terça-feira, 31 de maio de 2016

A BASILICA REALE DI S. FRANCESCO DI PAOLA



A Basilica Reale di S. Francesco di Paola, em Nápoles, foi mandada edificar pelo rei Fernando IV (quando regressou do exílio na Sicília), no local onde se encontravam as igrejas de S. Luigi e do Santo Spirito, em frente ao Palácio Real, demolidas por ordem de José Bonaparte e do seu sucessor Joaquim Murat, ao tempo em que ocuparam o trono de Nápoles, a fim de ser construida uma grande praça (hoje, a Piazza del Plebiscito).


Em acção de graças pelo seu regresso ao trono, de acordo com um voto formulado em Palermo, Fernando IV (Fernando I, como rei das Duas Sicílias) colocou a primeira pedra da Basilica em 17 de Junho de 1816, no centro do semi-círculo das fundações do forum de S. Gioacchino, idealizado por Murat.

Palazzo Salerno

A igreja e o convento de S. Luigi (di Palazzo) eram habitados pelos Frades Menores de S. Francesco di Paola, que regressaram à nova Basilica  Reale que foi inaugurada e aberta ao público em 1831, já no tempo do rei Francisco I, filho e sucessor de Fernando IV. A consagração solene teve lugar em 25 de Dezembro de 1837.

Palazzo della Prefettura

A Piazza del Plebiscito é a mais bela de Nápoles. Para quem está de frente para a Basilica, do lado esquerdo encontra-se o Palazzo Salerno, onde outrora estiveram o mosteiro e a igreja de Sancta Croce. Do lado direito está o Palazzo della Foresteria, hoje Palazzo della Prefettura, no local da antiga igreja do Santo Spirito. Do lado esquerdo do semi-círculo encontra-se a estátua de Carlos III e do lado direito a de Fernando IV.

Carlos III
Fernando IV

Passando por Nápoles em 1483, S. Francesco di Paola foi convidado pelo rei Ferrante I a construir em Nápoles uma casa para a sua Ordem. O santo escolheu o convento de SS. Luigi e Martino que se situava no declive da colina e por isso não agradou ao rei que mandou construir para os Frades Menores a igreja de S. Luigi a Palazzo, onde hoje está a Basilica.

Altar-mor


A Basilica, em estilo neoclássico, abre com um pronau com seis colunas em estilo jónico e dois pilastras laterais. Na arquitrave está a seguinte inscrição: « D.O.M.D. FRANCISCO DE PAULA FERDINANDUS I EX VOTO A MDCCCXVI ».



Sobre o frontão, ao meio e ao cimo, uma estátua da "Religião" e nas extremidades, mais em baixo, as estátuas de S. Francesco di Paola e de S. Fernando de Castela.



Existem duas capelas laterais cobertas por duas cúpulas, semelhantes à grande cúpula central mas mais pequenas. Na capela lateral, à direita de quem entra, pode admirar-se um quadro de Luca Giordano, representando S. Francesco di Paola.

Capela de S. Francesco di Paola com a pintura de Luca Giordano

O templo tem a forma circular, a exemplo do Panteão de Agrippa. A cúpula sobreposta é a terceira entre as principais da Europa, a seguir a São Pedro do Vaticano e Santa Maria del Fiore (o Duomo de Florença).


No vão central da Basilica encontram-se oito estátuas colossais, representando os quatro Evangelistas e quatro grandes Doutores da Igreja, dois latinos e dois gregos: S. João Crisóstomo, Santo Ambrósio, Santo Agostinho e Santo Atanásio.


Muito mais haveria a escrever sobre esta igreja, mas os interessados encontrarão os detalhes na literatura da especialidade.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

FASCISMO E MARXISMO


António Araújo


A propósito de recentes declarações do jornalista José Rodrigues dos Santos, transcrevemos o artigo de António Araújo, publicado hoje no PÚBLICO:


Fascismo é quando um homem quiser



O texto de José Rodrigues dos Santos representa um lamentável exemplo de como uma amálgama confusa de referências e factos históricos pode conduzir a conclusões erradas.

Em 2016, o panorama editorial português fica marcado pela publicação de dois best-sellers altamente tóxicos: O Pavilhão Púrpura, de José Rodrigues dos Santos, e A Minha Luta, de Adolf Hitler.

Em O Pavilhão Púrpura, Rodrigues dos Santos sustenta que o "fascismo alemão" se chamava "nacional-socialismo" por uma razão muito simples: o sufixo "socialismo" significa que o nazismo é um movimento de origem marxista.

Em A Minha Luta, logo no segundo capítulo, Adolf Hitler descreve os seus tempos em Viena, e diz: "Foi nessa altura que os meus olhos se abriram para dois perigos que eu mal conhecia e cuja assustadora importância para a existência do povo alemão eu estava longe de suspeitar: o marxismo e o judaísmo".

Um pouco mais à frente, Hitler confessa: "Fiz um esforço sobre mim próprio e tentei ler as produções da imprensa marxista, mas a repulsa que elas me inspiraram acabou por tornar-se tão forte que procurei conhecer melhor os que urdiam estas canalhices". Eram os judeus, obviamente.   

"Contudo, dos milhões de palavras proferidas por Hitler de que há registo, nenhuma indicia que se debruçou sobre os escritos teóricos do marxismo, que tenha estudado Marx ou Engels, ou Lenine (que esteve em Munique não muito antes dele), ou Trotsky (seu contemporâneo em Viena). Fosse em Munique ou em Viena, Hitler não lia para se cultivar ou aprender, mas para confirmar os seus preconceitos", escreve Kershaw na sua monumental biografia do líder nazi (cf. Ian Kershaw, Hitler, Vol. 1 – 1889-1936: Hubris, Londres, 1998, pág. 84).

Adolf Hitler, portanto, nem sequer leu Karl Marx antes de se proclamar anti-marxista. E José Rodrigues dos Santos, pelos vistos, nem sequer leu Adolf Hitler antes de proclamar que o nacional-socialismo tem origem no marxismo.

Quanto ao fascismo em termos mais genéricos, recomenda-se-lhe a leitura de um livro saído entre nós em 2011. Logo nas primeiras páginas de Fascistas, Michael Mann tem um capítulo chamado Para uma definição de fascismo (pp. 34ss). Aí, passa-se em revista a abundante literatura académica que tem sido produzida pelos maiores especialistas mundiais sobre o tema. Certamente por lapso ou lamentável distracção, não se menciona o nome do doutor Rodrigues dos Santos, nem os seus recentes trabalhos de filosofia política, como As Flores de Lótus e O Pavilhão Púrpura, ambos demonstrativos da tese de que o fascismo tem origem no marxismo. Mas Michael Mann cita, por exemplo, o insuspeito Ernst Nolte, que, num clássico de 1963 (Der Fascismus in seiner Epoche), identificou um "mínimo fascista", o qual combina três "antis" ideológicos: o antiliberalismo, o anticonservadorismo e… o antimarxismo. No esmagador History of Fascism (1995), Stanley Payne considera a definição de Nolte insuficiente, mas adere à sua ideia de que o antimarxismo constitui uma das características essenciais do fascismo.

