sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

MARIA-TERESA, A IMPERATRIZ QUE NÃO FOI IMPERADORA


Monumento a Maria-Teresa

A escritora e filósofa francesa Elisabeth Badinter (aliás, uma criatura politicamente muito discutível) publicou o mês passado um curioso livro sobre a mais famosa imperatriz austríaca: Le Pouvoir au Féminin - Marie-Thérèse d'Autriche, 1717-1780 - L'impératrice-reine. Não se trata propriamente de uma biografia no sentido habitual do termo, mas de uma digressão pela vida de Maria-Teresa, na tríplice perspectiva de mulher, mãe e soberana de um vasto império.


Maria Theresien Platz

Para compreender a sua acção, importa revisitar a história da época.

Carlos VI, imperador do Santo Império Romano-Germânico (1711-1740), rei da Hungria e da Boémia, arquiduque de Áustria, etc., promulgou, em 19 de Abril de 1713, um édito, a Pragmática Sanção, com a finalidade de garantir que os territórios hereditários da Casa de Habsburg pudessem ser herdados por um descendente do sexo feminino, salvaguardando assim a sua indivisibilidade. Não estando em causa a coroa do Santo Império (que era electivo e não hereditário, ao contrário do que muita gente supõe, embora, na prática, se tivesse tornado de facto hereditário desde Carlos Quinto), havia que garantir a linhagem reinante em sua filha Maria Teresa, que doutra forma, devido à Lei Sálica, que excluía as mulheres do trono, ficaria afastada da sucessão. Com muita diplomacia e dinheiro, Carlos VI conseguiu que a Pragmática Sanção fosse aceite pelos Eleitores alemães e pelas potências estrangeiras.



A decisão de Carlos VI deveu-se ao facto de se verificar uma escassez de varões (já nesse tempo a falta de homens se fazia sentir) na Casa de Habsburg. O imperador Leopoldo I (1658-1705) tivera sete filhos, mas apenas dois rapazes: José I, que lhe sucedeu (1705-1711) e que morreu precocemente sem filhos varões (à excepção de um rapaz, morto com um ano), deixando apenas duas filhas; e Carlos VI, que sucederia ao irmão, mas que (salvo um rapaz, morto à nascença) também teve apenas filhas e duvidava do futuro nascimento de um varão. Estava, pois, em perigo, a continuação da dinastia reinante.


Perante este panorama, entendeu Carlos VI reivindicar para Maria-Teresa, a mais velhas das suas três filhas, a herança real, isto com prejuízo das filhas do seu falecido irmão José I, com mais idade do que Maria-Teresa. Todavia, as primas não se opuseram à decisão imperial.

A morte inesperada de Carlos VI, em 1740, colocou a sucessão na ordem do dia. Maria-Teresa, com 23 anos, recebeu, em Viena, a herança paterna, mas a questão formal não ficou resolvida, pois os Eleitores alemães e as potências decidiram contestar a Pragmática Sanção, que haviam previamente aceite, e reivindicar a herança. O grande paladino desta luta foi o rei da Prússia, Frederico II, o Grande, que desencadeou contra Maria-Teresa uma guerra que haveria de durar sete anos (1740-1748) e que ficou conhecida como Guerra da Sucessão Austríaca.

Frederico II

Maria-Teresa havia casado em 1736 com Francisco-Estêvão, duque de Lorena, por quem estava apaixonada. Contrariamente aos costumes da época, em que apenas a razão política assistia aos matrimónios, foi aquilo que se poderia considerar um casamento de amor. Numa época em que as figuras da realeza dormiam em quartos separados, Maria-Teresa e Francisco partilhavam o mesmo leito.

Maria-Teresa, por Martin van Meytens (Schönbrunn)

Embora senhora dos domínios herdados de seu pai, não podia a arquiduquesa aspirar à dignidade imperial. Tendo sido coroado rainha (aliás rei) da Hungria, em 1741 (em Presburg, então capital da Hungria, hoje Bratislava, capital da Eslováquia) e rainha da Boémia, em 1743, Maria-Teresa manobrou no sentido de que seu marido fosse eleito imperador do Santo Império. Mas em vão. Os Grandes Eleitores, reunidos em Frankfurt, elegeram em 1742 o príncipe-eleitor de Baviera, Carlos Alberto de Wittelsbach, que foi proclamado imperador com o nome de Carlos VII. Os Grandes Eleitores eram os arcebispos de Mogúncia (Mainz), de Trêves (Trier) e de Colónia (Köln), o duque de Hanover (que era o rei de Inglaterra), o conde Palatino, o marquês de Brandenburg (que era o rei da Prússia, neste caso Frederico II), os duques de Saxe e de Baviera e o rei da Boémia.

