domingo, 18 de dezembro de 2016

O ESTADO DE EXCEPÇÃO




Marcelo Rebelo de Sousa deslocou-se ontem ao Teatro da Cornucópia para assistir ao último espectáculo da companhia, cujo encerramento definitivo fora anunciado pelo seu director, Luís Miguel Cintra (LMC).

Não constituiu surpresa a decisão agora oficialmente comunicada, já que desde há muito tempo LMC se vem queixando da impossibilidade de prosseguir a actividade da companhia com o apoio progressivamente reduzido do Ministério da Cultura.

É um facto que a Cornucópia foi, durante quatro décadas, uma das companhias de teatro que maiores subsídios recebeu do Estado e creio, mas não disponho de dados actualizados, que continua a receber  verbas superiores aos restantes teatros "independentes".

A presença do presidente da República na última sessão da Cornucópia (se deveras o foi) determinou a deslocação ao local do ministro da Cultura, tendo-se travado, em cena aberta, um diálogo (entre presidente, ministro e director) sobre as hipóteses de revisão do apoio estatal, já que aquela companhia é, na opinião dos intervenientes, um caso ímpar na vida teatral portuguesa.

O presidente recordou que a Cornucópia constitui "uma excepção, um caso diferente dos outros". O ministro referiu a história extraordinária da companhia, que configura "uma situação especial". LMC afirmou que não está fazer "chantagem de espécie nenhuma" mas que nas presentes condições a companhia não pode manter-se. Luís Castro Mendes anunciou que as conversações prosseguem para se conseguir encontrar uma solução que evite a extinção de um grupo de teatro com tão grande "peso institucional" e "cultural".

A aparição inesperada do presidente da República no palco da Cornucópia não pode considerar-se surpreendente. Desde há um ano que Marcelo surge intempestivamente nos mais variados palcos, faltando-lhe um palco por excelência, o palco de um teatro. Numa visita em que foi rapidamente coadjuvado pelo ministro da Cultura.

Não me parece que o lugar seja o mais apropriado para discutir verbas de subsídios, que são concedidos segundo critérios previamente estabelecidos. Debater em cena aberta a questão dos apoios à criação artística, numa casa em que os anfitriões são os próprios interessados, afigurar-se-me um comportamento precipitado e perigoso, um precedente cujas consequências não deixarão de se manifestar.

Não está obviamente em causa a importância do Teatro da Cornucópia, que ao longo de quarenta anos apresentou muitos espectáculos notáveis, e alguns também maçadores, mas sempre com grande rigor literário e artístico. O que subjaz é a ideia peregrina de Marcelo da criação de um estatuto de excepção para a Cornucópia, ideia aliás contornada pelo próprio ministro da Cultura.

O apoio ao teatro tem sido reduzido nos últimos anos e todas as companhias têm sofrido as consequências. Aliás, a redução dos apoios deve-se à redução dos rendimentos da maior parte dos portugueses no passado recente. A crise a quase todos atingiu e a Cultura é normalmente o parente pobre das pastas ministeriais. Certamente, um povo não sobrevive sem cultura mas também não sobrevive sem pão. A atribuição de um estado de excepção à Cornucópia é uma circunstância que poderá vir a ser reclamada por outras companhias de teatro, que se arroguem o direito de antiguidade e de importância semelhantes. E havendo já tantas divisões no meio teatral, será desnecessário e inconveniente acrescentar-lhe mais uma.

Considero, por isso, que o estatuto de "excepcionalidade" é improcedente e espanta-me que Marcelo Rebelo de Sousa, não tanto como presidente da República mas como jurista e professor de Direito, nisso não tenha previamente pensado. Porque nessa linha haverá quem venha mais tarde argumentar a favor da implantação de qualquer um estado de emergência ou estado de sítio.

Porque, das duas uma: ou a Cornucópia exige mais do que lhe é possível atribuir face aos projectos que apresentou, e então ou se conforma ou fecha portas; ou a Cornucópia tem realmente direito, face aos seus projectos, a apoios substancialmente mais elevados, e então há que rever as normas de atribuição de subsídios e corrigir as decisões erradas.

A hiperactividade frenética de Marcelo Rebelo de Sousa, que é um homem indubitavelmente inteligente, não lhe permite, por vezes, ponderar, com a serenidade que a função presidencial reclama, as consequências imprevisíveis das suas atitudes. Neste e noutros casos, é recomendável uma maior contenção por parte do chefe do Estado.


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