O texto de Rodrigues dos Santos publicado neste jornal representa um lamentável exemplo de como uma amálgama confusa de referências e factos históricos pode conduzir a conclusões erradas, sobretudo quando se pretende, com pontinha de imodéstia, apresentar um sound bite provocatório, estratagema promocional que, de resto, já fora usado pelo autor no lançamento de outros títulos da sua pavorosa bibliografia. Concedendo-lhe um piedoso benefício da dúvida, podemos até pensar que o autor acredita mesmo naquilo que diz, julgando ter feito descobertas revolucionárias, assombrosas, como os heróis dos seus romances. Nesse caso, o problema será de outro foro, mais grave, surgindo geralmente diagnosticado com o epíteto de mitomania. Metendo-se por caminhos sinuosos e veredas que não conhece, o autor de O Pavilhão Púrpura julga que descobriu uma "verdade" onde afinal só existia uma ignorância – a sua. Como se estivesse perante um júri académico ou numa sala de audiências, convoca as "provas que apresento nos meus romances". Infelizmente, nada apresenta de novo. O socialismo juvenil de Mussolini, por exemplo, foi minuciosamente descrito por Renzo de Felice em Mussolini il revoluzionario, 1883-1920 (Turim, 1965, pp. 1-200), por Luciano Dalla Tana em Mussolini massimalista (1964), por Emilio Gentile em Mussolini e "La Voce" (1976) ou por Gerhardo Bozetti em Mussolini direttore dell’Avanti (1979). A esta excelsa bibliografia deveremos juntar, a partir de agora, dois romances de José Rodrigues dos Santos, que, ao contrário da presunção do autor, nada acrescentam ao que já consta de publicações respeitáveis como a Wikipedia, quer sobre a influência de Sorel e de Michels, quer sobre as metamorfoses do sindicalismo revolucionário em Itália. A complexa e turbulenta evolução dos movimentos políticos italianos, aliás, passa completamente ao lado do nosso romancista de sucesso. Não se tem presente, por exemplo, que na fundação, em 1919, na Piazza Santo Sepolcro de Milão, dos Fasci Italiani di Combatimento, é já bem notório o predomínio do sindicalismo nacionalista sobre o sindicalismo revolucionário.

Dizer que "o fascismo tem origem no marxismo" estará correcto, num certo sentido, mas é o mesmo que dizer nada, absolutamente nada, do ponto de vista historiográfico e politológico. Como observa Ernst Nolte, é óbvio que sem o marxismo não existiriam o fascismo e o nazismo, justamente porque estes se afirmaram como anti-marxistas (e, para ser coerente, entre as "provas" que revela nos seus romances Rodrigues dos Santos deveria ter apresentado declarações a favor do ideário marxista feitas por Mussolini na sua fase fascista pós-1920 ou por Adolf Hitler nas páginas de Mein Kampf).

Em suma, para o ponto que interessa – a classificação tipológica dos regimes políticos – qualificar o fascismo como um movimento de origem marxista é um erro, pois as supostas "raízes marxistas" do fascio não caracterizam a essência do seu perfil. Pegando no texto de Rodrigues dos Santos, também poderemos dizer, se quisermos, que o fascismo tem origem no evolucionismo de Darwin ou que o nazismo se inspirou nas leis de Newton. Entra-se no vale-tudo, pois, de facto, isto anda mesmo tudo ligado. Com jeito e audácia, poderemos até sustentar que o Benfica foi campeão de futebol este ano porque o Beira-Mar falhou aquele penálti decisivo contra o Leixões nas semifinais da Taça de 1967. Já agora, e porque nestes últimos livros se aventurou por terras do Oriente, Rodrigues dos Santos deveria ter referido o "fascismo japonês", de que os soviéticos começaram a falar em 1934. A esse propósito, poderia até ter citado o nome do jornalista nipónico Motoyuki Takabatake (1886-1928), antigo anarquista que traduzira O Capital em 1924 e, pouco depois, abraçava a causa nazi – mais uma prova irrefutável de que "o fascismo tem origem no marxismo".

À defesa, Rodrigues dos Santos vem agora dizer que o pensamento dos fascistas "continuou a evoluir", o que é próprio dos seres humanos e doutros animais. Todavia, não esclarece os leitores que, na sua etapa plenamente fascista, Mussolini já havia rompido com o socialismo de juventude. Rodrigues dos Santos afirma, por último, que os fascistas se declararam como antimarxistas, "o que, a partir de certo ponto, realmente aconteceu". É nesse ponto que bate o ponto. Foi precisamente a partir daí que o fascismo se afirmou, cresceu e alcançou o poder, florescendo como um movimento que não só não era marxista como se manifestava, na teoria e na prática, como militante e combativamente antimarxista. Como nota Stanley Payne, só no Outono de 1920 o termo "fascismo" se tornou uma expressão corrente, servindo para designar os cada vez mais violentos Fasci di Combatimento, que se afirmavam nas ruas como vanguarda agressiva e nacionalista de uma "guerra contra o bolchevismo". O número de filiados passou de 20.000, em finais de 1920, para 100.000, em Abril de 1921, quase duplicando esta cifra no mês seguinte. Em Novembro, os Fasci tinham já 320.000 aderentes. Eram agora um movimento de massas, com muitos membros que, sobretudo nas zonas rurais do Norte de Itália, passaram directamente da CGL socialista para o fascismo. As eleições de 1921 foram um triunfo pessoal de Mussolini, tendo os socialistas descido de 32% para 24% e o novo partido comunista obtido uns ínfimos 2,8%. A campanha eleitoral foi de enorme violência: de acordo com um relatório policial, nos primeiros quatros meses de 1921 houve, no mínimo, 206 assassinatos políticos. A violência era tanta que Mussolini foi instado a controlar as suas hostes, expulsando do movimento criminosos de delito comum e outros militantes particularmente agressivos. No dia a seguir às eleições, foram mortos 10 socialistas. Estes reagiram com igual violência, matando 18 "camisas negras" em Génova, em Julho de 1921. De vendetta em vendetta, foi impossível alcançar a paz; e Mussolini percebeu que era melhor organizar a violência a seu favor do que tentar controlá-la. Transformados os Fasci no Partito Nazionale Fascista, este configura-se como uma organização paramilitar e, em Outubro de 1922, marcha sobre Roma, sendo dispensável contar o resto da história. De há muito que os socialistas eram os alvos principais da violência dos fascistas (e vice-versa, note-se), pelo que dizer que o "fascismo tem origem no marxismo" é não perceber nada da sequência temporal dos factos. Numa síntese arriscada, quando o fascismo verdadeiramente surge, quando emerge como autêntico fascismo, de há muito tinha abandonado as suas origens sindicalistas-revolucionárias; e, mais ainda, agora perseguia a tiro e a golpes de navalha os socialistas e os membros de outros grupos de esquerda.

De permeio, é certo, muitos dirigentes fascistas das zonas rurais gritaram "a terra a quem a trabalha". Talvez num próximo romance José Rodrigues dos Santos nos traga a revelação sensacional de que as ocupações no Alentejo em 1975 tiveram origem em Mussolini e nos seus adeptos. Que Deus lhe perdoe.

