons de la bande" est la première comédie américaine mettant en scène des personnages se revendiquant clairement homos. Certains dialogues montrent la considération qu’ils ont d’eux-mêmes : "Montre-moi un homosexuel heureux, dit la plus célèbre réplique du film, et je te montrerai son cadavre."

L’irruption du sida, au début des années 1980, rebat les cartes d’une façon tragique. En 1985, Rock Hudson, idole virile, confesse avec courage la raison pour laquelle il est hospitalisé à Paris.
Hollywood ne peut plus nier le sujet. L’épidémie s’accompagne d’une parano, souvent homophobe, qui renforce les préjugés sur les "pervers" qui attirent de tels châtiments. Elle finit aussi par susciter la compassion. "Philadelphia" (1993), l’histoire d’un avocat touché par la maladie qui se bat contre la boîte qui l’a licencié, passe par la voie du mélo pour rendre grand public un sujet hier encore considéré comme tabou. 

En nous racontant l’histoire d’amour entre deux cow-boys, et donc en subvertissant le cœur même de l’identité virile américaine, "Brokeback Mountain" (2005), chef-d’œuvre d’Ang Lee, marque un changement d’ère.

François Reynaert

sábado, 4 de março de 2017

OS JOVENS NO IMPÉRIO ROMANO



Cambridge University Press, 2011

Être enfant à Rome

Un garçon de douze ans pouvait être choisi comme partenaire sexuel par un patricien romain s’il était fils d’esclave. Les enfants de citoyens, eux, vivaient dans un cocon. Au-delà de ce contraste saisissant, la tendance actuelle des historiens à récuser l’existence de sentiments affectifs des parents pour les jeunes ne fait pas l’unanimité.


Roman children often seem to be absent from the ancient sources. How did they spend their first years of life? Did they manage to find their way among the various educators, often slaves, who surrounded them from an early age? Was Roman education characterised by loving care or harsh discipline? What was it like to be a slave child? Were paedophilia and child labour accepted and considered 'normal'? This book focuses on all 'forgotten' Roman children: from child emperors to children in the slums of Rome, from young magistrates to little artisans, peasants and mineworkers. The author has managed to trace them down in a wide range of sources: literature and inscriptions, papyri, archaeological finds and ancient iconography. In Roman society, children were considered outsiders. But at the same time they carried within them all the hopes and expectations of the older generation, who wanted them to become full-fledged Romans.


Il existe étonnamment peu de bonne poésie sur les très jeunes enfants. Peut-être est-ce dû au manque de sommeil : pendant les premiers mois, il est déjà difficile de ne pas oublier de sortir les poubelles, alors écrire des poèmes… Le premier, sans doute, à avoir sérieusement tenté d’évoquer le monde de la prime enfance fut l’auteur latin Stace, contemporain de l’empereur Domitien, au Ier siècle de notre ère. Dans l’un de ses textes les plus surprenants, il prend dans ses bras un nouveau-né qui « respire l’air nouveau en poussant des vagissements tremblants ». Petit à petit, il apprend à interpréter les requêtes inarticulées de l’enfant et à panser ses « blessures cachées ». Plus tard, une fois que le bébé a appris à ramper, Stace le soulève et l’embrasse, tant et si bien que, bercé dans les bras de l’écrivain, il est peu à peu gagné par le sommeil. Le nom de Stace sera le premier mot prononcé par le bambin, et son visage lui servira de « premier joujou ». Combien d’autres poètes, dans n’importe quelle langue, ont décrit l’expérience qui consiste à se faire triturer le visage par un bébé fasciné ?   Instincts paternels Le choc n’en est que plus rude lorsqu’on découvre que ce petit garçon n’était pas le fils de Stace, mais son esclave. « Il n’était pas de ma lignée, pas plus qu’il ne portait mon nom et n’avait mes traits ; je n’étais pas son père […] non, il était à moi, c’était ma propriété (1). » Il s’agissait d’un verna, un enfant « élevé…

sexta-feira, 3 de março de 2017

A ANUNCIADA MORTE DA EUROPA




A União Europeia é uma contradição nos termos. Iniciou-se a partir de um lamentável equívoco - ou talvez não -, cresceu alimentando infundadas esperanças que se foram progressivamente desvanecendo, e chegou à presente situação de anomia cuja incongruência já ninguém consegue disfarçar.

Ouço clamores contra o Brexit, soaram apocalípticas trombetas contra esse "passo irreflectido" conduzindo a Europa a uma desagregação que só peca por tardia. O Reino Unido nunca deveria ter entrado na União Europeia. Nisso tinha muita razão o general De Gaulle, que sempre se opôs ao ingresso nas Comunidades da pérfida Albion. Resolveu sair agora. Ainda bem. Pois que saia. E de vez.

Todos sabem, ou deveriam saber, que as Ilhas Britânicas poucas afinidades têm com o Velho Continente e só dele se serviram na defesa dos seus próprios interesses, quando pretenderam sustentar a miragem do Império Britânico. Ficam muito melhor ligadas umbilicalmente aos Estados Unidos, um país que é um seu filho bastardo e  donde têm emergido a maior parte dos males que afectaram o mundo nos últimos dois séculos. A própria Europa Continental possui significativas diferenças a todos os níveis relativamente aos países que a compõem. Há uma zona setentrional, i.e., a Escandinávia, que nada tem a ver com os países do Sul. E há uma zona leste, eslava, ortodoxa, que não se revê, como se tem constatado, no figurino que burocraticamente lhe foi imposto por Bruxelas. Por sua vez, a zona meridional, com muito mais afinidades com o norte de África do que com os países do Norte, não se reencontra no torvelinho imaginado pela Alemanha (esse outro actor julgando ainda hoje representar a sucessão do Sacro Império) dos défices e das dívidas.

Desta União não sai a força mas simplesmente a fraqueza; é uma comunidade artificialmente mantida por aqueles que vivem à custa dela ou, dela se servindo, pretendem adiar a proclamação de uma morte já há muito anunciada.

A Velha Europa (continental) mosaico com dois mil anos de diversificada História, habitada por povos de etnias, línguas, religiões, costumes diferentes não é, nunca poderia ser, homogeneizável num espartilho regulamentatório, tão ineficaz quanto ridículo.

Estamos, pois, no início do desmoronamento. Desejamos que ele se faça com o mínimo de custos, porque é sempre mais difícil desfazer uma organização deste tipo do que criá-la. A ideia de uma "Europa Unida", na perspectiva com que foi edificada, foi um erro, para não escrever, parafraseando Talleyrand, que foi um crime.

É a hora de redistribuir as cartas!