Quis o destino que Carlos VII morresse em 1745. Desta vez, Maria-Teresa, cuja paixão pelo marido era inextinguível, mesmo perante os disparates deste, moveu todas as influências e logrou fazer eleger, nesse mesmo ano, Francisco-Estêvão como imperador, assumindo este o nome de Francisco I. Ciosa das suas prerrogativas, Maria-Teresa, que não podia ser imperadora (como sucessora  de seu pai), recusou ser coroada ao lado do marido como imperatriz-consorte, embora passasse a usar obviamente o título de imperatriz, mais propriamente até o de imperatriz-rainha, já que era rainha (ou rei) da Hungria e da Boémia. Para satisfazer o marido, a imperatriz concedeu-lhe a co-regência, embora Francisco-Estêvão fosse uma negação para a política e para a arte militar, mais interessado em caçadas e aventuras femininas, apesar de ser grande amigo, desde a juventude, de Frederico II da Prússia, que além de homossexual público e notório era um adversário feroz da Casa de Áustria. A propósito de Francisco I, e da sua filiação maçónica, Elisabeth Badinter escreve: «Enfin, à Berlin, il assiste aux fiançailles du futur Frédéric II [obrigado a casar pelo pai], lui aussi initié. Un vrai courant de sympathie s'instaure entre les deux jeunes hommes, en particulier de la part de François. En dépit des deux guerres qui vont les opposer, François a toujours conservé pour Frédéric une forme d'amitié difficilement explicable.» (p. 57)

Francisco I, por Martin van Meytens

Também Francisco I morreu cedo (1765). O desgosto de Maria-Teresa foi imenso, e não mais vestiu outra cor que não fosse o negro. O defunto dera-lhe 16 (dezasseis) filho(a)s , dois dos quais seriam imperadores, José II e Leopoldo II. A partir do seu consórcio, a antiquíssima Casa de Habsburg, cuja sucessão ocorrera sempre na linha masculina, passou a designar-se Casa de Habsburg-Lorena. As peripécias políticas, militares, diplomáticas, domésticas e religiosas do "consulado" de Maria-Teresa são devidamente descritas no livro de Elisabeth Badinter, que não deixa de nos chamar a atenção para o catolicismo exacerbado da imperatriz e da feroz vigilância que exerceu na Corte em matéria de costumes, chegando a afastar, quando não a mandar prender, pessoas inclusive do seu círculo mais chegado, perante a menor suspeição de adultério. Não reza o livro se a sua animosidade se dirigia tão só aos homens que tinham amantes femininas ou também aos que teriam (com ceteza que tinham) amantes masculinos. Talvez ela achasse que era uma coisa que não existia! Mas é pena que a autora não nos tenha fornecido alguns pormenores a esse respeito.

Morto Francisco I, os Eleitores, na tradição, elegeram como imperador o filho mais velho de Maria-Teresa e Francisco I, o jovem José II (1765), que obteve também da mãe uma co-regência, que decorreu de forma mais tempestuosa do que a havida com o pai. José II, embora filho dedicado, tinha ideias muito diferentes da imperatriz. Vagamente católico, franco-maçon, adepto do despotismo iluminado, melómano inveterado, admirador confesso (como o seu pai) de Frederico II da Prússia, envolveu-se em batalhas antecipadamente perdidas, nunca conseguido reaver para o Império a Silésia, de que Frederico II se apossara durante a Guerra da Sucessão Austríaca, a qual terminara com o Tratado de Aquisgrano (Aix-la-Chapelle ou Aachen), em 1748.

José II

Maria Teresa teve ainda de enfrentar uma outra guerra, a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), que opôs, ainda por causa da Silésia e da ascenção imparável da Prússia de Frederico o Grande (donde saiu mais tarde o Segundo Império Alemão), de um lado a Casa de Áustria, a França, o Império Russo e a Espanha e do outro a Prússia, a Inglaterra e Portugal, entre os principais figurantes. Tinha havido uma reversão das alianças. A Áustria primeiro aliada da Inglaterra contra a França (Guerra da Sucessão), passou de aliada da França contra a Inglaterra. A paz só seria firmada pelo Tratado de Hubertsburg em 1763, pelo qual a Áustria renunciou definitivamente à Silésia, a favor da Prússia, e a Polónia foi dividida pela primeira vez, a favor da Áustria, Rússia e Prússia.