Jurista e historiador

domingo, 29 de maio de 2016

O FIM DAS AMIZADES





Pela sua pertinência e actualidade, transcrevo o artigo do jornal PÚBLICO, de 3 de Junho de 2012, do qual agora, por acaso, tomei conhecimento:

O fim da amizade é um tabu


Francisco perdeu um amigo quando montou um negócio com ele. Maria viveu "um ano de absoluta perplexidade e dor" - o que viu nela aquela amiga para a pôr de parte? Técnicos de saúde mental explicam como recebem nos seus consultórios pessoas que não sabem lidar com o fim da amizade. E uma equipa de sociólogos britânicos fez uma viagem ao lado negro das relações entre amigos



Já perdeu muito tempo a pensar no que fazer com este amigo demasiado autocentrado que lhe telefona a toda a hora mas que nunca está disponível para ouvir o que ele tem para contar. Acha que não tem de suportar o egoísmo dele para o resto da vida só porque quando tinham dez anos jogavam ténis de mesa na casa dele. Enfim, Jerry Seinfeld está sentado num café à frente deste amigo de infância, com quem não tem nada em comum a não ser esse passado longínquo, e tomou uma decisão: vai acabar com ele. Como? Da única forma que sabe acabar.

Jerry: Ouve Joel... acho que não devemos continuar a encontrarmo-nos. Esta amizade... não está a funcionar.

Joel: Do que é que estás a falar?

Jerry: Não fomos feitos para ser amigos.

Joel: Como é que podes dizer uma coisa dessas?

Jerry: Ouve, tu és bom tipo...

Joel: Hei! O que foi que eu fiz? Diz-me, quero saber!

Jerry: Não fizeste nada. Não tem a ver contigo. Sou eu.

O episódio da série norte-americana Seinfeld é recordado pelo escritor e poeta Pedro Mexia. Sobre o "fim da amizade", já falou muitas vezes, em crónicas, em poemas e no seu blogue. Porque já perdeu grandes amigos, diz, em conversa com a 2, porque sentiu necessidade de reflectir sobre essa experiência "tão desagradável" de que se "fala tão pouco", porque é um "tema tabu".

Lembra o episódio de Seinfeld para ilustrar como "não há um código para acabar uma relação de amizade, não existe na sociedade, não há um comportamento apropriado".

Nas relações amorosas há, quanto mais não seja, o "isto não está a resultar", "não tem a ver contigo, o problema sou eu", "sinto falta de estar com outras pessoas" e mais todos os clichés repetidos pelo comediante que já vimos e revimos nas séries, no cinema e replicados na vida real. Mas uma amizade, uma amizade a sério, intensa, íntima, não é suposto acabar. Ou é?

"Quando o amor acaba, a tragédia é minimizada porque já sabíamos que "o amor acaba". O fim de uma amizade é uma surpresa mais chocante", escreveu numa crónica para o PÚBLICO, em 2008, intitulada Teoria geral do ex-amigo. "A mitologia diz que os amigos são indestrutíveis e eternos. Há, por isso, um grau de decepção no fim de uma amizade que cobre de vergonha os envolvidos."

De um amor que desaparece pode dizer-se que se confundiu o amor com uns olhos azuis, como ironizava Mexia na crónica. "Nunca mais me apaixono", ouve-se tantas vezes. Vale o que vale, mas quem já não viu alguém mais ou menos abalado fazer essa promessa?

Bem mais improvável será ter ouvido: "Nunca mais vou ser amigo." Em suma, diz Mexia: "Nunca achei que a amizade fosse mais importante do que o amor, nunca comprei essa tese, mas, curiosamente, do fim do amor pode falar-se abertamente", as pessoas acham isso normal. Enquanto do fim da amizade "tem-se pudor em falar". E talvez por isso, todos os homens e mulheres junto de quem a 2 recolheu testemunhos pessoais pediram para que os seus nomes verdadeiros não fossem usados.

Já agora, para quem não viu o episódio: Joel desfez-se em lágrimas. Seinfeld voltou atrás, inventou uma desculpa esfarrapada - "Ando sob grande stress, podemos esquecer isto? Continuamos amigos, continuamos amigos..." - e convidou-o para ir ver um jogo de basquetebol. O humor com o qual a sitcom aborda o assunto não tem qualquer correspondência com a realidade. É pura ficção.

A verdade é que "muita gente procura apoio de um profissional para lidar com a dor que o fim de uma amizade provoca", diz Gabriela Moita, psicóloga e terapeuta familiar. "O fim de uma amizade pode doer tanto como o fim de outras relações, como o fim de uma relação amorosa, que é algo muito mais cantado."

Nas suas consultas, a psicóloga lida com casos em que a narrativa sobre a amizade repete argumentos que associamos a outras relações. Pessoas que sentem que uma amizade lhes faz mal (porque é demasiado exigente, porque é demasiado frustrante...) - mas que acreditam que "é melhor persistir nas coisas do que abandoná-las", como se "ir embora de uma relação fosse um falhanço" (onde é que já ouvimos isto? Nas relações amorosas marcadas pela violência doméstica, por exemplo, lembra).

Mas nas consultas aparecem, sobretudo, pessoas "devastadas" porque perderam um amigo. O fim de uma amizade, garante, também pode tirar o sono, o apetite, a autoconfiança e a confiança nos outros. Pode igualmente ser a última gota que faz cair um edifício já frágil - Claudio Moraes Sarmento, psiquiatra e grupanalista, conta como recentemente recebeu na sua clínica alguém com um quadro depressivo desencadeado "pela traição de um grande amigo, uma espécie de irmão".

A tristeza que fica perdura no tempo. "Uma tristeza mais suportável e mais duradoura que a tristeza amorosa", nas palavras de Pedro Mexia. E também nas de Maria, 47 anos, separada, uma filha e uma vida da qual, diz, fazem parte muitos amigos.

Não é com prazer que aceita dar um testemunho. "Não me apetecia nada falar disto hoje", diz sentada à mesa da cozinha onde, três, quatro dias por semana, recebe os amigos - "A minha filha pergunta sempre: "Mãe, quem janta esta noite?""

Um dos casos que recorda tem anos, mas ainda hoje a incomoda profundamente. "A ressaca de uma amizade é enorme. Não é a vertigem da ressaca amorosa, mas fica para sempre. A paixão é uma necessidade que alguém preenche - uma paixão substitui outra, pelo menos é o que eu sinto. A amizade não. A amizade com uma determinada pessoa é única, junta-se a outras, mas é única, não é substituível e, ao desaparecer, fica um vazio que não pode voltar a ser preenchido."

A história então: são três amigas, duas zangam-se, Maria fica no meio. Sabe que uma está bastante desiludida com a outra, mas decide não tomar partido. Quer manter as duas amizades e, na verdade, acha que os comportamentos do ser humano nem sempre são facilmente classificáveis como, simplesmente, bons ou maus. Não sente uma necessidade urgente de expressar um juízo. Mas a amiga que se sente desiludida não compreende essa posição. Provavelmente, irrita-a este pudor de Maria em criticar a outra amiga. "Houve uma conversa, ela disse que não tinha gostado, eu senti-me desconfortável" e acabou.

