segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A MORTE DE ROLAND BARTHES



Roland Barthes foi atropelado no dia 25 de Fevereiro de 1980, quando atravessava a Rue des Écoles, após ter almoçado com François Mitterrand. Atribui-se o fatal acidente (pois Barthes morreria um mês depois) a uma simples distracção do mestre, embora um amigo meu sustente que o eminente professor do Collège de France teria visto um rapaz interessante do outro lado da rua e que, por isso, se precipitara inadvertidamente para o passeio oposto.
 
Surge, agora, a tese do homicídio. Laurent Binet, no recém-publicado romance La septième fonction du langage, que mencionei aqui, defende que Barthes, que deteria o segredo da sétima função da linguagem, foi propositadamente colhido pela camioneta de uma lavandaria, conduzida pelo búlgaro Yvan Delahov, o que permite ao autor explorar a pista búlgara, que conduz inevitavelmente a Julia Kristeva, essa famosa intelectual franco-búlgara, mulher de Philippe Sollers, que publicara em 1990, Les Samouraïs, um roman à clef sobre o meio literário francês. Só que, no livro de Binet os escritores (e os políticos) são chamados pelos próprios nomes.

O desaparecimento da folha que conteria o "segredo", inquieta Giscard, então presidente da República em fim de mandato, que considera tratar-se de um segredo de Estado e põe em cena o comissário Jacques Bayard, dos Renseignments Généraux (RG) e Simon Herzog, um doutorando de Vincennes que o polícia arrebanha para o ajudar a decifrar a linguagem hermética da linguística e da semiologia, naturalmente desconhecida dos flics, pouco familiarizados com Saussure, Lévy-Strauss, Todorov, Lacan, Foucault, Derrida, John Austin, John Searle, etc. Este par Bayard/Simon vai estar no centro dos mais inesperados acontecimentos, que Binet descreve com um humor e suspense dignos de Umberto Eco, aliás, também ele uma personagem central do livro. É evidente a influência de O Nome da Rosa, e ainda que La septième... não seja uma obra tão volumosa (500 páginas) como o livro do escritor italiano, este inspirou sem dúvida o plot de Binet.

Roland Barthes

A descrição das visitas que se acotovelam no Hospital da Pitié-Salpêtrière para visitarem Barthes é deliciosa. Nem sequer falta Bernard-Henri Lévy, que já nessa altura se proclama grande amigo do mestre, ainda que mal o conhecendo. De resto, ao longo de toda a obra, BHL não deixa de ser alvo do humor cáustico de Binet.

Também os diálogos com Michel Foucault demonstram o bom conhecimento de Laurent Binet sobre o meio homossexual. Ao contrário de Barthes, que cultivava a discrição e apenas no fim da  vida se expôs mais publicamente (o único livro em que aborda directamente o tema, Incidents, só foi publicado, postumamente, em 1987), Foucault exibia com ostentação a sua homossexualidade (e também a sua preferência sado-maso). As diligências do comissário Bayard levam-no ao Café de Flore (ponto de reunião de escritores, de homossexuais e de escritores homossexuais) mas dessa vez só encontra Sartre e Françoise Sagan, além dos gigolos que engatam na zona. Interrogando-os, sabe contudo que a última pessoa a ver Barthes antes do acidente foi um jovem marroquino que, segundo os outros rapazes árabes que deambulam em torno do Café, poderá encontrar nos Bains Diderot, uma sauna junto à Gare de Lyon. E enquanto Bayard e Simon percorrem timidamente a sauna, em que dezenas de homens e rapazes se entregam às mais diversas práticas sexuais, eis que deparam com Michel Foucault, todo nu, a ser chupado pelo rapaz que procuravam, o jovem Hamed. Este estivera, de facto, dias antes em casa de Barthes, mas não tinham tido verdadeiramente uma relação sexual, apenas aquilo a que o escritor chamava faire du bateau, uma conversa sentimental. E de nada mais sabia. Nas várias passagens do livro em que menciona Foucault, Binet não deixa de salientar o lado antipático da personagem, o seu habitual riso sarcástico, um certo pedantismo, a que não é alheia a circunstância de ser considerado à época, e ainda hoje, um dos mais prestigiados intelectuais franceses do século passado.

