sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A FRACTURA



 حبر العالم خير من دم الشهيد

 "A tinta do sábio é mais preciosa do que o sangue do mártir" (Hadith atribuído ao Profeta)

Gilles Kepel, islamólogo famoso, professor na École Normale Supérieure e em Sciences Po, autor de numerosas obras que modelaram o pensamento francês e mundial sobre o Islão, acabou de publicar La Fracture, onde considera que o Daesh operou uma "fractura" no ideal de "integração" dos filhos dos imigrantes pós-coloniais, fazendo cair uma suspeição terrível sobre a coesão sonhada da pátria.

Este livro reúne, precedidas de uma introdução, as crónicas do autor aos microfones de France Culture, entre o Verão de 2015 e o Verão de 2016, isto é, desde o ataque a "Charlie Hebdo" até ao atentado de Nice.

Ao longo das páginas deste livro, Gilles Kepel, eminente arabista e meu amigo, desenvolve o seu pensamento sobre as causas (e as consequências) do terrorismo dito islamista, debruçando-se sobre os actos praticados durante um annus horribilis. Desde então, não cessaram os actos visando "abalar as bases do Estado, apressar a decomposição da sociedade, desencorajar toda a gente e introduzir a desordem nos espíritos", para citar uma frase de Dostoyevsky, em Os Possessos, e cuja última ilustração foi o atentado no mercado de Natal de Berlim.

Profundo conhecedor do mundo islâmico, falando correctamente a língua árabe (literal e nas suas versões dialectais), Gilles Kepel investiga há mais de trinta anos esse mundo fascinante, e tive ocasião de fazer aqui em 2013 um comentário ao seu livro Passion arabe.

A evolução da situação no Mundo Árabe, nomeadamente após os ataques de 11 de Setembro de 2001, a invasão do Iraque, as "primaveras árabes", a guerra na Líbia e na Síria, e agora os atentados terroristas na Europa, tem levado os especialistas a uma reflexão sobre a relação dos muçulmanos com o Ocidente, já que nem todas as "certezas" que foram escritas podem ser dadas como adquiridas. Regressa a questão do "Orientalismo", tão bem equacionada por Edward Saïd e que suscitou larga controvérsia e contestação. Este é o momento da revisão de opiniões até aqui indiscutidas e indiscutíveis.

Também as teses de Gilles Kepel, figura incontroversa da islamologia, passaram a ser objecto de discórdia, ou porque o consagrado professor inflectiu a sua análise sobre os acontecimentos presentes, ou porque estes mudaram a própria natureza das coisas.

Confrontam-se hoje duas teorias principais: uma, sustentada por Kepel, a de que estamos a assistir a uma radicalização do islão; outra, que é defendida por Olivier Roy (também eminente islamólogo, professor e autor de cerca de trinta obras sobre o assunto), a de que estamos perante uma islamização do radicalismo. Como nesta área não há compartimentos estanques, nem um mundo a preto e branco, considero que os fenómenos se interpenetram, mas sou levado a privilegiar a tese de Olivier Roy. Não cabe aqui, evidentemente, explicar porquê: seria necessário revisitar a história do Ocidente, do Mundo Árabe e das suas relações mútuas durante, pelo menos, os últimos duzentos anos. Sobretudo nos últimos cinquenta anos.

Recomendo vivamente a leitura dos livros de Gilles Kepel, de Olivier Roy, e dos demais investigadores (e não apenas franceses) sobre tão premente problemática. Gostaria de ser optimista quanto ao futuro, mas não posso. Até porque, também eu, conheço alguma coisa da matéria.


sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

O QUE É A VERDADE?



Anis Amri

O que é a verdade? Angústia filosófica sem resposta objectiva. Nem Platão, nem Santo Agostinho, nem Nietzsche encontraram conveniente definição. Mas até as evidências mais elementares surgem hoje comprometidas.

O presumível autor do ataque ao mercado de Natal, junto à (semi-destruída) igreja-memorial do imperador Guilherme, em Berlim, foi presumivelmente morto esta madrugada em Milão.

Segundo as primeiras informações divulgadas, teria deixado um documento de identificação no camião que originou a tragédia. Já se tornou um hábito os terroristas colocarem a sua identidade nos veículos com que cometem os atentados, talvez para facilitarem o trabalho das polícias! Discutiu-se depois se esse documento seria autêntico, uma vez que o suposto teria usado nomes diversos. Finalmente, foi o condutor reconhecido pelas impressões digitais detectadas, ao que parece, na roupa do motorista polaco do camião, o qual terá assassinado para se apoderar do veículo. O homem em questão era, pois, Anis Amri, um tunisino de 23 anos, já anteriormente preso pela prática de vários delitos.

De acordo com as mais recentes notícias, Anis Amri terá sido abatido esta madrugada, em Milão, numa operação policial de rotina, quando se deslocava na Praça 1º de Maio, a pé ou de carro, existindo as duas versões. Recusando identificar-se, terá disparado sobre um dos agentes, sendo morto de seguida. Ignora-se se a polícia o teria podido neutralizar, a fim de obter os convenientes esclarecimentos. E estranha-se que, encontrando-se toda a Europa em alerta, tenha conseguido chegar tranquilamente a Milão.

Já há quatro dias, o assassino do embaixador russo na Turquia foi convenientemente abatido, quando não alvejara mais ninguém além do diplomata.

O facto dos presumíveis autores dos atentados serem mortos in loco antes de julgamento suscita graves apreensões. É que importaria ouvi-los para esclarecimento dos seus actos e, especialmente, de quem os ordenou, já que não se afigura que tenham sido espontâneos e de iniciativa própria. Que me recorde, apenas Salah Abdeslam se encontra detido numa prisão francesa, indiciado pela organização dos ataques em Paris.

As notícias confusas e contraditórias que surgem sistematicamente nestes casos levantam a questão de saber o que está realmente a passar-se em matéria de terrorismo. Impõe-se o conhecimento da verdade, pelo menos da verdade possível, não bastando as reais ou pretensas reivindicações do Daesh. Tanto mais que a informação sobre os acontecimentos em Alepo tem motivado, nos últimos dias, as maiores controvérsias na comunicação social.

A forma como todos estes acontecimentos são relatados provocam no público uma pertinente desconfiança quanto ao que na realidade se verifica, alimentando a dúvida de que uma parte da verdade é sonegada e originando as mais variadas especulações. Seria bom que as autoridades, nomeadamente o poder político se encarregasse de um módico de verossimilhança.


terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O ÁRABE DE "O ESTRANGEIRO"




Escrevi aqui um texto a propósito da publicação de Mersault, contre-enquête, o livro do jornalista argelino Kamel Daoud, publicado o ano passado, sobre o romance de Albert Camus, L'Étranger.

É suposto que todos se recordam da narrativa de Camus: durante a época colonial francesa, na sequência de uma rixa, Mersault mata um jovem árabe, numa praia dos arredores de Argel. Revisitando o livro de Camus, Kamel Daoud põe em cena o imaginário irmão do morto, tentando que Mersault reconheça o seu acto.

Mas nem Camus, nem Daoud alguma vez aludiram ao nome do rapaz árabe que fora morto na praia.

Porque Camus deveria ter-se inspirado em algum acontecimento para escrever a sua obra, a historiadora americana Alice Kaplan, professora da universidade Yale, decidiu proceder a uma investigação sobre o assunto, fruto da qual surgiu uma "biografia" não de Camus mas, género bastante raro, do livro, intitulada En quête de "L'Étranger".

Sabendo que Camus fora jornalista do "Alger républicain", onde tinha as suas fontes e cujas notícias muitas vezes o inspiravam, Alice Kaplan resolveu pesquisar na imprensa argelina. Assim, tendo estado há alguns anos em Oran, consultou nos arquivos do diário "L'Écho d'Oran" os números relativos à década de trinta do século passado (o romance de Camus é de 1942). E encontrou o que procurava, numa notícia de 31 de Julho de 1939,  cujo título lhe chamou a atenção: «À Bouisseville. Une rixe sur la plage».

Os protagonistas tinham sido Raoul Bensoussan e o seu agressor «Kaddour Betouil, âgé de 19 ans, demeurant à Aïn-el-Turck, chez ses parents». A história fora contada a Camus por Raoul e Edgar Bensoussan, judeus pied-noirs que eram  conhecidos do escritor.

Reconstituindo os factos: dois árabes caminham na praia, quando um deles provoca uma rixa e fere Raoul com uma navalha. Raoul vai tratar dos ferimentos a uma cabana e regressa com uma pistola no bolso. Há uma segunda rixa, mas Raoul não utiliza a arma. Finalmente chega a polícia e prende um dos árabes, conseguindo o outro fugir.

