sexta-feira, 30 de setembro de 2016

ANDRÉ GIDE, O CONTEMPORÂNEO CAPITAL




Por razões que não vêm ao caso, acabei de reler por estes dias Si le grain ne meurt, de André Gide. Livro publicado em 1926, nele o autor recorda a sua vida desde que nasceu (1869), isto é, desde as primeiras recordações, até à sua viagem à África do Norte, em 1893, e à morte da mãe, em 1895.

A primeira parte do livro (cerca de três quartos do texto) é uma espécie de diário, ainda que Gide tenha escrito dois volumes do seu Journal (postumamente publicados), um consagrado ao período 1887-1925 e o outro ao período 1926-1950. Da segunda parte do livro consta a descrição dessa viagem à Tunísia e à Argélia. A publicação de Si le grain ne meurt provocou grande escândalo, apesar de Gide ter dado já à estampa Corydon, em 1924 (que teve anteriormente uma edição de tiragem reduzida e sem nome de autor), ensaio sobre os amores socráticos e destinado a combater os preconceitos contra a pederastia. É que nesse livro André Gide descreve as suas aventuras sexuais com os jovens maghrebinos, a primeira em Sousse, com Ali, depois em Argel, com Mohammed e em Biskra, com Athman. Os rapazinhos teriam entre 14 e 16 anos e Gide, Prémio Nobel da Literatura em 1947, seria hoje certamente acusado, julgado e condenado, apesar de ser um dos maiores escritores franceses e universais do século XX. O tempora o mores! Foi também na Argélia que André Gide conheceu pessoalmente Oscar Wilde (e Alfred Douglas), na companhia do qual se aperfeiçoou no seu encontro com os autóctones.

Mas o que importa aqui referir, mais do que evocar a infracção das regras da moral definida pelo código aprovado, é a sua própria "libertação" dessas regras. Educado numa austera família protestante, Gide travará sempre uma luta entre os rigores do puritanismo (tantas vezes hipócrita) e as tentações da carne. Interrogar-se-á neste livro sobre os benefícios da virtude e sobre os malefícios do pecado. É curiosa uma alusão à Suiça, país que visitou e pelo qual professa um manifesto horror. A rigidez calvinista é-lhe insuportável.

A primeira parte deste livro, a mais extensa, é rica em pormenores sobre o percurso do jovem Gide, as relações familiares, as suas amizades, as escolas e os professores domésticos, o ambiente da cidade e do campo, o início da carreira literária.

A vida de André Gide (a vida e a obra) encontra-se retratada em inúmeras biografias, a última das quais o monumental estudo em dois volumes de Frank Lestringant. Mas também a de Claude Martin (de que apenas foi publicado um primeiro volume), a de Pierre Lepape, a de Eric Deschodt, a de George Painter, etc. A vida de Gide ocupou o último quartel do século XIX e a primeira metade do século XX. Permitiu-lhe assistir a duas guerras mundiais e a profundas modificações na sociedade, tornou-o testemunha de progressos científicos e tecnológicos (para o bem e para o mal) até então impensáveis. É, pois, de impressionante riqueza o depoimento dos seus livros, sejam de ficção, poesia, ensaio, teatro. No total, cerca de uma centena de obras.

Creio que a época conturbada que vivemos impõe um regresso à leitura de André Gide.


quinta-feira, 22 de setembro de 2016

O BURKINI: PRÓS E CONTRAS




O programa televisivo "Prós e Contras" da passada  segunda-feira foi dedicado à recente polémica em França sobre a permissão do uso do burkini. Não costumo ver este programa, aliás raramente vejo televisão, mas voz amiga chamou-me a atenção para o tema tratado esta semana. Por isso, ontem decidi-me repescá-lo para observar os comentários dos participantes.

Começo por declarar que subscrevo, na generalidade, as intervenções de Faranaz Keshavjee e de Miguel Vale de Almeida e que discordo, na generalidade, das intervenções de André Freire e de Inês Pedrosa. Pareceu-me, também, muito oportuna a declaração, a partir da plateia, de José Vera Jardim, presidente da Comissão da Liberdade Religiosa.

O assunto em apreço é simultaneamente muito simples e muito complexo. Tentarei alinhar algumas considerações que à discussão importam. E situá-las no teatro de operações que foi convocado para essa discussão, a Europa, já que trazer à colação a Arábia Saudita, como fez Inês Pedrosa, me parece fora do contexto.