A amiga afastou-se. A outra permaneceu. Mas cá está: um amigo não ocupa o lugar de outro. "Vivi um ano de absoluta perplexidade e de dor." Pelo vazio. Mas não só. "A capacidade que aquela pessoa teve de desistir de mim foi algo tão violento que eu sinto que, de alguma forma, simbolizo algo de muito desagradável na vida dela. Reflecti bastante e não cheguei a grande conclusão. Mas fica sempre a dúvida: o que é que aquela pessoa viu em mim? Porque para acabar uma amizade é preciso identificar no outro algo profundamente errado ou mau, e agora estou a ser muito primária. Mas se desistimos de um amigo é porque ele nos faz mal; desistir da amizade é um castigo."

A revista britânica Sociological Review publicou, na sua edição de Maio, um artigo sobre o assunto. Uma equipa de sociólogos da Universidade de Manchester analisou as narrativas de cerca de 200 pessoas sobre os "altos e baixos da amizade" - homens e mulheres (a maioria casados e de meia-idade) que fazem parte do painel do British Mass Observation Project, que pretende retratar o quotidiano dos britânicos pedindo-lhes periodicamente que escrevam sobre certos temas.

Na última década, o tema "amizade" tem despertado o interesse da academia, recordam os autores (Carol Smart, Katherine Davies, Brian Heaphy e Jennifer Mason). Nas sociedades contemporâneas, "onde cada vez mais pessoas vivem sós", se debate cada vez mais as novas formas de família e até "se discute se os amigos estão a substituir as relações familiares", há quem se dedique a perceber qual o papel das relações interpessoais que não as marcadas pelo parentesco, como as que se estabelecem entre amigos.

Nesses estudos, as amizades tendem a ser valorizadas como relações agradáveis, com benefícios para todos os envolvidos, no pressuposto de que "escolhemos os amigos". Já a possibilidade da amizade poder ser "difícil", "problemática", colocar "dilemas morais", é menos equacionada. No artigo Difficult Friendships and Ontological Insecurity os sociólogos centraram-se, por isso, nos "baixos da amizade" - uma espécie de viagem ao lado negro das relações entre amigos.

Em muitos depoimentos analisados repetem-se estas três ideias: mesmo quando há uma desidentificação, é suposto manter uma amizade - "Não se pode abandonar um velho amigo mesmo se ele se torna cansativo", lê-se num dos testemunhos; os nossos amigos estão associados "à imagem que construímos de nós próprios", funcionam como uma espécie de espelho, ao ponto de muitas pessoas relatarem que não querem rever um velho amigo porque eles lhes faz lembrar um "eu" ligado a certas circunstâncias da sua vida no qual já não se revêem; por fim, quando as amizades se desvanecem, ou se rompem abruptamente, muitas pessoas sentem-se profundamente inseguras - se um amigo as afasta, o que é que isso revela delas? Que características tão "desagradáveis" ou até "inaceitáveis" descobriram esses amigos que se foram embora?

"Podia contar histórias até amanhã de manhã de pessoas que sofreram genuinamente com desilusões com amigos", diz Margarida Cordo, psicóloga. Tal como Gabriela Moita, também ela lida com estes casos no consultório. "Quando nos dedicamos a alguém afectivamente é espontâneo e natural que criemos expectativas. Expectativas de alguma incondicionalidade que não contempla certos tipos de atitudes como a traição, a competição desleal, a infidelidade, porque não é só no amor que há infidelidade."

Noutros casos há um profundo desgosto por uma relação se revelar assimétrica. Uma das psicólogas com que a 2 falou recorda o caso de Ana, chamemos-lhe assim, uma mulher solteira, sem qualquer relação amorosa. Ana tem muitas amigas e faz questão de estar presente na vida delas. Manda-lhes mensagens diárias, telefona-lhes. É o tipo de pessoa que adivinha as necessidades das pessoas próximas para tentar satisfazê-las. "O problema é que exige na proporção do que dá e frustra-se a toda a hora", até porque as amigas têm menos disponibilidade, têm companheiros e maridos. "Estamos a falar de alguém que sofre muito com tudo isto..." e que, ao mesmo tempo, faz sofrer as amigas que não conseguem lidar com esta amizade. Neste momento, Ana anda a tentar descobrir outra forma de "ser amiga".

Raramente o fim de uma amizade é provocado por divergência de opiniões - a amizade é um espaço de liberdade, onde se aceita a diferença, nota Teresa Freire, investigadora da Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Essa é, aliás, uma das suas características intrínsecas. Quando uma amizade acaba há antes, frequentemente, uma dimensão de "erro de avaliação do carácter" - "Perder aquela amizade afectou-me profundamente, abalou a minha confiança e fez-me acreditar que avalio mal o carácter das pessoas", escreveu uma das participantes no estudo britânico.

Margarida Cordo reconhece o sentimento: "Há uma pessoa que acompanho em terapia que me pediu ajuda e o que me disse foi: "Preciso de me pacificar face a uma desilusão de amizade. Ficar com a amizade ou sem ela já é para mim uma questão secundária. Preferia ficar com ela, mas mais do que reparar a amizade quero reparar-me a mim mesmo. Porque eu era uma pessoa atenta. Hoje, sou uma pessoa desconfiada"."

A psicóloga não revela pormenores sobre este homem que arranjou emprego numa empresa para ele e para um amigo que vinha dos tempos de faculdade. Mas, no essencial, a história é esta: a "ambição" foi mais forte do que o companheirismo. "O amigo montou-lhe uma armadilha, este caiu na esparrela, cometeu um erro, o outro podia tê-lo ajudado a corrigir mas, antes que ele tivesse oportunidade de corrigir, denuncia-o à chefia, dizendo que aquele indivíduo não estava em condições de trabalhar porque até cometia erros daquele calibre. Este ficou completamente arrasado. Nas sessões, à medida que temos avançado, percebemos que isto foi tão avassalador que o fez perder a capacidade de confiar, de acreditar na lealdade."

Histórias em que trabalho, negócios e amigos resultam num cocktail amargo são, de resto, comuns. Francisco, 36 anos, experimentou-o e está ainda a digerir o resultado. Conheceu Rodrigo na escola, em plena adolescência, quando os amigos, como diz Teresa Freire, têm um papel crucial no crescimento do indivíduo.

Tornaram-se inseparáveis e assim foi até entrarem na universidade. Seguiram caminhos distintos. E afastaram-se. Até que um dia se reencontraram.

Em pouco tempo estavam tão próximos como sempre tinham estado. Tinham interesses comuns, profissões que tocavam a mesma área e Rodrigo, que estava a formar uma empresa, convidou Francisco a entrar no projecto e a ser seu sócio. Francisco não hesitou. Largou o emprego que tinha, juntou as poupanças, investiu. "Mas sabia que ao trabalhares com um amigo estás a pôr a amizade num dos pratos da balança." Arriscou na mesma.