Finalmente, passados 74 anos, a vítima anónima de Mersault tem um nome: Kaddour Betouil, e sobreviveu ao encontro.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

PROSTITUIÇÃO E BENEFICÊNCIA


Pela sua singularidade, transcrevemos, com a devida vénia, o artigo publicado pela revista SÁBADO, no seu número do passado dia 16, recordando a frase atribuída a André Malraux: «Os heróis, como as putas, não são sempre».




"Esta senhora, Maria da Piedade Calado, caiu na prostituição por força das circunstâncias. Mas se não soube viver, soube morrer", diz Joaquim Nunes das Neves, antigo funcionário da Santa Casa da Misericórdia do Fundão, que guardou uma cópia do testamento da madame Calado, a dona da casa de passe mais exclusiva de Lisboa nos anos 50 e princípio de 60, frequentada por ministros e directores-gerais.

Nasceu às 3 da manhã de 25 de Novembro de 1894 na freguesia de Boidobra (Fundão), filha de um jornaleiro e de uma doméstica, e foi baptizada na véspera de Natal, tendo adoptado os nomes da madrinha, Piedade Calado, que não assinou o assento de baptismo por não saber escrever.

Fez depois fortuna como meretriz em Lisboa, até a prostituição ser ilegalizada por Salazar em 1963. A partir do dinheiro que acumulava com os negócios do sexo na sua "Pensão" Calado, num primeiro andar da Calçada do Carmo, 25, frente à estação do Rossio, acumulou capital suficiente, por exemplo, para emprestar 550 contos a um comerciante em 1943 (o equivalente a 272 mil euros a preços de hoje). Ele passou-lhe um cheque sem cobertura e ela pôs-lhe um processo, consultado pela SÁBADO na Torre do Tombo.

Analfabeta, mas rica

Mais impressionante ainda, em 1948 era proprietária da Quinta das Águas Livres, que vendeu por 1.800 contos (757 mil euros a preços actuais) a Manuel Santos Sobrinho. O caso deu origem a um novo processo, desta vez porque ela recusou pagar a comissão de 54 contos ao mediador que tratou da venda. Este pôs-lhe um processo a exigir a comissão, onde referia que Maria da Piedade Calado não sabia ler nem escrever, só assinar o nome. Apesar de analfabeta, tinha ainda um prédio na Calçada do Poço dos Mouros, na Penha de França, que arrendava a inquilinos – encarregava um procurador de cobrar as rendas por ela. E vivia num apartamento na Rua Castilho.

A 29 de Abril de 1951, quando tinha 55 anos, casou-se no Santuário de Fátima, com Fernando Filipe Pereira da Silva, do Seixal. Já não tiveram filhos. E separaram-se pouco depois.





No Fundão, Maria da Piedade Calado era proprietária da Casa do Bico, um palacete com um torreão, um elevador interior para a alimentação, um jardim de inverno no quarto e uma casa de banho toda em louça preta. "Tinha um gosto extraordinário e era de um arrojo tremendo, naquela época", recorda Carlos Couto, que viria a alugar o edifício para gerir a Estalagem da Neve. "Tinha um chauffer, que a conduzia num carro preto muito grande, enquanto ela acenava às pessoas. Na altura havia dez ou 15 carros no Fundão, mas o dela era o mais espampanante".

Massagens a meio da noite

Um jardineiro contratado pela Madame Calado no Fundão despediu-se ao fim de um mês. "É maluca. Acorda-me a meio da noite, pede-me massagens e anda nua pela casa", desabafou na altura a outros patrões da terra, conta uma ex-professora da Misericórdia. Outra residente no Fundão descreve-a como uma mulher "alta, loura, forte, de pele branca e rosadinha e que andava sempre bem apresentada, extravagante até".






Em redor da moradia principal, a madame Calado mandou fazer vários pequenos apartamentos que seriam alegadamente usados pelas prostitutas que trabalhavam para ela. Fernando Nogueira Gonçalves, autor do livro Ilustres e desconhecidos, meio século de memórias do Fundão, dedicou-lhe estas rimas: "A madame Calado, // que a Estalagem construiu // foi uma casa de meninas // algumas esbeltas e divinas // e onde muito rico se divertiu".

Mas ao mesmo tempo que explorava as raparigas, ia praticar caridade a 12 km do Fundão, na Boidobra, a terra onde nasceu e onde era proprietária da Quinta Branca. Um familiar afastado contou à SÁBADO: "Chamavam-lhe a rainha das putas, mas foi uma boa senhora para a malta. Tinha uma cozinha, onde mandava fazer sopa, e toda a gente, trabalhadores e crianças pobres da Boidobra, ia ali almoçar de graça".

Na adega desta sua quinta, mandou construir um cofre, enterrado na terra, e que foi descoberto depois da sua morte: estava cheio de jóias.

Viciada em jogo, generosa na missa

Tinha o vício do jogo – organizava jogos a dinheiro em casa – mas era generosa na missa: "No ofertório notava-se logo, dava uma nota", recorda outra familiar. A conversão total de Maria da Piedade Calado sobressaiu quando fez o testamento. "A dada altura no fim da vida arrependeu-se. Pensou que ia morrer e teve medo de ir para o Inferno. Já tinha feito mal a tantas raparigas levadas para a prostituição, passou a querer livrá-las da prostituição", conta uma ex-professora do Fundão.

Morreu às oito da noite de 9 de Junho de 1964, com um enfarte de miocárdio, no Hospital da Misericórdia do Fundão. Tinha 69 anos. No campo destinado à profissão no assento de óbito, a que a SÁBADO teve acesso, foi identificada como "doméstica".

"Peço perdão por todos os meus pecados"





Dias depois, foi aberto o testamento, escrito por José Hermano Saraiva, advogado com ligações ao Fundão e que viria a ser ministro da Educação com Salazar, embaixador no Brasil com Marcello Caetano, e apresentador de programas de História na RTP depois da revolução.

É um texto dactilografado em sete folhas, extraordinário pelo arrependimento e pelo destino dado à fortuna. Arranca assim: "Sou católica e na hora da minha morte o meu pensamento eleva-se para Deus, a quem peço perdão por todos os meus pecados. Àqueles que ofendi e também a todos aqueles a quem fiz mal ou deixei de fazer bem, peço que perdoem todas as minhas faltas (…) Desejo que todos os meus bens possam contribuir para minorar a pobreza e a dureza da vida das crianças pobres da minha região".

E assim destinou a Casa do Bico à Misericórdia do Fundão, para aí instalar a Casa-mãe de Nossa Senhora da Piedade, um lar para 20 raparigas, com idades entre os dez e os 20 anos, escolhidas entre as crianças mais pobres com maior vocação para o estudo – que assim poderiam evitar cair nas malhas da prostituição.

"Desejo que a casa-mãe não se transforme num asilo. Mas num verdadeiro lar, onde as raparigas possam encontrar o carinho, o respeito e a alegria a que todas as crianças têm direito, mas que infelizmente tantas nunca chegam a conhecer. Por isso não se usará farda, sendo ministrado ensino de costura de forma a que as alunas possam confeccionar o seu próprio vestuário segundo o seu gosto." A casa-mãe ofereceria ainda o vestido de noiva às educandas, uma por ano. Deixou à instituição mais 1.200 contos (416 mil euros a preços actuais) resultantes da venda do prédio em Lisboa, na Calçada do Poço dos Mouros.

Testamento por cumprir

Havia um prazo de dois anos para a casa começar a funcionar, após o que o legado ficaria sem efeito. Nunca chegou a ser instalada, sob o pretexto de que já havia outras instituições para acolher raparigas nos arredores. O bispo da Guarda ainda terá chamado a atenção para o facto de o testamento não estar a ser cumprido. Mas o testamenteiro, José Hermano Saraiva, terá dado o seu acordo para que a herança fosse usada pela Misericórdia do Fundão para outros fins.





Contudo, o testamento da Madame Calado não terminava ali. Deu instruções para que fossem entregues "uma esmola de cem escudos em dinheiro [34 euros] e um cobertor bem quente a todos os pobres da freguesia da Boidobra", escolhidos pelo padre da freguesia. Este receberia ainda 20 contos (6941 euros), para rezar dois trintanários gregorianos de santas missas pela alma da madame Calado, mais uma missa perpétua no aniversário da sua morte e ainda para lançar sobre a sua campa, em cada dia de finados, flores brancas. 250 contos (86.750 euros a preços actuais) seriam para a Igreja da sua terra, a Boidobra. E outros 250 contos seriam entregues ao Ministério da Educação, para construir uma cantina escolar na aldeia.

Por fim, nomeava testamenteiros José Hermano Saraiva, o padre Alfredo Ferraz, do Fundão, e António Paulouro, director do Jornal do Fundão: "Confio em que todos os três, que toda a sua vida têm amado os humildes e os infelizes, me ajudem depois da minha morte a realizar esta obra, que em vida não pude realizar".

Joaquim Nunes das Neves, o ex-funcionário da Misericórdia que guardou este testamento e o facultou à SÁBADO, despediu-se assim no fim da conversa: "Se no seu texto puder dar a entender que ela foi mais do que uma puta, já valeu a pena." Foi. E valeu.