Em primeiro lugar, não compete aos Estados determinar como os cidadãos se vestem (ou se despem). Mais do que ao gosto e conveniência de quem os usa, os trajos estão especialmente submetidos à ditadura da moda e do mercado. Já nem o sexo é determinante das normas de trajar desde que grande parte das mulheres passou a usar calças. E embora não seja habitual ver homens de saias, não creio possam ser presos por usá-las. Os limites decorrem dos imperativos constitucionais. Assim, é proibida ao cidadão a ausência de vestuário (o nu integral é permitido nas praias, mas só em algumas), como deve ser proibido o uso de burka, pela simples razão que esta peça de indumentária oculta completamente o rosto, impedindo a identificação do portador.

Portanto, o clamor verificado em França, nomeadamente na Côte d'Azur, devido à presença de mulheres, presumivelmente muçulmanas, usando burkini, é perfeitamente ridículo, e a proibição decretada por alguns presidentes de câmara decorre quer da alucinação dos edis, quer da presunção de ganhos eleitorais. Esteve bem o Conselho de Estado ao invalidar essas proibições, por serem contrárias à lei, e ao bom senso.

O burkini não constitui qualquer ameaça à segurança, não representa uma escalada do islamismo radical, nem é atentatório dos "bons costumes". Ainda não há muitos anos, em pleno Ocidente civilizado, as mulheres eram proibidas de se apresentarem nas praias demasiado despidas; agora, são proibidas por estarem demasiado vestidas. O relativismo da moral ocidental.

Ouvi várias vezes no programa a invocação dos "nossos valores". Mas o que são os nossos valores, se é que existe agora no Mundo Ocidental algum valor que não seja o do dinheiro?

As mulheres muçulmanas têm todo o direito de se passearem na Europa de véu, hijab ou niqab, como as mulheres europeias se passeiam no mundo árabo-islâmico "ocidentalmente" vestidas. Ressalvam-se países como a Arábia Saudita, o Irão e poucos mais, mas constituem, apenas pelas piores razões, a excepção que confirma a regra.

Mesmo em Portugal, não vai longe o tempo em que as mulheres não iam para a rua de cabeça descoberta. Vivendo em Lisboa, recordo-me de minha mãe que, durante muitos anos, punha na cabeça um lenço, se saía para uma volta perto de casa, ou um chapéu, se ia à Baixa, a um teatro, ou jantar fora. E só nos últimos anos da sua vida minha mãe passou a sair de casa de cabeça descoberta. E recordo-me também, no tempo em que passava férias no campo com os meus pais, de ver todas as mulheres com lenço na cabeça.

Argumentou-se, igualmente, no debate, que o uso do burkini configurava uma provocação, uma afirmação ostensiva dos valores islâmicos. E porque não? Não foi de uso corrente, até há muito pouco tempo (e ainda hoje) homens e mulheres usarem ao pescoço um fio com um crucifixo pendente? E os sikhs não se deslocam de turbante nos Estados Unidos ou no Reino Unido?

Eu preferia, por convicção íntima, que não se fizesse exibição pública de símbolos religiosos. Mas aceito que, tal como os cristãos, cidadãos de crenças não cristãs (no caso vertente, muçulmanos), já europeus ou ainda migrantes, queiram afirmar a sua identidade no momento em que se assiste a uma campanha anti-islâmica na Europa, a pretexto de actos terroristas praticados por indivíduos supostamente muçulmanos. E haveria aqui lugar para outra questão, mas isso seria outra conversa, a de saber as origens do "radicalismo islâmico". Trata-se de uma radicalização do Islão, como afirma o meu amigo Gilles Kepel, ou de uma islamização do radicalismo, como sustenta Olivier Roy, ambos famosos islamólogos franceses. Perfilho a segunda hipótese.

Como não pretendo alongar o texto - já escrevi mais do que o previsto - terminarei com uma consideração porventura lateral, mas indissociável. Proclama-se que o Islão está em guerra com o Ocidente. Desde que Samuel Huntington (sabe-se lá porquê ???) sustentou a tese do "clash of civilizations" que não deixou de se falar no assunto. Opinião não surpreendentemente partilhada pelo centenário islamólogo anglo-americano Bernard Lewis, um grande crítico de Edward Saïd. Não penso que haja uma "guerra" do Islão contra o Cristianismo, apesar do termo "cruzada" ter sido utilizado pelo inominável George Bush após os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001. Mas concedo que existe por parte dos árabes (mais propriamente daquilo a que se convencionou chamar a rua árabe) um sentimento de desconforto relativamente aos europeus, primeiro, e também aos americanos, depois.

