quarta-feira, 16 de novembro de 2016

HOMENS BONS E HOMENS MAUS



Acabei de ler, a conselho de um amigo, o romance Homens Bons, tradução portuguesa de Hombres Buenos (2015), penúltimo livro publicado do escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte (n. 1951). Conheço razoavelmente a literatura de língua castelhana (de Espanha e das Américas), clássica e contemporânea, onde figuram obras notáveis, mas foi a primeira vez que li um livro de Pérez-Reverte, autor de cerca de quarenta romances e novelas, traduzido em trinta idiomas e, desde 2003, membro da Real Academia Española.


Começando a sua actividade como repórter de guerra, a partir dos anos 90 Pérez-Reverte passou a dedicar-se exclusivamente à escrita, num registo entre o policial e o romance histórico (erudito). Muitos dos seus livros resultaram autênticos best-sellers e o seu nome tornou-se mundialmente conhecido.


O enredo do romance de 500 páginas pode resumir-se numa dúzia de linhas. Em finais do século XVIII, Hermógenes Molina e Pedro de Zárate, membros da Academia Espanhola, são enviados por esta instituição a Paris, com a missão de adquirirem a primeira edição da Encyclopédie francesa (28 volumes), obra proibida em Espanha, e mesmo em França, mas cuja compra fora autorizada pelo rei Carlos III, soberano discretamente iluminado. Destina-se a mesma à ilustração dos académicos e a fornecer contributos para a nova edição do Dicionário da Academia.


Uma das características mais interessantes do livro é que Pérez-Reverte intercala na narrativa o making-of do romance. É, aliás, a partir da contemplação da Encyclopédie na biblioteca da Academia que lhe surge a ideia de descrever, a partir das actas existentes, o que foi a aventura de trazer de França tão volumosa e preciosa encomenda. Tarefa facilitada pelo facto de ser ele mesmo membro da Academia, fundada em 1713 por Juan Manuel Fernández Pacheco, marquês de Villena, sob o patrocínio do rei Felipe V.


Estamos, pois, face a um romance, não propriamente um romance histórico mas um romance baseado numa história real a que a efabulação do autor confere perfeita verossimilhança. Nos intermezzi ao longo do livro, Reverte vai-nos contando como foi construindo a narrativa, as fontes que consultou, os livros e mapas que procurou, as deslocações que teve de realizar, inclusive a visualização aérea de regiões através dos mapas do Google! Todo este trabalho de pesquisa constitui uma história dentro da história e revela as qualidades extraordinárias do autor, a sua vastíssima cultura e a invejável capacidade para prender o leitor da primeira à última página.


A nobre missão dos dois a académicos, dois "homens bons", conforme a acta da sessão plenária da Academia onde se encontra registada a sua designação, vai sofrer vários contratempos, pois dois dos seus colegas, um, católico ultramontano, o outro, ateu progressista, decidem contratar um sicário para lhes dificultar a tarefa. Por quaisquer meios. Importa, para os seus colegas, por razões diametralmente opostas, que a obra não chegue a Espanha. Para um porque o seu conteúdo é demoníaco, um ataque ao Trono e ao Altar, para o outro, porque a sua divulgação iria retirar-lhe o exclusivo de ser ele o paladino das ideias progressistas no reino. Enfim, dois tratantes, conjunturalmente aliados pela força das conveniências.


As peripécias da viagem e a estada em Paris ocupam meio milhar de páginas. Por isso, apenas breves apontamentos. Encontrado um exemplar da Encyclopédie à venda, por morte do seu proprietário, os académicos decidem adquiri-lo e um deles (o outro estará ausente por motivos de que a seguir falarei) acompanhado de uma personagem bizarra que conheceram na Embaixada de Espanha em Paris, o abade Bringas, vai levantar o dinheiro ao banco, sendo roubado e agredido em plena rua pelo bandido a soldo e seus sequazes.


Refira-se agora que o outro académico, o almirante Pedro de Zárate recebera um convite galante para passar a manhã da ida ao banco em casa de uma senhora da sociedade, Margot Dancenis, e aceitara-o. [Devo dizer que me espanta esta opção do autor, já que o perfil do almirante é descrito ao longo do livro como um homem austero e rigoroso cumpridor dos seus deveres. Não deveria ter consentido que o outro académico, pessoa muito menos capaz de defender-se em caso de ataque, se tornasse portador de tão avultada quantia (mil e quinhentas libras da época - não diz Reverte, nem eu sei, a quanto equivaleriam nos nossos dias). O estrito sentido do dever impunha-lhe a declinação do convite para aquele dia].


Continua a história com os académicos, privados do dinheiro para a aquisição da já apalavrada e ambicionada obra, numa visita à Embaixada de Espanha, fazendo um relato ao embaixador do assalto sofrido e pedindo um empréstimo para a satisfação do compromisso assumido. O diplomata, o conde de Aranda, que é sovina, recusa polidamente, mas o almirante invoca, por palavras, toques e sinais (não os autênticos mas os suficientes para a narrativa), a sua condição de maçon, a que o embaixador, também ele franco-maçon, corresponde, autorizando o empréstimo da almejada quantia. Aqui, Pérez-Reverte (não sei se ele é maçon) evoca a solidariedade maçónica e, en passant, presta homenagem à  Venerável Ordem.


Obtida a obra, novos incidentes no regresso a Espanha, graças ao famigerado meliante, com mortos e feridos mas com os nossos académicos sãos e a Encyclopédie salva. Finalmente, a justa recepção na Academia, a exposição da obra e a frustração dos seus antagonistas.


Ao longo do livro, Reverte, através da História, ajusta contas com a Espanha actual, critica indirectamente políticos e instituições, mesmo Rajoy (sem o citar) a quem acusa de nunca ter lido um livro. Denuncia a Espanha retrógrada do século XVIII e a sua tentativa de abafar o Iluminismo, e projecta no presente o eterno confronto entre as Duas Espanhas, de que tão bem nos falou Fidelino de Figueiredo.


Apesar de traduzido segundo o sinistro Acordo Ortográfico de 1990, Homens Bons é um livro interessante, culto e estimulante que bem merece o tempo gasto com a sua leitura.


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