[texto actualizado às 12h28 de 19.12.2016 com informações provenientes do assento de baptismo, transcritas por Maria da Luz Moreira]


P.S.: Não permitiu o tempo dimensionar convenientemente as fotos, que aqui aparecem cortadas.

A GRANDE ANGÚSTIA DEMOCRÁTICA




O historiador francês Pierre Rosanvallon, professor do Collège de France, concedeu a "L'Obs" (nº 2717 - 1 a 7 de Dezembro 2016), uma importante entrevista, onde disserta sobre o "populismo" que vai alastrando nas sociedades ocidentais.

Na impossibilidade de uma ligação online, procedemos à digitalização das páginas, que poderão ser aumentadas cliquando sobre elas.




domingo, 18 de dezembro de 2016

O ESTADO DE EXCEPÇÃO




Marcelo Rebelo de Sousa deslocou-se ontem ao Teatro da Cornucópia para assistir ao último espectáculo da companhia, cujo encerramento definitivo fora anunciado pelo seu director, Luís Miguel Cintra (LMC).

Não constituiu surpresa a decisão agora oficialmente comunicada, já que desde há muito tempo LMC se vem queixando da impossibilidade de prosseguir a actividade da companhia com o apoio progressivamente reduzido do Ministério da Cultura.

É um facto que a Cornucópia foi, durante quatro décadas, uma das companhias de teatro que maiores subsídios recebeu do Estado e creio, mas não disponho de dados actualizados, que continua a receber  verbas superiores aos restantes teatros "independentes".

A presença do presidente da República na última sessão da Cornucópia (se deveras o foi) determinou a deslocação ao local do ministro da Cultura, tendo-se travado, em cena aberta, um diálogo (entre presidente, ministro e director) sobre as hipóteses de revisão do apoio estatal, já que aquela companhia é, na opinião dos intervenientes, um caso ímpar na vida teatral portuguesa.

O presidente recordou que a Cornucópia constitui "uma excepção, um caso diferente dos outros". O ministro referiu a história extraordinária da companhia, que configura "uma situação especial". LMC afirmou que não está fazer "chantagem de espécie nenhuma" mas que nas presentes condições a companhia não pode manter-se. Luís Castro Mendes anunciou que as conversações prosseguem para se conseguir encontrar uma solução que evite a extinção de um grupo de teatro com tão grande "peso institucional" e "cultural".

A aparição inesperada do presidente da República no palco da Cornucópia não pode considerar-se surpreendente. Desde há um ano que Marcelo surge intempestivamente nos mais variados palcos, faltando-lhe um palco por excelência, o palco de um teatro. Numa visita em que foi rapidamente coadjuvado pelo ministro da Cultura.

Não me parece que o lugar seja o mais apropriado para discutir verbas de subsídios, que são concedidos segundo critérios previamente estabelecidos. Debater em cena aberta a questão dos apoios à criação artística, numa casa em que os anfitriões são os próprios interessados, afigurar-se-me um comportamento precipitado e perigoso, um precedente cujas consequências não deixarão de se manifestar.

Não está obviamente em causa a importância do Teatro da Cornucópia, que ao longo de quarenta anos apresentou muitos espectáculos notáveis, e alguns também maçadores, mas sempre com grande rigor literário e artístico. O que subjaz é a ideia peregrina de Marcelo da criação de um estatuto de excepção para a Cornucópia, ideia aliás contornada pelo próprio ministro da Cultura.

O apoio ao teatro tem sido reduzido nos últimos anos e todas as companhias têm sofrido as consequências. Aliás, a redução dos apoios deve-se à redução dos rendimentos da maior parte dos portugueses no passado recente. A crise a quase todos atingiu e a Cultura é normalmente o parente pobre das pastas ministeriais. Certamente, um povo não sobrevive sem cultura mas também não sobrevive sem pão. A atribuição de um estado de excepção à Cornucópia é uma circunstância que poderá vir a ser reclamada por outras companhias de teatro, que se arroguem o direito de antiguidade e de importância semelhantes. E havendo já tantas divisões no meio teatral, será desnecessário e inconveniente acrescentar-lhe mais uma.

Considero, por isso, que o estatuto de "excepcionalidade" é improcedente e espanta-me que Marcelo Rebelo de Sousa, não tanto como presidente da República mas como jurista e professor de Direito, nisso não tenha previamente pensado. Porque nessa linha haverá quem venha mais tarde argumentar a favor da implantação de qualquer um estado de emergência ou estado de sítio.

Porque, das duas uma: ou a Cornucópia exige mais do que lhe é possível atribuir face aos projectos que apresentou, e então ou se conforma ou fecha portas; ou a Cornucópia tem realmente direito, face aos seus projectos, a apoios substancialmente mais elevados, e então há que rever as normas de atribuição de subsídios e corrigir as decisões erradas.

A hiperactividade frenética de Marcelo Rebelo de Sousa, que é um homem indubitavelmente inteligente, não lhe permite, por vezes, ponderar, com a serenidade que a função presidencial reclama, as consequências imprevisíveis das suas atitudes. Neste e noutros casos, é recomendável uma maior contenção por parte do chefe do Estado.


sábado, 17 de dezembro de 2016

HALFAOUINE



Estando a arrumar livros e papéis, encontrei um exemplar de "L'Avant-scène-Cinéma", de Junho de 1999, dedicado ao filme Halfaouine, l'enfant des terrasses, (no original árabe عصفور السطح 'Asfur Stah, traduzido à letra, "O pássaro dos telhados"), do realizador tunisino Férid Boughedir. A película é de 1990 e comprei, em data que não recordo, a edição em vídeocassete, numa altura em que ainda não existiam dvd's.



A acção do filme desenrola-se no bairro de Halfaouine, uma das zonas mais características de Tunis, e debruça-se sobre o despertar da sexualidade de um rapazinho no limiar da adolescência e da sua curiosidade pelos corpos das mulheres frequentadoras do hammam feminino local, onde a sua tenra idade ainda lhe permitia entrar com a mãe, até ser definitivamente excluído por ter abusado da sua indiscrição. Em fundo, Férid Boughedir preocupa-se em demonstrar as relações entre homens e mulheres no país, ainda marcadas pelos interditos religiosos ou, mais propriamente, culturais, apesar da Tunísia ser, então (1990), uma das nações árabes mais avançadas em matéria de costumes. Situação que progrediu nos vinte anos seguintes, como tive oportunidade de comprovar nas muitas deslocações que efectuei a tão acolhedora terra. Receio, porém, que após a revolução de 2011 se tenha verificado uma considerável regressão nesta matéria. Aliás, durante os anos 80 e 90 o cinema tunisino produziu filmes de grande abertura, como os do realizador Nouri Bouzid (L'homme de cendres e Bezness), tratando de sexualidades alternativas.


Ao longo da película, além do protagonista Noura, interpretado pelo jovem Selim Boughedir, filho do realizador, perpassam várias personagens, das quais convém distinguir a do sapateiro Salih, desempenhado pelo meu amigo, grande actor e encenador, Mohamed Driss, que foi director do Théatre National Tunisien entre 1988 e 2012.

Mohamed Driss, em Salih (ao centro)
Selim Boughedir, em Noura
Cena no hammam

Curiosamente, ou não, o Teatro Nacional (não confundir com o belo edifício do Teatro Municipal, da avenida Bourguiba) funciona hoje no Palácio Khaznadar, na praça de Halfaouine, perto de Bab Souika, uma das portas da cidade antiga. Este imóvel, construído no século XIX e que teve diversos usos, era já a sede social (desde 1988) do Teatro Nacional, mas, não se encontrando ainda convenientemente adaptado, os espectáculos eram apresentados na Salle du 4ème Art, na avenida de Paris, que tantas vezes frequentei.

Palácio Khaznadar

Importa referir que as cenas relativas ao hammam feminino foram filmadas no próprio local e as mulheres que aparecem com os corpos parcialmente descobertos eram frequentadoras habituais do mesmo, não hesitando em figurar na película com a naturalidade do quotidiano. Não se tratou, portanto, de contratar figurantes, ou, como alguém chegou a interrogar-se, prostitutas para esse fim. Permito-me duvidar, dada a vaga "moralizante" que alastra pelo mundo muçulmano, se tal procedimento seria hoje possível.

Café da Praça de Halfaouine (Abril de 2000)

A rua de Halfaouine, que vai de Bab Souika à praça de Halfaouine é um dos mais interessantes mercados de rua e de cafés populares de Tunis. Uma área privilegiada de comércio e convívio, e também de proveitosos encontros fortuitos.