Recordemos. Ainda antes do desmoronamento do Império Otomano, quando o general Bonaparte em 1798 invadiu o Egipto, começou a chamada Questão do Oriente. Os ingleses substituíram os franceses, que foram depois ocupar o Marrocos e a Tunísia, mais tarde protectorados, e a Argélia, que se tornou uma província francesa. Os italianos ocuparam a Líbia. Após a Primeira Guerra Mundial, e sobre os escombros otomanos, com os Acordos Sykes/Picot e a Declaração Balfour ingleses e franceses partilharam o Médio Oriente e criaram o Estado de Israel. O conflito israelo/palestiniano permanece até hoje e a invasão anglo-americana do Iraque, em 2003, foi a cereja em cima do bolo do neo-colonialismo ocidental, com a pretensão estulta de exportar a democracia e o falso pretexto das armas de destruição maciça. Depois, as "primaveras árabes", aparentemente louváveis mas habilmente comandadas do exterior, consolidaram a insegurança e o caos. O ataque anglo-americano-francês à Líbia transformou o país do discutível Qaddafi num território sem governo e sem lei, abrindo a fronteira sul a todos os movimentos da África sub-sahariana. A intervenção camuflada dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia, Arábia Saudita, Turquia, Irão, Qatar, etc., na guerra civil que há cinco anos destrói a Síria, transformou uma revolta popular num conflito de proporções inimagináveis. De tudo isto nasceu o Daesh (ou ISIS), armado pelos Estados Unidos e pela Arábia Saudita, e que se revela um pesadelo intra e extra-muros.

Nestas circunstâncias, quem pode admirar-se da vaga de imigrantes que demanda a Europa. As vítimas do Iraque, da Síria, da Líbia, entre mortos, feridos e deslocados contam-se já por vários milhões. A Europa, não as suas populações, a não ser pelos dirigentes que elegem, mas pelos governos dos seus países, é cúmplice desta chacina contemporânea.

Eu sei que é difícil para os europeus receberem tanta gente, mas não vale a pena erguerem muralhas, pois, como afirmou Umberto Eco, já em 1997, no Convénio sobre as Perspectivas do Terceiro Milénio, organizado pelo Município de Valência, « Os fenómenos que a Europa tenta ainda enfrentar como casos de emigração são pelo contrário casos de migração. O Terceiro Mundo está a bater às portas da Europa, e entra mesmo quando a Europa não está de acordo. O problema já não é decidir (como os políticos fingem acreditar) se se admitem em Paris raparigas estudantes com o chador ou quantas mesquitas devem erigir-se em Roma. O problema é que no próximo milénio (e como não sou profeta não posso especificar a data) a Europa será um continente multirracial, ou se preferirem "colorado". Se lhes agradar, será assim; e se não lhes agradar, será assim na mesma.» [Tradução portuguesa publicada em Cinco Escritos Morais (1998)].

Os europeus terão de conviver com esta situação, serão obrigados a compreendê-la. Espanta que governos ditos socialistas, como o francês, disputem à extrema-direita a ofensiva anti-muçulmana. Não ganharão votos por causa disso, pois é sempre preferível o original à cópia. E a Frente Nacional, que passou oportunamente de anti-semita a anti-islâmica, acabará por encontrar uma fórmula que lhe permita a aceitação dos muçulmanos tal como já operou uma prudente viragem a favor dos homossexuais.

Regressando ao burkini, em nada ele fere a laicidade ou os "nossos valores". Acima de tudo, reclama-se bom senso e bom gosto, a fim de que o tempo, esse grande escultor, possa encontrar a solução mais adequada.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

NAUFRÁGIO DE UM JORNALISTA




No "Magazine Littéraire" deste mês de Setembro (nº 571), o director editorial Maurice Szafran publica na última página a crónica que se transcreve:

