terça-feira, 19 de julho de 2016

ERDOGAN E O CALIFADO




A Primeira Guerra Mundial determinou o fim do Império Otomano, com consequências que ainda hoje, um século depois, não cessam de nos interpelar. Os sultões otomanos ostentavam também, como é sabido, o título de Califa do Islão desde 1517, quando Selim I Yavuz (o Cruel), que reinou de 1512 a 1520, após a conquista do Hejjaz (Meca e Medina) donde trouxe para Istanbul as relíquias de Muhammad (Maomé), e do Egipto, onde depôs o último califa abássida Al-Mutawakkil III, assumiu essa dignidade religiosa dos sucessores do Profeta.

Durante séculos, o sultão otomano acumulou com as funções de soberano reinante a de chefe espiritual dos muçulmanos, indisputável no contexto político subsequente ao século XVI. E foi assim até 1922. A participação na guerra de 1914/1918 revelou-se desastrosa para o Império Otomano. O sultão Mehmet V morreu em Julho de 1918, tendo-lhe sucedido seu irmão Mehmet VI Vahdettin, tendo sido já com este soberano que foi assinado com a Entente o humilhante armístico de Mudros (31 de Outubro de 1918), que decepcionou os nacionalistas turcos. Os governos sucederam-se na Sublime Porta (Bâb-ı Âli), e a Grande Assembleia Nacional, presidida por Mustafa Kemal Atatürk, instalada em 23 de Abril de 1920, aboliu o sultanato em 1 de Novembro de 1922. Mehmet VI foi exilado para Itália, onde viria a morrer em 1926.

Em 10 de Agosto de 1920, o grão-vizir Damat Ferit Pasha, ainda em nome de Mehmet VI, assinara com as potências vencedoras o Tratado de Sèvres, que concluía a partilha do Império, em proveito dos Aliados. Atatürk e os seus partidários não se conformaram com os termos impostos e travaram uma guerra em três frentes, que a Entente subestimara e de que saiu vencedor. E impôs condições que acabaram por ser consagradas no Tratado de Lausanne, em 24 de Julho de 1923.


Em 29 de Outubro de 1923 foi proclamada a República e Kemal Atatürk proclamado primeiro presidente, cargo que exerceu até à sua morte, em 10 de Novembro de 1938.

Todavia, o califado persistiu após a deposição de Mehmet VI. Sucedeu-lhe seu primo Abdülmecid II, que desempenhou as funções até 3 de Março de 1924, data em que o Califado foi oficialmente abolido e os seus poderes (no que à Turquia respeitava) transferidos para a Grande Assembleia Nacional. Atatürk considerara que a existência de um chefe do poder espiritual no país colidia com as instituições republicanas e alimentava esperanças quanto a um retorno à forma monárquica do regime.

Porque o califa de Istanbul era não só o chefe espiritual dos muçulmanos turcos mas de todos os muçulmanos, verificaram-se tentativas posteriores, extra-Turquia, de restabelecer o Califado. Realizaram-se conferências islâmicas no Cairo (1926), Meca (1926) e Jerusalém (1931), mas nunca se alcançou o consenso.

Que a ideia permaneceu mostra-o o recente auto-proclamado "Estado Islâmico do Iraque e do Levante" (ISIS ou Daesh), cujo chefe, Abu Bakr el-Baghdadi se passou a intitular Califa Ibrahim.

Durante a sua presidência da República Turca, Atatürk, franco-maçon e homem de bom gosto,  introduziu profundas reformas no país, no sentido de o modernizar e ocidentalizar. Do vestuário à educação, da separação entre o político e o religioso, indo até à modificação da escrita, um trabalho ciclópico. Deve-se a Atatürk a adopção do alfabeto latino na língua turca, que até então utilizava o alfabeto árabe, ainda que as línguas sejam distintas. Por exemplo, o farsi e o urdu, falados no Irão e no Paquistão, continuam ainda hoje a utilizar os caracteres árabes.

Importa também recordar que o Império Otomano, no seu período de maior esplendor, abrangeu toda  a África do Norte (excepto Marrocos), o Médio Oriente, uma parte da Península Arábica, o sul da Ucrânia, a Grécia, os Balcãs e chegou mesmo, por duas vezes, às portas de Viena.