Abdelwahab no Café do Suq de Halfaouine (Dezembro de 1996)

Anis no Café do Suq de Halfaouine (Dezembro de 1996)

Recomendo aos meus leitores que tentem procurar o filme (encontra-se hoje já disponível em dvd) e que, se forem a Tunis, não falhem a visita ao suq de Halfaouine.


terça-feira, 13 de dezembro de 2016

ALEPPO



Entrada da Cidadela

A Questão do Oriente é velha de dois séculos. Isto para não recuarmos às Cruzadas.

Mas a situação agravou-se nos últimos cem anos com a queda do Império Otomano, no fim da Primeira Guerra Mundial, e subsequentes Acordos Sykes/Picot, Declaração Balfour e estabelecimento dos territórios de mandato francês e inglês. A criação do Estado de Israel, em 1948, tornou explosiva uma conjuntura já de si precária. No último meio século, o chamado conflito israelo/palestiniano foi um permanente foco de instabilidade regional.

Portão da Cidadela

Como se tanta cobiça e tantas asneiras não fossem suficientes para reconduzir à razão um Ocidente alucinado, George W. Bush, invocando despudoradamente mentiras comprovadas, decidiu, com o apoio de Tony Blair e de outros comparsas menores, invadir o Iraque. Esta acção militar, entre mortos, feridos, desalojados, enlouquecidos, estropiados, saldou-se por milhões de vítimas. Mas Bush e Blair continuam em liberdade, não tendo sido processados, nem julgados, nem condenados por qualquer instância internacional. Uma confirmação de que o crime compensa.

Grande Mesquita

Seguiram-se as "primaveras árabes", apoiadas pelo Ocidente, com consequências de todos conhecidas, em que a destruição do regime líbio transformou o país no caos em que se encontra. Na Síria, Bashar Al-Assad resistiu e mantém-se no poder. Entretanto, surgiu do "nada" o "Estado Islâmico", também conhecido por ISIS ou Daesh, com a pretensão de restaurar o califado. E rapidamente, apoiado financeira e militarmente pelos Estados Unidos, pela Arábia Saudita e pelo Qatar, entre outros, implantou-se num território maior do que Portugal.

Museu Nacional

A contestação ao regime autoritário de Assad por uma oposição classificada pelos media como moderada foi amplamente divulgada no Ocidente. Não se disse que essa oposição se conluiou com a Frente de Apoio ao Povo da Síria (Jabhat al-Nusra li-Ahl al-Sham), com o Daesh, Ahrar al-Sham e com outros grupos menores, na tentativa de derrubar o regime, contando com a cooperação da dita Arábia Saudita, do Qatar, da Turquia e de alguns países ocidentais (EUA, Reino Unido, França) e ainda de Israel. O regime sírio obteve então o apoio do Irão, da Rússia e do Hizbollah.

Suq Bab Antakyah

A guerra que devasta o país desde há cinco anos, com o seu cortejo de centenas de milhares de vítimas e actos ominosos de ambos os lados, está a ter o seu epílogo na cidade de Aleppo, existente desde o século XIX A.C. e uma das belíssimas metrópoles do Oriente, hoje parcialmente destruída. As carpideiras da comunicação social oficial têm tecido nos últimos dias as mais violentas críticas ao exército sírio e às forças russas, acusando-os de crimes contra a humanidade. Não que não se tenham certamente cometido atrocidades, porque, infelizmente, guerra é guerra. Mas pretendiam estas euménides da desinformação que os rebeldes djihadistas permanecessem na parte da cidade que haviam conquistado, mantendo em cativeiro a sua população, que lhes servia de escudo contra a ofensiva militar. Para memória futura, deve reter-se este facto como um exemplo da hipocrisia (des)informativa em todo o seu esplendor.

Restaurante Bait al-Wakil

O regime de Bashar Al-Assad tinha (e tem, porque permanece) muitos defeitos, mas gozava-se no país de uma liberdade infinitamente superior à que existe, por exemplo, na Arábia Saudita, essa terra incensada pelo mundo ocidental e que, na ONU, faz parte do Conselho de Direitos Humanos! O regime sírio garante a liberdade religiosa a todas as confissões e é liberal em matéria de costumes. Não será democrático, no sentido ocidental do termo, mas é muito mais democrático do que os regimes que os EUA e a União Europeia apoiam por esse mundo além.

Catedral Maronita

Não querendo alongar-me, acrescentarei que a invasão do Iraque, o apoio às sublevações em Marrocos (infrutífera), na Tunísia, na Líbia, no Egipto, na Síria, no Iraque, foram o despoletar do terrorismo de que agora se queixa o Ocidente. E a luta contra o terrorismo, como afirmou o papa Francisco, e ainda ontem reiterou a Bashar Al-Assad pela voz do núncio apostólico em Damasco, o cardeal (sim, cardeal) Mario Zenari, é um imperativo civilizacional.

Catedral Católica

Esperemos que vencida esta etapa, e prosseguindo na luta contra os extremismos, se possa restaurar a paz na Síria, retomar a convivência e restaurar a coexistência cultural e religiosa. Tarefa indubitavelmente difícil, dadas as circunstâncias, mas todos os esforços são indispensáveis à reconciliação nacional. Os interesses das potências são contraditórios, os jogos de poder múltiplos, as pretensões ainda mal definidas neste xadrez internacional. Há que percorrer o caminho das pedras. Que ele possa ser feito com o mínimo de perdas.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

O FIM DO JORNALISMO NO MUNDO LIVRE




Tomei conhecimento, pelo editorial de  Jean Daniel no nº 2714 de "l'Obs" (10/11/2016), da edição de  Le monde libre, de Aude Lancelin, ex-subdirectora desta revista, livro galardoado com o Prémio Renaudot-Ensaio 2016, recentemente atribuído, e que me havia passado despercebido, tal o descrédito que merecem hoje os prémios literários.

Não posso deixar de estar grato a Jean Daniel pelo texto em que pretende desagravar-se do tremendo libelo acusatório de que ele e "l'Obs" são alvo, e de uma maneira geral a "Esquerda" política e intelectual francesa. Não fora esta prosa do quase eterno director e fundador da revista, e provavelmente não teria lido o livro, tal o silêncio que se fez "ouvir" na imprensa francesa após a sua publicação.


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Aude Lancelin (n. 1973) trabalhou duas vezes em "l'Obs", a primeira de 2000 a 2011, cobrindo especialmente a área cultural, e a segunda a partir de 2014, quando foi convidada a regressar como subdirectora, até ter sido despedida nos princípios de 2016. No intervalo, foi directora-adjunta da revista "Marianne".

O livro Le monde libre é um ajuste de contas pessoal e político com o establishment jornalístico francês e o seu vergonhoso comportamento e também com a entourage do Partido Socialista, de que "l'Obs", durante décadas, foi de alguma forma o porta-voz oficial e oficioso e cuja leitura atenta e reverente era indispensável ao povo de Esquerda.

Neste livro, Aude Lancelin confia-nos as suas memórias da coabitação tempestuosa com a versão desta Esquerda "moderna", cada vez mais à Direita, veiculada pela revista, sob a égide do seu fundador, director durante décadas, e hoje editorialista, Jean Daniel, que com 90 anos é ainda a figura tutelar de "l'Obs", influenciando a sua orientação conforme as conveniências do "meio" socialista, e transformando a publicação, ano após ano, numa imagem pálida e distorcida da vocação original, de acordo com a viragem neo-liberal que vem assombrando o mundo.

Ao publicar o seu libelo, a autora altera os nomes das figuras convocadas, mas um elementar conhecimento da vida política e cultural francesa permite descodificar facilmente a identidade dos visados.

Comecemos pelo passado recente. Le Monde libre é uma sociedade que detém 64% do capital do grupo de imprensa francês Le Monde. A sociedade é propriedade do trio BNP (Pierre Bergé, Xavier Niel e Matthieu Pigasse) e do grupo espanhol Prisa (15%). Em 2014, devido a perdas substanciais, "L'Obs" é adquirido a 65% pelo trio, o que significou o afastamento parcial de um dos fundadores e principal accionista Claude Perdriel.

Vejamos como Aude Lancelin define os três accionistas da revista:

- Pierre Bergé: «L'un devait sa fortune colossale à la haute couture, une des dernières sphères où l'astre français n'avait pas encore pâli, et ne se distinguait plus guère publiquement que par le mécénat de prix littéraires ou par quelques saillies amères sur tel journaliste du groupe qui l'avait indisposé pour des raisons le plus souvent obscures ou anecdotiques...Ses nombreuses relations avec des hommes de pouvoir, l'amitié qui l'avait autrefois uni au président Mitterrand, la respectabilité de gauche qui entourait encore son nom, avaient néanmoins été formidablements utiles à son associé, l'ogre des télécoms, qui, sans cette "savonnette à vilain" n'aurait sans doute jamais pu accéder à la propriété du "Monde".» (p. 17) - Pierre Bergé (86 anos) chegou a Paris aos 18 anos, começou a negociar em livros antigos e conheceu aos 20 anos o célebre pintor Bernard Buffet de quem se tornou amante e colaborador durante oito anos [Encontra-se neste momento, no Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris uma retrospectiva de Bernard Buffet, aberta até 26 de Fevereiro próximo]. Em 1958, estabelece uma relação com Yves Saint-Laurent com quem passa a viver até ao fim da vida deste e com quem cria a famosa casa de alta costura e outros produtos da moda. Entre os muitos lugares que ocupou, foi presidente da Ópera Nacional de Paris de 1988 a 1994, sendo hoje seu presidente de honra. Militante da causa homossexual, fundou a revista gay "Têtu". A fortuna de Pierre Bergé está avaliada em 180 milhões de euros.