José II casou duas vezes: a primeira, em 1760, com Isabel de Boubon-Parma (m. 1763), que amava; a segunda, em 1765, com Josefa da Baviera (m. 1767), que detestava. Do primeiro casamento houve duas filhas: Maria-Teresa e Maria-Cristina. Do segundo, nenhuma. Não voltou a casar. Por sua morte, em 1790, sem descendência masculina, o trono passou para seu irmão, Leopoldo II.

José II e seu irmão Leopoldo, grão-duque da Toscana, futuro Leopoldo II, por Pompeo Batoni

No seu livro Lettres à l'archiduchesse Marie-Christine 1760-1763 : "Je meurs d'amour pour toi..., Elisabeth Badinter refere a paixão de Isabel de Bourbon-Parma, mulher de José II, por sua cunhada Maria-Cristina de Áustria, irmã do marido. Na obra agora em apreço, Elisabeth Badinter não retoma este tema, já objecto de um livro específico.

É um facto que os austríacos continuam a considerar Maria-Teresa como o grande soberano da Casa de Áustria, o maior depois de Carlos Quinto. Uma prova, é o notável monumento erguido na Maria- Theresien Platz, entre o o Museu de História da Arte e o Museu de História Natural, em frente da Praça dos Heróis e do Hofburg. Apesar da sua feminilidade, Maria Teresa governou como um homem, com mão de ferro enluvada em veludo. Não tendo sido imperadora, e apesar das co-regências com o marido e com o filho, foi ela a verdadeira governante do Império.

No seu livro, Elisabeth Bandinter refere o clássico de Ernst Kantorowicz Les Deux Corps du Roi (1989), segundo o qual o rei é dotado de dois corpos: um corpo natural, sujeito às paixões, às doenças e à morte, e um corpo político imortal que incarna a comunidade do reino. Ou, de oura forma, um corpo de carne e de sangue e um corpo simbólico e abstracto. Quando o corpo natural morre, o corpo político é imediatamente transferido para o corpo natural do seu sucessor. «Le roi est mort, vive le roi!»

Ora, segundo a autora, Maria-Teresa de Áustria é uma das raras mulheres na história a terem governado e incarnado o seu país durante quarenta anos. Dotada de um poder absoluto, como Isabel I de Inglaterra e Catarina II da Rússia, que viveram e reinaram como homens, Maria-Teresa teve de negociar com a sua feminilidade durante todo o seu reinado. Parafraseando Kantorowicz, poderia aqui falar-se dos três corpos da rainha. O corpo natural e mortal da mulher, o corpo simbólico e imortal da soberana, o corpo maternal que perpetua a linhagem. E é este o leit-motiv da obra de Badinter. Eu acrescentaria que Maria-Teresa, por detrás de uma grande simplicidade, foi, de facto, uma actriz consumada, que desempenhou um papel único no palco da História.

Não sendo aqui o lugar para desenvolver mais detalhadamente o tema, note-se que para a redacção deste livro a autora consultou, durante vários anos, os mais diversos arquivos, e que todas as citações estão devidamente referenciadas.

Permita-se-me uma nota particular. Entre os poucos confidentes que teve, Maria-Teresa contou com um português em que depositava total confiança: o conde Emanuel Silva-Tarouca, seu conselheiro particular, filho de um antigo embaixador português na Corte de Viena, e que residiu num palácio ao lado do Hofburg, onde é hoje o Museu Albertina.

Condessa von Fuchs

Uma outra figura indisputável é a condessa Charlotte (aliás, Marie Karoline) von Fuchs, sua governanta, que a imperatriz Elisabeth colocou ao serviço da filha quando esta era ainda arquiduquesa. Maria-Teresa tratava-a por "Mami" (Mamã), mas era conhecida na Corte por Füchsin (em alemão, raposa). Foi tão grande a sua afeição por Fuchs que, quando esta morreu, em 1754, determinou que, caso único, fosse sepultada na Cripta Imperial da Igreja dos Capuchinos, exclusivamente reservada à Casa de Habsburg.

A Casa de Habsburg foi, de facto, durante séculos, como portadora do título do Santo Império Romano Germânico e do seu papel político, diplomático, militar e religioso na Mitteleuropa, uma das mais importantes casas imperiais e reais do Velho Continente.

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma explicação exaustiva acerca do Santo Império durante o reinado de Maria Teresa.

Para quando uma dissertação sobre a própria história do Santo Império?

Parabéns ao autor.