Esta pequena digressão histórica permitir-nos-á compreender melhor as motivações de Recep Tayyip Erdoğan, chefe do Partido da Justiça e Desenvolvimento (Adalet ve Kalkınma Partisi) (AKP), ex-primeiro-ministro (2003 a 2014) e actual presidente da República da Turquia (desde 28 de Agosto de 2014). Homem extraordinariamente ambicioso e defensor da islamização do país, Erdoğan vem prosseguindo, lenta mas persistentemente, uma acção exactamente contrária à de Atatürk, ou seja a desocidentalização da Turquia, o ofuscamento das Luzes, a destruição do Estado laico, num combate sem tréguas à secularização, hoje largamente perfilhada nos meios urbanos, que, sempre que podem, se manifestam contra o presidente, como aconteceu há poucos anos a propósito do projecto imobiliário do parque Gezi, ao lado da praça Taksim. É nos meios rurais que o presidente recolhe maior apoio e foram estes que lhe permitiram chegar à presidência, à primeira volta, em 2014, com 51,79% dos votos expressos. Um país dividido ao meio.

A recente tentativa de golpe de Estado, de contornos ainda mal definidos, surge como a oportunidade única de Erdoğan concretizar muitos dos planos ainda suspensos na sua agenda. À cabeça, a adopção de uma Constituição de tipo presidencialista, dotando o presidente da República de plenos poderes. Depois, e isso já está em curso, proceder ao saneamento de todos aqueles que lhe são desafectos, dos militares aos juízes, dos professores aos jornalistas, dos polícias aos funcionários públicos. O saneamento que iniciou há mais de dez anos, quando assumiu a chefia do Governo, continua agora de forma acelerada, até se desfazer completamente dos seus opositores ou correligionários que lhe possam fazer sombra. A purga que já começou e que não se sabe quando terminará, conferirá a Erdoğan plenos poderes para governar ditatorialmente sem qualquer contestação. Por isso, suscitou-se na opinião pública e nas chancelarias ocidentais a ideia de que o presidente estaria ele mesmo por trás desta tentativa de golpe, frustrada nas primeiras horas e realizada de forma tão amadorística que, a ser verdade, deixaria a credibilidade das forças armadas turcas pelas ruas da amargura, elas que já procederam, no último meio século, a vários golpes, sempre com êxito, para preservar a herança do Estado laico concebido por Atatürk e de que se consideram as legítimas guardiãs.


Parece que o sonho de Erdoğan não se extingue, contudo com os plenos poderes. Ele pretende, tal como Atatürk mas às avessas, revolucionar o país e reservar-se um lugar na História. Ao pronunciar-se sobre matéria religiosa e de costumes, como já o tem feito, o presidente aspira a uma chefia espiritual dos turcos, um lugar comparável ao de califa, ainda que seja impensável, mas nunca se sabe, que Erdoğan se venha a proclamar califa.

Por outro lado, tem também a ambição de alargar o território actual da Turquia, numa tentativa, ainda que ténue, de ressuscitar o antigo Império Otomano. A protecção camuflada (e às vezes não tanto) que o presidente tem concedido ao "Estado Islâmico", sediado em territórios da Síria e do Iraque, denuncia a intenção de anexar essas regiões, caso a conjuntura lhe seja favorável. Daí a sua luta tenaz contra o presidente sírio Bashar al-Assad e contra todas as tentativas de emancipação dos curdos (quer os residentes na Turquia actual, quer os espalhados pela Síria e pelo Iraque), que, ao contrário dos arménios, nunca lograram um estado independente a partir dos destroços do Império Otomano no fim da Primeira Guerra Mundial.

Também a errática política externa de Erdoğan denuncia um oportunismo incompatível com uma visão de estadista. As recentes reconciliações com Israel, cujas relações haviam sido interrompidas após o Estado Judaico ter abatido cidadãos turcos num barco que se dirigia a Gaza, e com a Rússia, depois da Turquia ter abatido um avião russo sobre a Síria, denotam a vontade de assegurar, no curto prazo, a boa vontade de dois países vizinhos, militarmente poderosos, e com influências cuja utilidade o presidente não considera despiciendas.

As tentações totalitárias de Erdoğan constituem também um perigo para a Europa (a recente deriva impedirá definitivamente, espera-se, a adesão da Turquia à União Europeia, mas com o caos na liderança da UE não se avalia bem que espúrias decisões poderão ser tomadas) e um perigo para o mundo, pois sendo a Turquia um país membro da NATO e dotado do segundo mais poderoso exército da Aliança, a seguir aos Estados Unidos, a instabilidade na região, lugar estratégico por excelência, condiciona largamente a política internacional.

Decorre destas linhas que Recep Tayyip Erdoğan,eleito democraticamente sem sombra de dúvida, ainda que por uma escassa percentagem, tendo-se permitido, ao longo destes anos, decapitar não só as chefias militares e a magistratura mas amordaçar a sociedade civil, encetou o caminho da ditadura democrática, de que conhecemos exemplos pouco edificantes ocorridos no século passado.

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