Xavier Niel - «Un personnage venu de l'univers des télécommunications et des centres d'appels, ces nouveaux bagnes où des esclaves d'un nouveau type trimaient pour offrir des services low-cost à d'à peine plus fortunés qu'eux. À l'animosité ancienne de mes ennemis, l'ogre de la connexion Internet bradée offrit un débouché simple et sans appel, qui les laissa eux-mêmes sidérés par sa brutalité inespérée, dans un monde de la presse où, il y a peu encore, un moelleux paternalisme réglait les rares conflits sociaux qui pointaient... À ce personnage tentaculaire, dont le passé était notoirement trouble, la presse dite de "progrès" s'était gracieusement vendue en quelques années à peine pour un plat de lentilles et quelques bouchées de pain» (p. 15) - Xavier Niel (49 anos) começou a estudar o potencial do Minitel quando ainda estava no liceu. Criou depois os serviços de Minitel rose e investiu mais tarde nas peep shows e nas sex-shops. Funda depois uma empresa de serviços pornográficos por Minitel, tornando-se milionário aos 24 anos. A seguir, cria a empresa Iliad e adquire sucessivamente a maior parte dos negócios de telecomunicações e de internet em França. Em 2004 esteve preso durante um mês por proxenetismo agravado, mas o processo foi arquivado pelo juiz Renaud Van Ruymbeke. Em 2006 foi condenado a dois anos de prisão com pena suspensa por uso indevido de bens sociais. Divorciado, vive com Delphine Arnault, também divorciada, filha do magnate Bernard Arnault, proprietário de LVMH (Louis Vuitton/Moët Hennessy) e segunda fortuna de França. A fortuna de Xavier Niel está avaliada em 9 mil milhões de euros.

- Matthieu Pigasse: «L'autre était un banquier d'affaires à l'intelligence très vive. Étrange et fort jalousé, à l'évidence travaillé par des forces violemment antagonistes, il aimait diviser sur un monde en plein effondrement, citer des poètes, s'enflammer pour des samizdats révolutionnaires. Avec la même enérgie, il s'enthousiasmait pour des caudillos de la gauche radicale ou des groupes culte du rock, et passait néanmoins sa vie à se couler amoureusement dans les circuits d'argent, entre les tableaux de chasse vieillots des salles à manger de Lazard Frères, et la tour du siège new-yorkais de sa banque, d'où il dominait tristement Central Park.» (p. 17) -Matthieu Pigasse (48 anos) diplomado por Sciences Po e pela ENA, começou a sua carreira na política e na banca. É responsável pelas fusões/aquisições do Banco Lazard e director-geral delegado de Lazard em França. Passou por vários gabinetes ministeriais socialistas e é proprietário ou participante de numerosas empresas de jornais, de rádio e de televisão. É íntimo de toda a actual nomenclatura do Partido Socialista e organizou em 2011, com Pierre Bergé, o célebre concerto de homenagem a François Mitterrand na Praça da Bastilha, que contou com 70.000 pessoas. A  fortuna de Matthieu Pigasse é estimada em várias dezenas de milhões de euros.

Dos três elementos do Trio, o mais citado pela autora ao longo da obra é Xavier Niel, sempre designado como o Ogre. As outras personagens citadas à clé são Jean Daniel (Jean Joël), Claude Perdriel (Claude Rossignel), Laurent Joffrin (Laurent Môquet), Matthieu Croissandeau (Matthieu Lunedeau) e a própria revista "l'Obs", referida como "l'Obsolète". Marine Le Pen é referida como La Fille du Diable.

Tracemos rapidamente a história de "l'Obs", que não figura no livro de Aude Lancelin. Em 1950, foi criado um semanário com o título "L'Observateur politique, économique et littéraire", por Gilles Martinet, Roger Stéphane, Claude Bourdet e Hector de Galard, com a colaboração de Jean-Paul Sartre. A revista passou a chamar-se "l'Observateur aujourd'hui", em 1953 e "France Observateur", em 1954, com uma tiragem de mais de 100.000 exemplares. Nos princípios da década de 60, sofre prejuízos e vem a ser maioritariamente adquirida, em 1964, pelo riquíssimo industrial de louça sanitária e apaixonado pela imprensa, Claude Perdriel e pelo jornalista e escritor Jean Daniel, passando a designar-se "le Nouvel Observateur". A sua definição de publicação de esquerda não comunista fica oficialmente consagrada nos estatutos.

Na década de 70, a revista atinge a tiragem de 400.000 exemplares e torna-se a publicação francesa, com projecção internacional, de referência cultural e política da esquerda social-democrata. Com a eleição de François Mitterrand em 1981, a revista aproxima-se mais do Partido Socialista francês, orientação que perdurará até aos nossos dias. Essa proximidade determinará um decréscimo das vendas (a revista era lida por toda a elite francesa) e, em 1984, devido a dificuldades financeiras, Claude Perdriel aumenta a sua participação de capital e torna-se o accionista maioritário. Verifica-se então a primeira mudança do estilo da revista, o que não significou necessariamente uma transformação para pior.

Em 1995, le "Nouvel Observateur" torna-se a primeira revista de actualidade francesa, ficando à frente de "L'Express", que eu também comprava e continuei ainda a comprar durante mais uns anos.

Em 2008, Jean Daniel que assegurara a direcção da revista desde a sua aquisição em 1964, é substituído nessas funções por Denis Olivennes, sendo este substituído em 2011 por Laurent Joffrin, entre as suas idas e vindas entre "le Nouvel" e "Libération". Entretanto, com a prossecução de um desejo de modernidade, a revista vai perdendo as suas características e também os seus leitores, que não percebem a miopia intelectual das direcções e redacções que se sucedem.

Em fins de 2013, a seguir a um prejuízo de cerca de 10 milhões de euros, "le Nouvel Observateur" procura um comprador. Em 2014, o Trio, já proprietário de "Le Monde", adquire 65% do "Nouvel" por 13,4 milhões de euros. Em desacordo com os novos accionistas, Laurent Joffrin demite-se, sendo substituído na direcção por Matthieu Croissandeau. Em Outubro de 2014, "le Nouvel Observateur" passa a chamar-se "l'Obs", uma mudança de nome que se afigura de perfeita estupidez, como as progressivas e subsequentes transformações operadas pelo novo director, que tornam a revista quase ilegível. Como é óbvio, as vendas não param de diminuir.

Em Setembro de 2016, face a prejuízos de três milhões de euros, e com as vendas em queda livre, especialmente depois do despedimento de Aude Lancelin, no princípio deste ano, a direcção apresentou um plano de reestruturação, que passa pela redução de 40 jornalistas em 180.

Ao longo de meio século li esta revista com interesse. Ela correspondia àquilo que sobre cultura e política me interessava em França e no Mundo. E até hoje, que me recorde, só não li dois números que, por razões de greve em França, não foram distribuídos em Portugal. Mas as transformações operadas nos últimos anos mais não têm feito do que descaracterizá-la. Certamente na perspectiva de manter os leitores habituais e conquistar novos para substituir os que por uma razão ou outra se foram afastando. Todavia, esta tentativa de conquistar um público supostamente diferente tem sido prosseguida da forma mais estúpida que é possível conceber. E pelos resultados das vendas se pode avaliar que não só não tem obtido leitores de perfil distinto como tem alienado a pouco e pouco os seus fiéis leitores.

A verdade é que "l'Obs" é hoje um verdadeiro albergue espanhol que tudo acolhe. Depois dos domínios tradicionais da política e da cultura acolheu a economia, a seguir a moda. E na ânsia de servir a todos os senhores inclui já (para além da compreensível -mas alguma despropositada - publicidade), o imobiliário, os desportos, a hotelaria, os champagnes e vinhos, a gastronomia, e por aí fora. Endoideceram de vez!

Feito o historial, a traços muito largos, de "l'Obs", regressemos ao livro Le monde libre.

Esta inconsequente e progressiva modificação do perfil da revista é uma das críticas de Aude Lancelin no seu livro. Mas também a sua descaracterização ideológica. Sendo uma publicação de orientação social-democrata, a sua aproximação do Partido Socialista, considerando a viragem "neo-liberal" do Partido verificada desde Mitterrand, provocou também a complacência de "l'Obs" com as ideias e a prática da nova liderança "socialista", especialmente a partir da eleição do inenarrável François Hollande para a presidência da República. Essa transigência, Aude Lancelin não a perdoa, especialmente a Jean Daniel, que, assumindo-se sempre como o detentor dos princípios do projecto fundador, tem sacrificado esses valores (por convicção ou condescendência) no altar dos interesses do novo capitalismo especulativo global.