Naufrage d'un intellectuel





Ma génération doit beaucoup à Edgar Morin. C'est notamment avec lui, grâce à sa réflexion sur les sujets les plus divers et à ses livres, que nous avons appris à penser un peu moins... faux. Après avoir refermé Autocritique, nous n'avions plus le droit d'entretenir la moindre illusion sur la véritable nature (criminelle à tant de points de vue) du communisme ; La Rumeur d'Orléans nous fut d'un précieux secours, retirant l'illusion qu'après Auschwitz l'antisémitisme s'était dissous à jamais en Occident et en Europe ; avec Vidal et les siens, saga familiale, Morin nous rappela à la fois qu'il écrivait somptueusement bien et que notre destin individuel et collectif dépendait aussi, peut-être même avant tout, de nos racines, familiales et autres. Je n'insisterai pas sur le rôle précurseur de Morin dans la prise de conscience écologiste, Morin qui jamais - et ils sont fort peu nombreux dans ce cas - ne tomba dans le dogmatisme et le verbiage antiscientifique.
Depuis fort longtemps certes, nous avions choisi de passer outre la phobie anti-israélienne de Morin. Dans son cas, il ne s'est jamais agi de dénoncer, à raison, l'idéologie ultra agressive de la droite nationaliste en se rangeant, par exemple, aux côtés des militants de La Paix maintenant ; non, c'est l'essence même d'Israël, d'un État juif, que Morin a toujours remis en cause. Sa maladie sénile d'un gauchisme persistant. Cela serait sans importance si, par glissements successifs, il n'appliquait désormais cette grille de lecture gauchisto-mécanique, et, disons-le, débile, à l'islamisme terroriste et aux tueurs de Daech. Pour le détecter, il aura donc suffi d'un tweet, cette expression nouvelle des intellectuels branchés, quelques signes pour exprimer une pensée a priori complexe. Cette « pensée » - les guillemets sont indispensables - renvoient bourreaux et victimes dos à dos : « Les barbares tuent indistinctement par attentats suicides, les civilisés tuent indistinctement par missiles et drones. »
Désagrégation de la pensée. Confusion volontaire entre bourreaux et victimes. Edgar Morin, nouvelle recrue, de choix celle-là, des islamo-gauchistes, ceux-là mêmes qui ont pour fonction idéologique de dédouaner, d'excuser l'égorgeur de Daech, de lui trouver, avec une dialectique stupide parce que mécanique, des excuses sociales, des justifications culturelles.
Mais comment l'auteur d'Autocritique, cette confession prémonitoire, peut-il à ce point s'égarer et, conséquemment, tromper ses lecteurs, les plus lucides d'entre eux étant atterrés, désolés de constater pareil naufrage ?
Passons au plus vite sur les explications convenues - l'obsession anti-occidentale d'un vieux tiers-mondiste qui n'a pas vu le temps et l'histoire passés ; la recherche désespérée d'un prolétariat de substitution, réunissant d'abord les immigrés du Maghreb, du Proche-Orient et d'Afrique, pour la plupart d'entre eux musulmans ; la conviction, partagée avec Michel Onfray notamment, que la responsabilité première de cette « barbarie » (Morin utilise le mot) pèse davantage sur les Bush et leurs alliés que sur les califes et les émirs de Daech. Thèses et thèmes éculés d'un penseur qui, désormais, pense fermé, d'un penseur qui s'interdit la prise en compte du réel pour s'en tenir à renvoyer dos à dos le bourreau et la victime - une manière, même pas habile, de dédouaner l'assassin.
Il est nécessaire d'insister : Edgar Morin occupe et occupera une place importante dans la pensée française au XXe siècle. Mais subsistera aussi cette tache : un jour, il aura accouru au secours des fanatiques musulmans et de leurs communicants, les islamo-gauchistes. Oui, une tache.

 * * * * *

Uma leitura objectiva permite concluir que se trata mais do naufrágio do jornalista Maurice Szafran do que do intelectual Edgar Morin. Não conheço Szafran, mas é lícito suspeitar que se trata de um caso de islamofobia, para resumir, numa palavra, aquilo que penso do texto.


segunda-feira, 12 de setembro de 2016

OS COMANDOS




A morte de dois instruendos do Curso de Comandos e a hospitalização de mais alguns originou acesa controvérsia nos últimos dias.

Creio que não só o Exército como o Governo e o presidente da República actuaram com empenho e rapidez dentro da esfera das suas competências respectivas. Isto é, inteirando-se do estado dos doentes, solidarizando-se com as famílias dos falecidos e ordenando um inquérito às causas do infausto acontecimento. Aliás, o Ministério Público decidiu, também ele, abrir um inquérito.