No início correu bem, depois veio a crise. Os concursos começaram a escassear, as encomendas também. E a empresa começou a ter dificuldades. "Se estivéssemos ricos, provavelmente nada disto tinha acontecido, mas em tempos de crise não é fácil." No início, Francisco tentava não entrar em confronto directo com o amigo-sócio. "Guardava para mim o que pensava, não falava, para não prejudicar a amizade."

Com o tempo, percebeu que não estava a fazer aquilo que acreditava que tinha de ser feito - para bem do negócio e da amizade. Mais tarde veio a desconfiança. E foi o fim. Francisco afastou-se da empresa, já não tem nada a ver com as decisões que lá se tomam, não quer ter.

Espera conseguir recuperar o dinheiro que investiu. Talvez seja mais fácil do que recuperar a relação com o amigo. Continuam a falar-se, cordialmente, até porque há projectos comuns a concluir. Mas não se imagina, por exemplo, a voltar a tomar um copo com ele. "Amizade e negócios, nunca mais."

Quer acreditar, no entanto, que tudo isto não vai deixar marcas maiores. "Se calhar isto vai tornar-me uma pessoa mais cautelosa... Desconfiado? Vou tentar não ir por aí."

O artigo Difficult Friendships... distingue diferentes tipos de amizades. Não são as amizades "simples" (expressão usada pelos autores) que colocam problemas - estas amizades são descritas como aquelas que estão associadas, sobretudo, à diversão, ao lazer e, em relação a elas, muitos entrevistados não têm dúvidas de que se a relação deixa de ser "agradável", o melhor é "deixar cair".

O problema são as outras - as "complexas", as do tipo "alma gémea", lê-se. Ou, como descreve Pedro Mexia num dos seus textos, os amigos "a quem um dia entregamos as chaves todas que tínhamos", os amigos íntimos.

As reacções às notícias que foram sendo publicadas nos últimos dias a propósito do artigo da Sociological Review, que foi notícia em vários jornais do mundo, mostram como as pessoas se dividem na hora de falar deste tema. De forma mais ou menos amarga: "A amizade canina é para sempre", escreve uma leitora na página do PÚBLICO no Facebook. "As amizades são transitórias e [para] viver enquanto duram", comenta outro. "Quando era mais jovem e passei por um período difícil a pessoa que eu achava que era a minha melhor amiga não esteve lá e senti-me profundamente traída", escreve outra ainda, no fórum do jornal britânico The Guardian. "A amizade pode ser mais forte do que os laços de família e provocar 50 vezes mais dor quando acaba", acrescenta outro.

Uma desilusão com alguém que tem o papel de "melhor amigo" pode acontecer em qualquer altura da vida, com grande impacto. Na idade adulta ou na adolescência. "Aparecem-me muitos adolescentes", continua Gabriela Moita. "Muitos e muito desestruturados pela desilusão com um grande amigo que, simplesmente, deixou de estar presente." Um grande amigo que arranja uma namorada, por exemplo, anda perdido de amores por ela e lhe passa a prestar todas as atenções. "Os namoros roubam tempo e a pessoa que tem mais tempo é a que vai sofrer mais porque sente muito a perda, sente abandono, sente-se deixada para trás... e é isto que traz as pessoas aqui, a consciência de que já não se tem aquela pessoa."

O psiquiatra Claudio Moraes Sarmento, de resto bastante crítico do artigo da revista britânica, por o considerar "demasiado sociológico", prefere descentrar as dores da amizade da relação de amizade em si. Defende que os mecanismos que cada um tem para lidar com afastamentos e rupturas, frustrações e perdas são iguais nas amizades como noutro tipo de relações - "tem a ver com a nossa personalidade, com os nossos mecanismos de defesa", as "vivências precoces" e "o meio em que fomos criados".

É um facto, continua, que diferentes tipos de relações "satisfazem diferentes tipos de necessidades, mas o modo como as pessoas se movem nos vários núcleos é mais ou menos constante". Ou seja, alguém mais intolerante à frustração reagirá de forma mais violenta à mesma numa relação de amizade, de trabalho, familiar ou outra.

Mas não é esta a narrativa reproduzida por muitos testemunhos, não só nos analisados no artigo da Sociological Review, como nos recolhidos pela 2. Tal como Pedro Mexia, ou Maria, Paula, uma professora de 37 anos, solteira, conta o que lhe aconteceu aos 20 e poucos anos com o maior amigo e a comparação com outro tipo de relações volta a ser referida nestes termos: "É muito parecido com o que se sente no fim de uma relação amorosa, se calhar mais doloroso."

Carlos era o maior amigo dela desde a adolescência. Encontravam-se todos os dias. Frequentavam a casa um do outro quase diariamente. "Ele era um tipo muito inteligente, muito talentoso..."

Um dia, Carlos arranjou uma namorada de que Paula foi aprendendo a gostar - a gostar tanto que hoje, essa rapariga, é uma das suas "maiores amigas".

Naquela altura, contudo, Paula, estava ao lado de Carlos quando o namoro acabou. E ele não se conformava com a ruptura. Mas não era só isso. "Foi uma altura complicada para ele, a vida profissional não lhe estava a correr bem, a ela sim, estava a correr melhor, pelo menos... e ele começou a arranjar-lhe problemas. Creio que isso acontecia porque estava inconformado com o fim da relação. Dizia mal dela, espalhava rumores no trabalho dela." Procurava prejudicá-la.

Quando um dia arranjou forma de excluir a ex-namorada de um projecto, Paula achou demais. "Já o tinha visto fazer certas coisas" que a faziam duvidar se ele seria de facto boa pessoa. "Mas eram coisas que não me tocavam directamente e, como éramos amigos, deixava passar, tentava desculpabilizar. A verdade é que demorei muito tempo a assumir que ele tinha mau carácter."

Falou com ele. Depois com ela. "Contei à ex-namorada dele o que ele tinha feito para a prejudicar" profissionalmente. E ele, como seria de esperar, reagiu mal. "Foi uma grande amizade que acabou de um dia para o outro e sofri muito, muito, muito. Aquela pessoa fez-me uma falta horrorosa e aquela perda foi muito sentida."

Muitos anos depois, Paula e Carlos reencontraram-se. Foram beber um café. "Tinha saudades dele. Mas quando comecei a ouvi-lo falar da sua carreira, dos colegas, percebi que ele falava da mesma maneira, que não tinha mudado." O olhar benevolente com o qual lidara com o seu amigo, durante anos, quando todos os dias estavam juntos e iam a casa um do outro, desaparecera. Aquela amizade não podia ser resgatada.

Rosa, jornalista de 36 anos, casada, sem filhos, nunca reencontrou, ao longo dos últimos 15 anos, uma amiga que perdeu por... enfim, nunca soube porquê. "Conheci a minha amiga no primeiro ano de faculdade e rapidamente nos tornámos inseparáveis. Tínhamos imenso em comum: o facto de não termos família na cidade onde estudávamos, a música, o cinema, a poesia, os sonhos. Não havia nada que me acontecesse na vida que não lhe contasse. Ficávamos acordadas até altas horas da madrugada a conversar, ora em casa dela ora na minha. Nesses quatro anos de amizade não me lembro de termos uma grande discussão. Ela não era apenas uma amiga, era a minha melhor amiga."