Mas, evidentemente, não é apenas a pessoa de Jean Daniel que é visada no livro. Apesar de "l'Obs" registar tão só um editorial com o seu protesto, que reproduzimos, e nenhuma reacção dos demais atingidos pela pena de Lancelin.

Um dos alvos principais é Bernard-Henri Lévy, personagem sinistra que se instalou, graças ao dinheiro e a cumplicidades várias, no panorama cultural francês, desde o "tempo de glória" dos Nouveaux Philosophes [Dans ce cloaque de la pensée appelé "nouvelle philosophie", il y avait toutefois autre chose encore que la maestria mafieuse à nulle autre pareille de ce personage pour aimanter les maîtres de "l'Obsolète" (p. 54)]. Lévy é uma figura abjecta e as suas intervenções na política, quando sai do seu sumptuoso riyadh de Marrakech, são uma tragédia para os povos. Foi assim na ex-Jugoslávia. E mais recentemente na Líbia, numa ânsia patológica de protagonismo. Foi ele que convenceu Hollande (e este convenceu os seus pares) a proceder à invasão da Líbia, originando a situação caótica em que hoje se encontra aquele país. Mesmo o escritor Pierre Assouline, também judeu como Lévy mas indignado com as suas posições, não hesitou em chamar-lhe "Lévy d'Arabie", em alusão ao célebre "Lawrence d'Arabie", o promotor da revolta árabe de 1916. E Lancelin chama-lhe, a propósito do seu livro sobre o assassinato do jornalista Daniel Pearl no Paquistão, o "Malraux d'Islamabad" (p. 126).

No decorrer de 200 páginas, Aude Lancelin escalpeliza as transigências da revista e a reverência face a personalidades eticamente discutíveis como Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut ou Pierre Nora e François Furet, comentários amplamente documentados pelos factos registados. Aliás, para um público razoavelmente informado essas denúncias não constituem propriamente novidade.

As razões que determinaram a queda em desgraça de Lancelin foram as suas entrevistas a personalidades menos do gosto do pensamento único de "l'Obs", pessoas de esquerda que não sacrificavam no ideário da presente "nova esquerda" francesa. Destaca-se a conversa com o filósofo Alain Badiou, contra o qual Phillippe Sollers publicara um libelo assassino, recheado de acusações extremamente graves. Pelas razões aduzidas, Badiou tornara-se o inimigo público número um. «Seuls les jeunes gens sont généralement sensibles sans restrictions à ses sortilèges intelectuels, un phénomène bien identifié depuis le IVe siècle avant J.-C., lorsque la démocratie athénienne, plus énergique que la nôtre, se crut dans l'obligation de condamner à mort un fameux corrupteur de la jeunesse.» (p. 69)

Também o inenarrável Manuel Valls, ex-primeiro-ministro e agora candidato presidencial, expoente um pouco ridículo do socialismo neo-liberal em França, é devidamente tratado no livro.

Não é possível referir aqui a maior parte das interessantíssimas revelações de Aude Lancelin, que os leitores do livro poderão apreciar. É a história das cumplicidades dos últimos anos que nos é revelada com abundância de pormenores. Em particular a tentativa da autora de fazer ouvir as vozes discordantes do pensamento dominante de "l'Obs", que acabou por determinar o seu despedimento. Além da circunstância de o seu companheiro, Frédéric Lordon, ser um dos animadores do movimento "La Nuit Debout", que ocupou durante semanas a Praça da República e assustou o governo francês. E do facto da cobertura dessa manifestação ter irritado os proprietários do jornal.

Resumindo, poderíamos dizer que a apropriação pelo grande capital das sociedades detentoras de jornais, com o objectivo de silenciá-los quando incómodos ou transformá-lo num instrumento destinado a veicular as opiniões que sirvam os seus interesses, representa o fim da liberdade de imprensa em França. E é lamentável constatar que muitos jornalistas se têm prestado a colaborar com os ogres da alta finança e a avalizar as suas pretensões, se não mesmo a incentivá-los na prossecução deste projecto destinado a colocar a informação ao serviço dos mais inconfessáveis desígnios.

Curiosa a reflexão de Aude Lancelin sobre a sua decisão de tornar-se jornalista: «La plupart des écrivains que je révérais portaient pourtant un regard terrible sur le journalisme, activité louche, à laquelle la prostitution ou l'usure semblaient de loin preéférables. "Encore un siècle de journalisme et la langue elle-même puera", écrivait Nietzsche, sans parler de Debord, pour qui les journalistes étaient ni plus ni moins que les intouchables de notre temps.» (p. 38)

Em 25 de Maio de 2016, mais de quarenta intelectuais publicaram em "Libération" uma carta aberta de protesto contra o despedimento de Aude Lancelin.


quarta-feira, 30 de novembro de 2016

ANTÓNIO FERRO, UMA VEZ MAIS




Acabou de ser publicado um novo livro sobre António Ferro: António Ferro - Um Homem por Amar, da autoria de Rita Ferro, sua neta, e classificado como romance.

Não é ainda (e também não era essa a intenção da autora) a grande obra sobre António Ferro, que se aguarda, mas é um livro que reúne impressões pessoais de alguém que, não o tendo conhecido (nasceu já depois da sua morte), pode todavia testemunhar preferencialmente, devido aos laços familiares, acerca da figura incontornável daquele que foi avant la lettre o primeiro ministro da Cultura em Portugal. E fá-lo com objectividade, apesar da proximidade genealógica, num registo íntimo, real e ficcionado, colocando parte da narrativa na boca do protagonista. A recriação por Rita Ferro de aspectos da vida de António Ferro, a partir das palavras do próprio, é um exercício arriscado mas resulta plenamente.

Ao longo de 300 páginas (o livro contém mais de 500, mas inclui, em apêndice, dezenas de cartas, muitas inéditas, de e para António Ferro [algumas para Salazar], uma cronologia do "biografado", uma bibliografia e uma antologia de citações), Rita Ferro traça a carreira do avô, desde a infância, o tempo do "Orpheu", a convivência com figuras da época, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, até à actividade como secretário da Propaganda Nacional e o "exílio" diplomático como ministro plenipotenciário em Berna e em Roma.

Não se trata, todavia, de uma biografia oficial, longe disso. Mas da reinvenção de um percurso singular anacronicamente evocado (como refere a autora), traduzindo a ideia que Rita Ferro concebeu do avô, baseada não só nos testemunhos documentais mas nos testemunhos orais de quem com ele privou, e especialmente nas informações recolhidas "no seio da família". O que permite, também , certos "ajustes de contas".

Sabíamos já muitas coisas a respeito de António Ferro, mas este livro, qual "janela indiscreta", lança um olhar sobre aspectos até aqui ignorados, ou silenciados, da sua vida. E ninguém melhor para o fazer do que Rita Ferro, além de neta, escritora, e senhora de grande perspicácia. Muito interessante a forma como é referida a relação entre Ferro e sua mulher Fernanda de Castro: grande cumplicidade mas vivências diferentes, a ponto de habitarem aposentos distintos na mesma casa da Calçada dos Caetanos. Também de assinalar a referência às visitas da casa, pessoas que não obedeciam, quer no plano político, quer no dos costumes, à norma vigente na época e que causavam certa estranheza a Salazar.

As relações de Ferro com as gentes do "Orpheu" são tratadas com algum desenvolvimento, nomeadamente quando Rita Ferro alude a que a actividade literária do avô pode ter sido ensombrada pelas figuras tutelares que se agigantavam à sua volta (p. 119), em especial Fernando Pessoa, com quem esfriaria provisoriamente relações, depois do que este escrevera sobre o pretenso atentado contra Afonso Costa. Também o Manifesto que Almada Negreiros publicara contra Júlio Dantas provoca descontentamento em Ferro. Júlio Dantas, mestre da língua portuguesa, fora objecto de um ataque violento, ainda por cima com erros de ortografia, por parte de Almada, embora este pretextasse que apenas pretendia atingir o establishment literário. Tratou-se de uma atitude irreverente, própria de um Almada que toda a vida cultivou o exibicionismo e a oscilação de convicções ideológicas, e cujo objectivo era não só atingir a Academia, que Dantas exemplarmente representava, mas obter para si mesmo uma centelha de notoriedade. É curioso que os intelectuais que mais se encarniçam contra as academias são aqueles que estão sempre à espera de uma primeira oportunidade para nelas ingressarem. Estas atitudes de Pessoa e Almada levaram Ferro (segundo a neta), a afastar-se da revista, que entretanto acabaria a sua existência (foram publicados apenas dois números) por falta de financiamento do pai de Mário de Sá-Carneiro.