Estou certo de que todos lamentamos o facto, mas as desgraças que sucedem neste mundo não devem toldar-nos o juízo e suscitar-nos propostas insensatas. Por isso, a pretensão do Bloco de Esquerda de extinguir a especialidade de Comandos afigura-se imprudente, para não a classificar de oportunismo político, o que suponho não seja, já que este tipo de declarações serve mais para lhe retirar apoios do que a carrear-lhe simpatias.

Em primeiro lugar, qualquer avanço sobre a matéria só seria pertinente após a conclusão dos inquéritos em curso; em segundo lugar, porque, independentemente do resultado dos inquéritos, estes
não se destinam a avaliar da necessidade da existência de determinado tipo de força militar.

Não se extingue uma organização porque um dia aconteceu uma desgraça. Estudam-se as causas para tentar impedir a sua repetição no futuro. Não passaria pela cabeça de alguém extinguir a Polícia porque um seu agente morreu no exercício das suas funções.

Estimo que o resultado dos inquéritos aponte uma, ou algumas das seguintes causas:

1) Inaptidão dos mancebos em causa para aquele tipo de treino militar, o que levará á conclusão de que as avaliações médicas não foram rigorosas;

2) Treino excessivo para a capacidade geral dos instruendos, o que levará a repensar as exigências do curso;

3) Não adequação dos exercícios a uma situação meteorológica anormal, o que implicará que os instrutores estejam permanentemente atentos à possibilidade de ocorreram variações extraordinárias das condições climatéricas;

4) Perturbações de saúde perfeitamente aleatórias, embora, neste caso, seja legítimo interrogar-nos se não seria demasiada coincidência.

É conhecido que o treino de Comandos é, sempre foi, exigente tendo em vista as suas potenciais missões e que a entrada na especialidade depende da vontade dos próprios, tanto mais que hoje em dia, lamentavelmente, já nem sequer existe o SMO (Serviço Militar Obrigatório). Logo, a adesão a esta força é um acto voluntário que apenas depende da vontade do interessado.

O Regimento, cujas origens remontam a 1962, foi extinto em 1993 (sendo primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva) e ressurgiu em 2002, como Centro de Tropas Comandos, com adaptações às novas circunstâncias bélicas. Não aconselha o bom senso que, por precipitação ou irreflexão, se voltasse a eliminar esta força especial do Exército.

sábado, 10 de setembro de 2016

O OCULTISMO NO ANTIGO EGIPTO




Publicado em 1987, o livro La Science Occulte Égyptienne, de Jean-Louis Bernard (especialista em egiptologia e ocultismo), pretende informar-nos sobre as ciências ocultas do Antigo Egipto. Usando uma linguagem demasiado hermética, como é próprio de uma obra desta natureza, encontra-se dividido em cinco capítulos:

1) O Homem Oculto
2) A Alquimia
3) A Tanatologia
4) A Ancestralidade
5) O Eterno Presente de Amon

No fundo, trata-se de uma viagem iniciática à terra dos Faraós, muito pormenorizada em vários aspectos, mas acusando alguma desactualização, pois conta já com trinta anos após a sua publicação, e a investigação das últimas décadas permitiu corrigir algumas "verdades" históricas.

Não é naturalmente possível fazer aqui sequer um resumo da obra, mas diga-se que são analisados muitos conceitos da "espiritualidade egípcia", ainda que, muitas vezes, de forma desordenada.

Uma das "novidades" é a identificação da célebre figura do scribe accroupi existente no Museu do Louvre, que o autor identifica como Sekhem Kaï, nome que significa "Poderoso é o meu ka!". A noção de ka é explicada ao longo do livro, com a insistência de que não tem a ver com a nossa ideia de alma, que será o ba, mas como um duplo do eu, isto simplificado, é claro. O khaibit seria como uma sombra do homem, a que Bernard chama também shout. Para uma melhor compreensão destes conceitos relacionados com a alma, que surgem com interpretações confusas no livro, poderá consultar-se o site seguinte:

http://www.thekeep.org/~kunoichi/kunoichi/themestream/egypt_soul.html#.V9Qa6a3NklQ

Também uma questão que preocupa Bernard é a discussão sobre as origens do monoteísmo. Ao contrário da versão comummente aceite de que o seu precursor foi Akhenaton e que Aton seria a primeira divindade única, o autor contrapõe-lhe Amon.