A certa altura decidiram partilhar casa. Os primeiros desentendimentos surgiram por causa de coisas corriqueiras. "A louça por lavar, algum objecto fora do sítio habitual, a partilha do comando da televisão..." Mas falava-se pouco disso. "Eu percebia que ela estava amuada (digamos que o clima lá em casa ficava pesado) mas nunca sabia porquê. Tinha de insistir com ela para que ela me contasse o que se passava. "Ah, afinal foi o copo que eu usei e não lavei logo a seguir, ok, desculpa"."

Com o tempo, as "birras" começaram a parecer-lhe disparatadas. Rosa não acha que seja uma pessoa particularmente desarrumada. Mas estava em casa, na sua casa, não na tropa. "Um dia cansei-me dos amuos. Decidi não perguntar nada, não dizer nada. Se eu tinha feito algo que lhe desagradou, então ela que tivesse a maturidade de dizer logo o que era! Estava farta das birras. Os dias passaram e eu entrava em casa e era aquele mau clima. Mas mantive-me teimosa: ao menos uma vez na vida não ia andar atrás dela, a implorar, ela que desse o primeiro passo. As semanas passaram e nada. Mais de um mês depois eu já não aguentava o ambiente, detestava ir para casa, fazia tempo na rua. A situação chegou a um ponto insuportável e decidi sair de casa. Aluguei um apartamento e disse-lhe que me ia embora. Ela concordou que era melhor."

Passaram, portanto, 15 anos. "Nunca mais a vi. Nem nunca soube qual tinha sido a minha falha." Um copo fora do lugar, uma vez mais? Admite que sim, que tenha sido tão-só isso ou qualquer coisa com gravidade idêntica. "Mas até hoje não sei. Fiquei imensamente magoada pelo sinal que ela me dava: afinal, a nossa amizade valia tão pouco, não valia nada."

Ana Roque Dantas é socióloga e assistente de investigação no Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa. Escreveu um livro, chamado A Construção Social da Felicidade, que deverá ser publicado em breve pela Colibri.

Tal como os sociólogos que analisaram os relatos do Mass Observation, a socióloga confirmou nas suas entrevistas a importância dos amigos "como fonte de satisfação". Mas também constatou que a amizade não é algo de estático. A entrada na universidade, o casamento, o nascimento do primeiro filho são identificados pelos entrevistados como momentos importantes de mudança - mudança também de amigos. "Não há necessariamente rupturas, há afastamentos e a necessidade de criar novos amigos. Fala-se disso com algum pesar, mas aceita-se."

Teresa Freire, que também está envolvida num projecto de investigação que inquire uma amostra de pessoas ao longo do tempo e lhes coloca questões sobre o seu quotidiano e o seu bem-estar, lembra aliás que "há estudos que mostram que quando as pessoas percebem que em diferentes contextos podem fazer novos amigos, isso é muito gratificante para elas" - significa que uma grande amizade "pode ser construída em qualquer momento da vida".

"Vamos mudando as nossas necessidades, os nossos gostos e mudamos as pessoas com quem nos damos. E isso não tem de ser algo de mau: é a evolução normal. Temos é de ter sempre amigos e alguns amigos íntimos", afirma por seu lado Moraes Sarmento. Já a ideia de que "os amigos duram para sempre" é tão verdadeira quanto a de que "os pais gostam sempre dos filhos" ou a de que "temos de aceitar sempre a família que temos - é mentira, há famílias muito boas e há famílias muito más e por vezes é importante que haja mesmo uma separação, um corte".

Resumindo: na verdade, poucas pessoas parecem manter amigos a vida inteira. E os especialistas acham que isso até tem um lado bom. Mas a muitos assusta esta ideia de que até a amizade é a prazo. "Há uns anos, um ministro, ou uma ministra, do Emprego, francês apresentou uma lei do trabalho e alguém lhe perguntou: "Então e o trabalho precário?..." E ele respondeu: "Mas se até o amor é precário, porque não o trabalho?" É uma resposta um bocadinho cínica, vinda de um ministro, claro. Mas sim, creio que as coisas são cada vez mais precárias", diz Pedro Mexia.

O mundo é mais veloz, viajamos mais, conhecemos mais pessoas e até desamigamos no Facebook - "Chamarmos amigos a alguém que não reconheceríamos na rua deu à palavra "amizade" uma conotação de superficialidade que ela não tinha ou, pelo menos, que achávamos que não tinha", continua o escritor. Não significa que não haja amizades intensas. "Mas há 20 anos não ouvia com tanta frequência falar de tantas amizades perdidas ou interrompidas, como ouço hoje (em privado, claro, porque, como disse, as pessoas continuam a ter muito pudor de falar disso). Sinto que até a amizade se tornou vítima da precarização das relações sociais." O que é normal, porque a "amizade não vive numa redoma e o ambiente social em que vivemos digamos que corrói todas as relações humanas". Nada é para o resto da vida, nem o trabalho, nem o amor. Nem os amigos. "É um dano colateral da mudança civilizacional."

"Há 20 anos, se queríamos telefonar a um amigo tínhamos de chegar a uma cabine pública ou a casa, discar um número fixo, esperar que ele lá estivesse e se não estivesse que alguém lhe desse o recado, e esperar", ilustra Margarida Cordo. "Precisávamos de fazer esforço, de nos empenharmos, para ter amigos. Hoje temos pessoas, pessoas, pessoas, e se olharmos para a profundidade do que é a partilha, a confidência, o interesse genuíno do outro por nós e de nós por outro... existe pouco."

Dias depois da conversa com a 2, Francisco, o rapaz que se zangou com o amigo-sócio, envia-nos a digitalização de uma crónica escrita no ano passado por Miguel Esteves Cardoso no PÚBLICO. Chama-se Amigos para Sempre e nela o autor conta: "Nesta semana, tenho almoçado com amigos meus grandes, que, pela primeira vez nas nossas vidas, não vejo há muitos anos. Cada um começa a falar comigo como se não tivéssemos passado um único dia sem nos vermos. Nada falha."