Também os pintores Carlos Botelho e Eduardo Malta, que tanto deveram a Ferro, não hesitaram em manifestar a sua ingratidão, o segundo em duas cartas a Oliveira Salazar em que se apouca a figura de Ferro (pp. 309 e 457)

Personagem central no livro é obviamente o próprio Salazar, a quem Ferro protestaria sempre a sua indefectível adesão, mesmo quando não se identificava completamente com a orientação do presidente do Conselho de Ministros. António Ferro, homem de pensamento e de acção, propõe-se entrevistar Salazar para dar a conhecer ao país as ideias do que era, no seu entender, o Homem Providencial, depois do período agitado da Primeira República. As entrevistas foram um sucesso e Ferro sugere a criação de um órgão para divulgar a obra do Estado Novo, então nos primórdios, e para desenvolver uma Política do Espírito (segundo a expressão de Paul Valéry). E ninguém melhor do que ele para essa missão. É assim criado o Secretariado da Propaganda  Nacional (1933), chefiado por Ferro, que passou a designar-se em 1945 Secretariado Nacional de Informação. Tudo isto é do conhecimento público e não me deterei em pormenores. Em 1947, António Ferro, (supostamente) cansado de mais de dez anos de actividade e de incompreensões e calúnias, pede a Salazar um posto no estrangeiro, de preferência Paris. Salazar envia-o para Berna (1950), lugar que intimamente detesta. Em 1954, é nomeado ministro plenipotenciário em Roma, vindo a falecer em Lisboa, em 1956, na sequência de uma intervenção cirúrgica.

Como a autora evidencia, a relação de Salazar com António Ferro aproveitou a ambos. O presidente do Conselho aproveitou-se de Ferro para a propaganda do Regime, através de um campo que lhe era alheio, as manifestações culturais, ainda que a palavra "propaganda" não tivesse então a precisa conotação política que mais tarde lhe foi atribuída. António Ferro aproveitou-se de Salazar para realizar uma obra de divulgação cultural, acção que lhe era particularmente cara, ultrapassando largamente a missão política de que estava incumbido, incentivando o modernismo, apoiando os criadores, desenvolvendo uma actividade que cobria os mais variados géneros, do teatro e do cinema, às artes plásticas e à literatura, sem esquecer o turismo. Foi a obra de António Ferro que emprestou algum brilho à aridez da política salazarista, prioritariamente ocupada com os aspectos financeiros.

Há quem, por miopia política ou má-fé, acuse António Ferro de "comprar" com os seus subsídios os artistas mais notáveis da época para que as suas obras contribuíssem para o engrandecimento do Regime. Esquecem-se de que sem o apoio do Secretariado muitos desses artistas jamais teriam alcançado a projecção que posteriormente vieram a adquirir.

Já escrevi várias vezes sobre António Ferro neste blogue, nomeadamente aqui, aquiaqui. Não repetirei, por isso, o que disse nos posts anteriores. As linhas que aqui deixo pretendem tão só dar notícia do livro agora publicado e chamar a atenção do leitor para uma obra diferente na bibliografia passiva de António Ferro.

O livro refere também curiosos aspectos da vida de Fernanda de Castro, sua mulher, e especiais referências de António Quadros, seu filho, figura grada do pensamento filosófico português do nosso tempo, autor de uma obra ainda não suficientemente divulgada e de quem tive o privilégio de ser amigo.

Mas mais importante do que digo acima será provavelmente tudo o que não escrevi.

sábado, 26 de novembro de 2016

FIDEL CASTRO




Fidel Castro, líder da Revolução Cubana e chefe carismático do país durante meio século, morreu esta madrugada em Havana, com 90 anos de idade.

Figura controversa, El Comandante marcou indelevelmente a história política ocidental da segunda metade do século XX.  Com a sua morte, desaparece o último grande vulto do movimento comunista e o último estadista de renome que, embora retirado há dez anos, se destacava no panorama amorfo e medíocre da cena internacional.

Amado e odiado, Fidel Castro é uma personalidade incontornável para o estudo das transformações económicas e sociais verificadas após o fim da Segunda Guerra Mundial. O seu activo e o seu passivo são enormes. Autor de modificações profundíssimas em Cuba, que configuraram um país diferente, ousou enfrentar os Estados Unidos da América, que impuseram à ilha um bloqueio desumano e inconsequente, que prejudicou largamente a população e nada contribuiu para a queda do regime.

Para alcançar os objectivos que as suas convicções impunham, não hesitou em utilizar métodos que condenamos mas que ele julgava indispensáveis à criação de um Estado socialista em Cuba.

As suas reformas, que retiraram da pobreza milhões de pessoas, efectuaram-se através de grande repressão, tanto maior quanto foram sistematicamente sabotadas pelas interferências americanas. A redução drástica da taxa de mortalidade infantil, a erradicação do analfabetismo, a educação e saúde gratuitas, permitiram um desenvolvimento social que teve como contraponto a supressão da liberdade de imprensa, a eliminação do direito de expressão que colidisse com a orientação oficial, o controle insuportável da vida privada e a penalização dos "atentados" aos costumes.

No plano económico, a rigidez da planificação e estatização, que obteve inicialmente bons resultados em alguns sectores, viria a revelar-se nociva, pela absoluta exclusão da iniciativa privada mesmo ao nível individual, situação que seria reconsiderada num passado mais recente.

Cabe aos especialistas o balanço dos esplendores e misérias do regime cubano. Mas é inegável o fascínio que Fidel Castro exerceu sobre os seus contemporâneos, desde os tempos de Serra Maestra até à sua morte. Durante décadas, os principais dirigentes mundiais encontraram-se com Fidel Castro e até os três últimos papas, João Paulo II, Bento XVI e Francisco, não recearam visitar Havana e encontrar-se com o líder ateu.

Até mesmo Marcelo Rebelo de Sousa, com a premonição de um breve desenlace, se apressou a rumar a Cuba para uma derradeira entrevista com El Comandante.

Tendo preparado a sua sucessão, não se esperam surpresas de relevo com a morte de Fidel Castro. O regime começou a adaptar-se aos novos tempos ainda sob a sua orientação. O turismo, que é hoje, por razões que nos dispensamos de mencionar, florescente em Cuba, concorreu também para o intercâmbio que o bloqueio pretendia evitar.

Dito isto, os funerais de Fidel Castro constituirão certamente o último acto público de um grande actor político, que ocupou a cena mundial durante meio século.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

HOMENS BONS E HOMENS MAUS



Acabei de ler, a conselho de um amigo, o romance Homens Bons, tradução portuguesa de Hombres Buenos (2015), penúltimo livro publicado do escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte (n. 1951). Conheço razoavelmente a literatura de língua castelhana (de Espanha e das Américas), clássica e contemporânea, onde figuram obras notáveis, mas foi a primeira vez que li um livro de Pérez-Reverte, autor de cerca de quarenta romances e novelas, traduzido em trinta idiomas e, desde 2003, membro da Real Academia Española.


Começando a sua actividade como repórter de guerra, a partir dos anos 90 Pérez-Reverte passou a dedicar-se exclusivamente à escrita, num registo entre o policial e o romance histórico (erudito). Muitos dos seus livros resultaram autênticos best-sellers e o seu nome tornou-se mundialmente conhecido.


O enredo do romance de 500 páginas pode resumir-se numa dúzia de linhas. Em finais do século XVIII, Hermógenes Molina e Pedro de Zárate, membros da Academia Espanhola, são enviados por esta instituição a Paris, com a missão de adquirirem a primeira edição da Encyclopédie francesa (28 volumes), obra proibida em Espanha, e mesmo em França, mas cuja compra fora autorizada pelo rei Carlos III, soberano discretamente iluminado. Destina-se a mesma à ilustração dos académicos e a fornecer contributos para a nova edição do Dicionário da Academia.


Uma das características mais interessantes do livro é que Pérez-Reverte intercala na narrativa o making-of do romance. É, aliás, a partir da contemplação da Encyclopédie na biblioteca da Academia que lhe surge a ideia de descrever, a partir das actas existentes, o que foi a aventura de trazer de França tão volumosa e preciosa encomenda. Tarefa facilitada pelo facto de ser ele mesmo membro da Academia, fundada em 1713 por Juan Manuel Fernández Pacheco, marquês de Villena, sob o patrocínio do rei Felipe V.


Estamos, pois, face a um romance, não propriamente um romance histórico mas um romance baseado numa história real a que a efabulação do autor confere perfeita verossimilhança. Nos intermezzi ao longo do livro, Reverte vai-nos contando como foi construindo a narrativa, as fontes que consultou, os livros e mapas que procurou, as deslocações que teve de realizar, inclusive a visualização aérea de regiões através dos mapas do Google! Todo este trabalho de pesquisa constitui uma história dentro da história e revela as qualidades extraordinárias do autor, a sua vastíssima cultura e a invejável capacidade para prender o leitor da primeira à última página.