Um outro aspecto do livro com interesse é a "animalização" dos deuses. Referências especiais são feitas à deusa Bastit (gata) e à deusa Sekhmet (leoa). E também a Khnum (carneiro) e a Sobek (crocodilo).

Numa "Meditação Final" o autor fala da sida e da quintessência do sangue e lamenta que tenha desaparecido a insólita medicina dos sacerdotes de Sekhmet. E sobre as doenças do sangue, remete-nos para os aztecas e para os hindus.

Sendo uma simbiose de egiptologia e de ocultismo, os egiptólogos não perfilharão inteiramente as suas teses, muitas vezes recorrentes a Papus e a René Guénon. Mas não deixa de ser um livro interessante, que muito ganharia se fosse mais ordenado e mais conciso. Porém, será esta a forma que agrada ao autor.


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

A HERANÇA ÁRABE





Saiu na semana passada o nº 100 de "Qantara", com o qual a revista completa 25 anos de publicação.

Editada pelo Institut du Monde Arabe, de Paris, tem sido ao longo deste tempo um instrumento notável na divulgação da cultura árabo-islâmica e no diálogo inter-cultural.

Transcrevemos o editorial deste número especial:

«Qantara est né il y a vint-cinq ans dans le berceau du multiculturalisme et du dialogue des cultures. C'est dire le chemin parcouru depuis. L'époque est alors tout à la célébration de la rencontre entre l'Orient et l'Occident. Une rencontre sans aspérités, symbolisée par l'Andalus et la figure du philosophe de Cordoue, Averroès. Mais une rencontre dans un seul sens, au seul profit de l'Occident, sommé désormais de reconnaître sa dette à l'égard des Arabes qui lui avaient transmis l'héritage scientifique et philosophique grec.

Qantara a essayé de s'affranchir de cette vision lénifiante du passé en proposant, chaque fois que cela était possible, de nouveaux thèmes et de nouvelles approches. L'avenir dira si nous y sommes parvenus. Mais il est certain que l'agencement de textes divers, souvent divergents, produit un récit qui occupe une place singulière dans le champs culturel.

Plutôt qu'un numéro commémoratif présentant un florilège de textes déjà parus dans le magazine, nous avons préféré poursuivre l'investigation déjà commencé sur l'usage du passé arabe dans le champ culturel et idéologique français. Car il existe bel et bien un investissement idéologique, voire politique, de l'histoire des Arabes. L'histoire de la philosophie islamique n'y échappe pas non plus: ou sinon, que peuvent inspirer à l'homme moderne Averroès et son traité sur l'intellect? Au mieux, il gardera du philosophe de Cordoue l'image caricaturale - et fausse - qu'en a donné le film de Youssef Chahine, Le Destin.

Beaucoup de spécialistes se calfeutrent dans leur tour d'ivoire sans se rendre compte que leurs textes, même érudits, délivrent au grand public des messages lourdes de conséquences. En sollicitant ici quelques historiens, nous avons voulu les convier à une introspéction sur leur métier. Qu'ils soient remerciés d'avoir accepté de jouer le jeu, de même que tous ceux qui ont apporté leur contribution aux pages de Qantara ao long du quart de siècle écoulé. Nous n'oublions pas non plus nos lecteurs fidèles sans qui nous n'aurions pas tenu si longtemps.»



O dossier do presente número é consagrado à "Histoire des Arabes et philosophie islamique. Enjeux actuels".

É sempre bom recordar as obras que nos evocam a importância do legado árabe. Por isso, apraz-me registar, como exemplo, o célebre livro, Ce que la culture doit aux Arabes d'Espagne, de Juan Vernet,
publicado originalmente em espanhol em 1978 e traduzido para francês em 1985 e 2000 (a edição reproduzida abaixo).



A Europa, e por arrastamento o Mundo Ocidental, é devedora não só da cultura clássica greco-latina, mas igualmente da contribuição árabe e mesmo dos povos do Oriente Antigo, desde a primeira incursão monoteísta de Akhenaton.

No período conturbado que vivemos, devido à voracidade de alguns e à ignorância de muitos, só através de um "diálogo de civilizações" e não de um "choque de civilizações" poderemos chegar a algum bom porto, se não for demasiado tarde.