"Nem a propósito" - escreve Francisco no subject do email através do qual partilha a crónica. Sim, ele está a sentir neste momento como uma amizade falha. E sim, acha que são coisas que acontecem... Mas é muito mais agradável continuar a acreditar que algumas resultam e são "para sempre".

sexta-feira, 27 de maio de 2016

O MUSEU ARQUEOLÓGICO DE NÁPOLES




Para relatar as complexas peripécias históricas que levaram à fundação do Museu é preciso recuar à primeira metade do século XVIII e à política cultural esclarecida posta em prática por Carlos III de Bourbon, que subiu ao trono de Nápoles em 1734. Herdeiro por parte da mãe (Élisabeth Farnese) de uma extraordinária colecção de obras de arte e de objectos antigos, então ainda dispersa entre Nápoles, Roma (Palácio Farnese, Villa Farnesina e Villa Madame) e Parma (Palácio Ducal de Colorno), Carlos III de Bourbon começou a edificação, no quinto ano do seu reinado (1738), da Villa Reale di Capodimonte, destinada a tornar-se a sede do "Museu Farnesino". Nesse mesmo ano o rei lançou uma campanha de frutuosas escavações em Resina, nos terrenos de uma das residências reais de vilegiatura, já examinadas trinta anos antes pelo príncipe de Elbeuf. Este último tinha desenterrado as estátuas que viriam depois a integrar a colecção de Maria-Amélia de Saxe, a mulher de Carlos III. As pesquisas permitiram descobrir a decoração escultural  muito rica do palco do teatro de Herculanum, composta para uma extraordinária série de estátuas de mármore e de bronze, bem como de numerosas inscrições. Dez anos mais tarde, em 1748, as escavações de Pompeia e no ano seguinte (1749) as efectuadas na vizinha Stabiae: encontraram-se assim objectos de valor artístico excepcional, estátuas de mármore e de bronze como as da Villa dei Pisoni de Herculanum (1754-58), e mesmo vestígios prodigiosos como os papiros que compunham a biblioteca dessa mesma villa. Este abundante material arqueológico (mosaicos, utensílios da vida quotidiana, armas, objectos preciosos, vidros e pinturas esplêndidas) encontrou lugar nas salas da Villa Reale de Portici e constituiu o núcleo do primeiro Museu Herculanense (1750). Foi sobretudo graças a estas prestigiosas novidades que Nápoles, tornada capital de um novo Reino, se tornou também uma etapa obrigatória do Grand Tour, uma espécie de peregrinação cultural em Itália que todos os jovens europeus deviam efectuar para aperfeiçoar a sua educação.


Mas a ameaça do Vesúvio a Portici (uma dúzia de erupções tivera lugar no século precedente) e a lentidão com que prosseguiam os trabalhos em Capodimonte persuadiram o sucessor de Carlos III, Fernando IV de Bourbon, a reunir as colecções da família num único Museu grandioso.

Fernando IV como Minerva (estátua de mármore de António Canova)

Assim, o imponente Palazzo degli Studi de Nápoles foi destinado "ao uso do Reale Museo di Portici, galeria de quadros de Capodimonte, para grande biblioteca Pública, Escola para as três Belas-Artes e sala para o estudo do Nu". A renovação da velha fábrica Renascimento tardio em mau estado foi confiada ao célebre arquitecto Ferdinando Fuga, a quem sucedeu Pompeo Schiantarelli. Foi este último que teve a ideia de edificar o andar superior e o grande hemiciclo das traseiras do palácio, "porque tudo isto podia contribuir para reforçar o esplendor da Capital  e a comodidade do Público" (1780). O alargamento dos espaços de exposição inscrevia-se no projecto audacioso já avançado por Vanvitelli visando transferir para Nápoles a fabulosa colecção romana dos Farnese. Essa operação custosa e complexa, começada em 1787 e prosseguida nos anos seguintes, foi conduzida, a pedido de Fernando IV, pelo especialista da Antiguidade Domenico Venuti e pelo pintor Philipp Hackert. A operação revelou-se muito complicada: a transferência efectiva exigiu vários anos e algumas obras de arte tiveram de esperar longos anos antes de encontrarem o seu lugar definitivo (é o caso do Touro, que fez a sua entrada apenas em 1826).

Augusto (estátua de bronze proveniente do Augusteum, de Herculanum)

O projecto deste novo Museu partia com as intenções mais grandiosas, ao ponto que em 1791 pensou-se acrescentar aos destinos de uso previstos para o edifício dos Estudos um Observatório astronómico, a instalar no Grande Salão, e do qual apenas se realizou um meridiano que dá ainda hoje o seu nome à sala que o acolhe.


Cláudio (estátua de bronze proveniente do Augusteum, de Herculanum)

As dolorosas peripécias deste período, com as duas fugas do rei para Palermo (1798 e 1806) e a década francesa dos governos de Joseph Bonaparte e de Joachim Murat (1806-1815), não facilitariam a conclusão dos trabalhos do novo Museu Napolitano, inaugurado apenas em 1816, com o nome de "Reale Museo Borbonico".

Doríforo (estátua de mármore, réplica do original grego em bronze de Policleto, proveniente de Pompeia)

A história seguinte do Museu permanece ligada aos apelidos dos seus directores, Michele Arditi (1810-1838), Francesco Maria Avelinno (1838-1849) e Giuseppe Fiorelli (1863-1875). Este último foi o precursor de uma política de protecção e de valorização do território que é o fundamento da concepção  moderna do Museu da Antiguidade.

Deusa Roma restaurada como Apolo com cítara (estátua em pórfiro vermelho e mármore branco)

Foi o historiador positivista Ettore Pais que repôs em ordem, no período entre o século XIX e o século XX, as colecções do Museu Napolitano. O seu projecto era muito inovador para a época, e sobreviveu nas suas grandes linhas até muito recentemente. Dividiu as obras por contextos, colocou o acento na disciplina da Pré-história e imprimiu uma forte conotação histórica a certas exposições (as pinturas pompeianas, o retrato e a escultura grega).

Pátio com esculturas modernas

Novos trabalhos de renovação foram empreendidos em 1957, com a transferência da pinacoteca para Capodimonte. Esta nova disposição ofereceu a oportunidade extraordinária para poder reflectir na própria função do Museu: preservar a tradição e o prestígio das colecções reais, mas igualmente ligar mais estritamente o Museu à história e à arqueologia do seu território de pertença.

(Minha tradução da Introdução do Catálogo do Museu)

* * * * *

O rés-do-chão do Museu abriga as colecções Farnese de escultura e de gemas (pedras preciosas) antigas, a colecção de escultura greco-romana da Câmpania e as estátuas públicas provenientes de Herculanum.

No sub-solo localiza-se a colecção egípcia e a colecção epigráfica.

Na mezzanine está a colecção de  mosaicos, o gabinete secreto (peças eróticas) e a colecção numismática.

No primeiro andar têm lugar  as peças da Villa dos Papiros (de Herculanum), da cultura grega no golfo de Nápoles e da Grande Grécia, a secção de pré-história e de proto-história, o Grande Salão do Meridiano, a colecção de pinturas de Herculanum e de Pompeia, o Santuário de Isis em Pompeia, objectos diversos provenientes de Pompeia e a grande maquete de Pompeia.

* * * *  *

A Colecção Farnese é a mais célebre das colecções romanas da Antiguidade. Foi começada pelo Papa Paulo III Farnese, que concedeu à sua família o direito de proceder a escavações que permitissem descobrir as melhores esculturas e outras peças de arte para a sua residência principal, o Palácio Farnese, onde se encontra hoje a Embaixada de França em Roma e onde Sardou e Puccini colocaram o II acto da Tosca. A colecção foi consideravelmente aumentada pelo cardeal Alessandro Farnese, neto de Paulo III e homem de gosto requintado que foi um dos principais mecenas da época. Não havendo lugar para todas as obras de arte no Palácio Farnese, as consideradas menos importantes foram distribuídas pelas residências secundárias da família, a Villa Madama, nos arredores de Roma (e que deve o nome a Madama Margarida de Parma, filha natural de Carlos Quinto, a quem pertenceu também o Palazzo Madama, em Roma, hoje sede do Senado Italiano), a Villa della Farnesina, o Palácio Ducal de Colorno, em Parma, etc. Este espantoso património foi mudando de mãos ao longo das gerações, devido aos casamentos dos proprietários. A dinastia Farnese extinguiu-se em 1731 (com a morte de Antonio Farnese, último duque de Parma) e a herança da família passou para os Bourbons, através de Elisabeth Farnese, que casou com Filipe V de Espanha e que foi mãe de Carlos III de Espanha, que se tornaria rei de Nápoles (1734). Foi Carlos que transferiu para Nápoles as colecções de Parma, enquanto seu filho Fernando IV, com autorização do papa, transferiu as colecções romanas.