Laurent Binet

Ao longo da obra, Binet evidencia um profundo conhecimento dos bas-fonds parisienses, com particular destaque para saunas, clubes e bares especialmente frequentados por homossexuais e por rapazes (homossexuais ou não) interessados em receber algum dinheiro pelas suas prestações sexuais. E como não poderia deixar de acontecer, há sempre rapazes árabes envolvidos nestas aventuras. Toda a gente sabe que a imigração beur, de 2ª ou 3ª geração, é quem fornece (ou forneceu atá há poucos anos) o maior contingente de rapazes disponíveis para práticas homossexuais. Desde o século passado, os mais famosos escritores franceses gays tiveram (e ainda têm) um petit ami de origem magrebina.

É o momento de abrir um parêntese para explicitar quais as funções da linguagem, um conceito criado pelo célebre linguista russo Roman Jakobson (1896-1982), que foi um dos iniciadores do Estruturalismo. Segundo Jakobson, a cada um dos seis factores inalienáveis da comunicação verbal corresponderiam seis funções da linguagem: Função Emotiva ou Expressiva; Função Referencial ou Denotativa; Função Apelativa ou Conativa; Função Fática; Função Poética; Função Metalinguística. O romance gira à volta de uma sétima função que Jakobson não teria enunciado mas de que Barthes seria conhecedor, consignada num documento que lhe teria sido roubado no momento do seu acidente. Segundo o presidente Giscard d'Estaing, esse documento poria em causa a segurança nacional. Isto é, quem tivesse acesso ao conhecimento da sétima função da linguagem teria um poder absoluto sobre o mundo.

O romance encontra-se recheado de referências culturais, mais facilmente intelegíveis pelo público francês, mas que denotam a familiaridade do autor com as grandes obras da literatura francesa e universal e o seu conhecimento dos meios políticos da França.

Transcrevo, por curiosidade e atendendo às pessoas que serão personagens centrais no romance, a notícia (e os comentários) à morte de Roland Barthes ( jornal televisivo de 26 de Março de 1980, às 20 horas). Informação às 20 h 24: «Roland Barthes est... (pause de PPDA) mort cet après-midi à l'hôpital de la Pitié-Salpêtrière, à Paris. (Giscard arrête de parapher, Mitterrand arrête de grimacer, Sollers arrête de fourrager dans son caleçon avec son fume-cigarette, Kristeva arrête de touiller son sauté de veau et accourt de la cuisine, Hamed arrête de enfiler sa chaussette, Althusser arrête d'essayer de ne pas s'engueler avec sa femme, Bayard arrête de repasser ses chemises, Deleuze dit à Guattari:"Je te rappelle!", Foucault arrête de penser au biopouvoir, Lacan continue à tirer sur son cigare.)»

Comecei a escrever este post em Setembro p.p., mas outros afazeres impediram-me então de concluí-lo. É-me difícil neste momento, e sem notas, prosseguir, ainda que em síntese, o desenrolar dos acontecimentos. Vou cingir-me, pois, a algumas notas.

Laurent Binet, que com este livro era "candidato" ao Prémio Goncourt, afinal atribuído a outro notável romance, Boussole, de Mathias Énard, conseguiu ainda assim obter o Prémio Interallié e o Prémio Roman Fnac.

Consegue Binet movimentar no livro todo um universo esotérico, ainda que profundamente ligado à realidade, combinação difícil mas que empresta à narrativa um especial sabor. Estamos, como escrevi acima, nos terrenos de Umberto Eco, que Laurent Binet explora com reconhecido êxito.

O gigolo Hamed é entretanto assassinado por aqueles que supostamente tentam obter o documento com o segredo. A polícia, que pretendia obrigá-lo a revelar o que eventualmente saberia, ouve apenas as últimas palavras do moribundo: «Écho». Entre muitos episódios, alguns bem divertidos, começa a surgir a existência de uma pista búlgara, que inevitavelmente conduzirá a Julia Kristeva (não esquecer que o motorista da camioneta que atropelou Barthes é búlgaro).