A nobre missão dos dois a académicos, dois "homens bons", conforme a acta da sessão plenária da Academia onde se encontra registada a sua designação, vai sofrer vários contratempos, pois dois dos seus colegas, um, católico ultramontano, o outro, ateu progressista, decidem contratar um sicário para lhes dificultar a tarefa. Por quaisquer meios. Importa, para os seus colegas, por razões diametralmente opostas, que a obra não chegue a Espanha. Para um porque o seu conteúdo é demoníaco, um ataque ao Trono e ao Altar, para o outro, porque a sua divulgação iria retirar-lhe o exclusivo de ser ele o paladino das ideias progressistas no reino. Enfim, dois tratantes, conjunturalmente aliados pela força das conveniências.


As peripécias da viagem e a estada em Paris ocupam meio milhar de páginas. Por isso, apenas breves apontamentos. Encontrado um exemplar da Encyclopédie à venda, por morte do seu proprietário, os académicos decidem adquiri-lo e um deles (o outro estará ausente por motivos de que a seguir falarei) acompanhado de uma personagem bizarra que conheceram na Embaixada de Espanha em Paris, o abade Bringas, vai levantar o dinheiro ao banco, sendo roubado e agredido em plena rua pelo bandido a soldo e seus sequazes.


Refira-se agora que o outro académico, o almirante Pedro de Zárate recebera um convite galante para passar a manhã da ida ao banco em casa de uma senhora da sociedade, Margot Dancenis, e aceitara-o. [Devo dizer que me espanta esta opção do autor, já que o perfil do almirante é descrito ao longo do livro como um homem austero e rigoroso cumpridor dos seus deveres. Não deveria ter consentido que o outro académico, pessoa muito menos capaz de defender-se em caso de ataque, se tornasse portador de tão avultada quantia (mil e quinhentas libras da época - não diz Reverte, nem eu sei, a quanto equivaleriam nos nossos dias). O estrito sentido do dever impunha-lhe a declinação do convite para aquele dia].


Continua a história com os académicos, privados do dinheiro para a aquisição da já apalavrada e ambicionada obra, numa visita à Embaixada de Espanha, fazendo um relato ao embaixador do assalto sofrido e pedindo um empréstimo para a satisfação do compromisso assumido. O diplomata, o conde de Aranda, que é sovina, recusa polidamente, mas o almirante invoca, por palavras, toques e sinais (não os autênticos mas os suficientes para a narrativa), a sua condição de maçon, a que o embaixador, também ele franco-maçon, corresponde, autorizando o empréstimo da almejada quantia. Aqui, Pérez-Reverte (não sei se ele é maçon) evoca a solidariedade maçónica e, en passant, presta homenagem à  Venerável Ordem.


Obtida a obra, novos incidentes no regresso a Espanha, graças ao famigerado meliante, com mortos e feridos mas com os nossos académicos sãos e a Encyclopédie salva. Finalmente, a justa recepção na Academia, a exposição da obra e a frustração dos seus antagonistas.


Ao longo do livro, Reverte, através da História, ajusta contas com a Espanha actual, critica indirectamente políticos e instituições, mesmo Rajoy (sem o citar) a quem acusa de nunca ter lido um livro. Denuncia a Espanha retrógrada do século XVIII e a sua tentativa de abafar o Iluminismo, e projecta no presente o eterno confronto entre as Duas Espanhas, de que tão bem nos falou Fidelino de Figueiredo.


Apesar de traduzido segundo o sinistro Acordo Ortográfico de 1990, Homens Bons é um livro interessante, culto e estimulante que bem merece o tempo gasto com a sua leitura.


sábado, 12 de novembro de 2016

MALEK CHEBEL




Morreu esta noite, com 63 anos, o grande antropólogo argelino Malek Chebel, cujas obras sobre a sexualidade no Islão são fundamentais e indispensáveis a qualquer estudioso do tema.

Possuo quase todos os livros deste especialista do mundo árabo-muçulmano, das religiões e da sexualidade.

Partilho uma entrevista concedida em 28 de Março de 2002, ao "Nouvel Observateur":

  • Malek Chebel, qui était né en 1953 à Skikda, en Algérie, est mort dans la nuit du 11 au 12 novembre 2016. 
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  • Psychanalyste, philosophe, il était surtout connu pour ses travaux comme anthropologue des religions, spécialiste du monde arabo-musulman et adepte d'un "islam des Lumières".
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  • Auteur de nombreux essais, depuis "le Corps en islam" (PUF, 1984), il avait notamment publié un "Dictionnaire amoureux de l'islam" (Plon, 2004), un "Dictionnaire encyclopédique du Coran" (Fayard, 2009) ou encore une vaste anthologie consacrée à "l'Erotisme arabe" (Bouquins, 2014). 
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  • En 2002, à 48 ans, il publiait "le Sujet en islam" (Seuil). L'occasion de faire le point sur ses travaux, dans cet entretien au "Nouvel Observateur". 

 Malek Chebel : "La vocation de mon travail a consisté à réhabiliter le désir féminin"

« Passeur de sens entre l'Orient et l'Occident», le psychanalyste et anthropologue Malek Chebel est surtout connu pour ses écrits fondateurs sur la sexualité en Islam (1). Originaire de Skikda, ville côtière de l'Est algérien, il s'est installé en France en 1977 pour suivre les cours de Jean Laplanche et questionner l'univers arabo-musulman. A 48 ans, il publie son quatorzième ouvrage, «le Sujet en islam», aux Editions du Seuil.

Le Nouvel Observateur. Depuis vingt ans, vous travaillez à une «Histoire des mentalités dans le monde arabe» dont vous nous livrez aujourd'hui le sixième et avant-dernier tome: «le Sujet en islam». N'était-il pas audacieux d'y pointer l'intime relation que noue le gouvernement de la cité musulmane avec la sexualité de ses leaders politiques les plus charismatiques? 

Malek Chebel. Certainement, mais mon regard n'est pas celui du théologien. Hors de toute polémique, je me situe en observateur, en historien. Ce livre peut paraître offensant pour les musulmans, car j'évoque des versets du Coran qui viennent avaliser le désir du prophète Mohammed. Son mariage «de volonté divine» avec la belle Zaïnab, la femme de son fils adoptif, en est un exemple éloquent. Depuis le mariage avec les femmes des fils adoptifs a été autorisé. Mon souci dans ce livre a été de montrer le visage humain du Coran. Or c'est «le» grand scandale.

Vous n'en êtes pas à votre premier scandale, depuis vingt ans que vous parlez orgasme, excision, hymen, homosexualité?

Effectivement, au départ mes conférences en Sorbonne se terminaient en véritables pugilats. A présent, on me présente comme un «libérateur» de la femme. Car le combat que je mène contre les formes archaïques de l'expression de l'islam passe forcément par la femme, cet épicentre de la transgression, lieu de tous les complexes, refoulements et blocages. Pour le machiste, pour le misogyne musulman, la femme n'était qu'un «entre-cuisses», une momie privée de jouissance. La vocation de mon travail a consisté à réhabiliter le désir féminin. 

Or le droit à la jouissance donne accès au statut de sujet? 

A la liberté et au sujet. Dès l'instant où une personne commence à jouir, à être maîtresse de sa jouissance, elle exprime son autonomie. Et dès qu'elle est sujet, elle n'est plus un bon soldat pour la morale collective et archaïque. C'est donc à partir de cet individu acteur que l'islam se réformera et qu'il gagnera la bataille face à tous les démagogues, théologiens et imams corsetés jusqu'au cou. Pour l'instant, le sujet n'existe dans l'univers arabe que sous la forme d'un potentiel qui n'a pas encore révélé son étendue. Son affranchissement est contrecarré par la prééminence du divin sur l'humain et par l'obéissance qui conditionne, puis verrouille, la foi des fidèles. 

Quel espoir nourrissez-vous pour l'islam de demain? 

Je propose que l'islam soit une chance et non une contrainte ou un enfermement. Cherchons les espaces de liberté et d'intelligence qu'il nous propose, plutôt que le rigorisme d'un dogme dont on connaît les effets réducteurs. Un musulman nouveau est sans doute en train de naître sous nos yeux. Et son double défi consiste à gagner sa modernité sans perdre sa foi.
En France, par exemple, c'est par la part inaliénable de la citoyenneté que le musulman aspire à s'intégrer. Et il se méfiera même de ceux qui veulent le cantonner à la mosquée, parce que c'est nier chez lui la possibilité qu'il puisse être laïque, aimer la laïcité et la défendre en tant que telle. Finalement, le gage que la modernité a pris sur l'islam, c'est que le sujet musulman sera fabriqué ici en Occident avant qu'il n'advienne là-bas. 
Propos recueillis par Marie Lemonnier
(1) «La Psychanalyse des Mille et Une Nuits», Payot.