* * *

Não sendo exequível, por questões de espaço, apresentar aqui, simultaneamente, a descrição da maioria das peças expostas e as respectivas fotos, optamos por reproduzir apenas as fotos, tiradas (em geral) sequencialmente ao longo da visita, acompanhadas da sua identificação, sempre que possível ou necessário. Mesmo assim, a quantidade de fotos que se mostram constitui já uma apreciável amostra do acervo do Museu.




Os Tiranicidas, Harmodius e Aristogíton (esculturas romanas em mármore, cópia dos originais gregos em bronze, provenientes da Villa de Adriano, em Tivoli)*

* Segundo relata o historiador grego Tucídides, na sua célebre obra A Guerra do Peloponeso, Harmodius e Aristogíton foram dois atenienses que se tornaram célebres por terem morto Hiparco, filho do ditador Pisístrato, responsável pela introdução da "tirania" em Atenas. De acordo com Tucídides, Hiparco teria feito duas vezes propostas de carácter sexual a Harmodius, amante de Aristogíton, que as rejeitou. A relação de Harmodius e Aristogíton enquadrava-se no modelo pederástico da Grécia Antiga, sendo Aristogíton o amante mais velho e Harmodius o adolescente que importava proteger. Para se vingar da recusa de Harmodius, Hiparco humilhou publicamente a irmã deste o que provocou a fúria dos dois amantes que conceberam um plano para matar Hiparco e seu irmão Hípias durante o festival das Panateneias. Em conjunto com outros atenienses desencadearam o golpe mas apenas conseguiram matar Hiparco. Na confusão do momento Harmodius foi morto pelos guardas. Aristogíton terá sido torturado até à morte, com a intenção de que revelasse o nome dos outros conspiradores. Harmodius e Aristogíton tornaram-se símbolo da liberdade e da democracia e foram os primeiros atenienses a terem um grupo escultórico em sua honra, da autoria de Antenor, encomendado por Clístenes e pago com dinheiros públicos (o que aconteceu pela primeira vez) e que foi colocado na Ágora. As esculturas foram mais tarde levadas para a Pérsia, por Xerxes quando invadiu a Grécia, e devolvidas depois por Antíoco. Posteriormente, os ateniense encomendaram outro grupo escultórico a Crítias, que também se perdeu, existindo hoje apenas cópias romanas. O grupo exibido no Museu é uma réplica das esculturas de Crítias. A história dos dois amantes passou a ser citada como exemplo de heroísmo e devoção. Muitos anos mais tarde, quando o político Timarco foi perseguido (por razões políticas)  com a acusação de que se teria prostituído na juventude, foi defendido por Demóstenes, que evocou a ligação de Harmodius e Aristogíton, e também a de Aquiles e Pátroclo, como exemplo dos efeitos benéficos das uniões do mesmo sexo.

*


Touro Farnese (grupo escultórico em mármore, proveniente das Termas de Caracala, em Roma)*

* Esta obra-prima, que partilha com o Laocoonte, dos Museus do Vaticano, o privilégio de ser mencionada na História Natural, de Plínio, o Antigo, é ainda hoje emblemática da riqueza da Colecção Farnese. O grupo ilustra o mito do suplício de Dirce, uma ninfa esposa de Lico, rei de Tebas, que maltratava a sobrinha do marido, Antíope (que se refugiara em sua casa), a quem tratava como escrava por inveja da sua beleza e por suspeitar que o marido estaria apaixonado por ela. Conseguindo fugir para junto dos filhos gémeos, Anfião e Zethos, estes, para vingar a mãe, atacaram Tebas, destronaram Lico, e ataram Dirce aos cornos de um touro que a arrastou até despedaçá-la nos rochedos.

*


Hércules Farnese (estátua em mármore, proveniente das Termas de Caracala, em Roma, cópia do bronze de Lysippo de Sicyone)
Dioniso e Eros
Adriano
Dioniso
Antínoo
Apolo com cítara
Sátiro com pequeno Baco
Ganimedes com Zeus transformado em águia
Pan e Dafnis

Musa Urânia
Pothos
Esculápio
Tibério
Taça Farnese
Minerva
Guerreiro com rapaz (Aquiles e Troilo)
Idem
Fauno
Atena

Antínoo - Baco
Adriano
Sarcófago dos irmãos
Hipócrates
Moschion
Píndaro, Heródoto, Sófocles e Ésquilo

Sócrates

Cibele entronizada











(Como em alguns outros grandes museus que conheço, também existem salas de arrumação expostas ao público)

Maquete de Pompeia

Figuras licitantes e Hércules ébrio (em cima) ; Io e Argos (em baixo) - Pompeia

Fastígio com arquitectura - Herculanum (em cima); Onfale e Hércules - Pompeia (em baixo)

Arquitectura e Narciso - Pompeia

Suplício de Dirce - Pompeia

Larário com cena de sacrifício e serpentes - Pompeia


Dioniso com coroa de uvas

Atlante Farnese ( estátua de mármore, cópia de um original grego do século II AC, proveniente da Biblioteca do Forum de Trajano)
Pintura de parede de jardim (Casa da Pulseira de Ouro) - Pompeia
Os Corredores (cópia em bronze de dois efebos, cujo original é atribuído a Lysippo, cerca do século IV AC, provenientes da Villa do Papiros, de Herculanum)
Idem
Idem
Sátiro adormecido
Hermes
Seleuco I
O Mergulhador (pintura de um túmulo de Paestum)
Cave canem - Pompeia (em baixo)

Batalha de Alexandre (proveniente da Casa do Fauno - Pompeia)

Idem (reprodução)

Fauno (proveniente da Casa do Fauno - Pompeia)

Baco montando um leão (proveniente da Casa do Fauno - Pompeia)

Apresentamos a seguir as imagens de algumas peças expostas no Gabinete Secreto, provenientes de Pompeia:






























Por razões várias - e ainda que este post nunca tivesse a intenção de reproduzir todas as obras expostas no Museu Arqueológico de Nápoles - verifica-se a omissão de algumas peças significativas. Contudo, a maior parte das preciosidades do Museu está aqui retratada.

Por falta de tempo, não visitámos a Secção de Numismática e a Secção de Epigrafia encontrava-se encerrada.

Também não nos foi possível compartimentar por secções as peças do primeiro andar, ainda que correspondam grosso modo ao percurso da visita.