Ao longo do livro, Binet aproveita a ocorrência de diversos acontecimentos trágicos para fundamentar a sua tese quanto ao homicídio de Barthes. Assim, sabendo-se que o eminente filósofo marxista Louis Althusser estrangulou a sua mulher Hélène (em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas  ou que se preferiu ignorar - a justiça francesa considerou-o inimputável) em 16 de Novembro de 1980,  Binet atribui o acto ao facto desta ter atirado para o caixote do lixo, por ignorância, o documento que conteria o segredo e que lhe fora confiado por Julia Kristeva.

Também o atentado terrorista contra a Estação Central de Bolonha, em 2 de Agosto de 1980, é relacionado com o tema.

A meio do livro surge uma associação secreta, o Logos Club (um piscar de olho à Loja P2?) dirigida por uma espécie de grão-mestre, o Grande Protágoras, cuja identidade nos é revelada no fim. O Logos, com ramificações em diversos países, dedica-se, entre outras coisas, à disputa retórica de assuntos de alto nível intelectual entre dois dos seus membros, em sessões especialmente convocadas, e ao que perder o combate (presidido por um júri) é-lhe amputado um dedo. Na hierarquia do Logos há sete níveis. Cito no original. Nível 1: parleurs; nível 2: rhéteurs; nível 3: orateurs; nível 4: dialecticiens; nível 5: péripatéticiens; nível 6: tribuns; nível 7: sophistes. Estes últimos usam um nome de código e é suposto terem alcançado uma perfeição inatingível.

Também Antonioni participa numa das sessões e, perdendo o confronto, acaba por ficar sem um dedo. E Bernard-Henri Lévy aparece em muitas ocasiões, eventualmente de camisa preta para passar incógnito! O autor nunca poupa BHL a um sarcasmo mordaz.

Toda a intelectualidade francesa vai desfilando neste romance, quase policial, de Binet. E as referências culturais (e políticas, e históricas) são realmente muitas, talvez mais do que muitas, o que obriga a uma atenção especial do leitor, que por vezes é obrigado, compreensão do texto oblige, a recorrer a um aide-mémoire para situar os acontecimentos.

Em dado momento o centro da acção transfere-se para os Estados Unidos onde, em 1980, na Cornell University, Ithaca, o professor Jonathan Culler organiza uma conferência, "Shift into overdrive in the linguistic turn". Participam Noam Chomsky, Hélène Cixous, Jacques Derrida, Michel Foucault, Félix Guattari, Luce Irigay, Roman Jakobson, Frederic Jameson, Julia Kristeva, Sylvère Lotringer, Jean-François Lyotard, Paul de Man, Jeffrey Mehlman, Avital Ronell, Richard Rorty, Edward Saïd, John Searle, Gayatri Spivak e Morris J. Zapp. O conteúdo das intervenções também é pretexto para saborosas considerações de Binet. E durante a estada nos EUA verificar-se-ão interessantes movimentações de alguns dos participantes em busca do segredo, tudo isto misturado com peripécias sexuais, até porque o magrebino Slimane (um dos amigos do falecido Hamed) foi convidado por Michel Foucault para esta viagem. É verdade que o autor, baseando-se em muitos factos reais, permite-se criar outros, como no caso da "morte" de Jacques Derrida, que só ocorrerá em 2004, ou do suicídio de John Searle, que ainda está vivo!

Já para o fim do livro, tem lugar uma sessão do Logos Club, realizada em Veneza, no La Fenice, em que participa o jovem Simon Herzog, citado no princípio e que vence a disputa, e outra, em que o júri é composto pela totalidade dos sofistas (10), ostentando máscaras venezianas, tal como os dois "concorrentes", sendo um o Grande Protágoras que vence o adversário, ou seja, Philippe Sollers. Durante a discussão, os presentes reconhecem pela voz que o Grande Protágoras é o próprio Umberto Eco. Vencido, Sollers, não perde um dedo mas os testículos, que lhe são amputados, a pena estabelecida quando se desafia directamente o Grande Protágoras. Julia Kristeva recolhe numa urna os despojos do marido e corre à Basílica de Santa Maria Gloriosa dei Frari, a essa hora fechada, mas que é, segundo Sollers, o coração glorioso da Sereníssima, e junto à pequena ponte contígua, tira um papel da camisa que rasga e lança no canal.

Há ainda um episódio final. O rapto de Simon pelo italiano que ele havia derrotado em La Fenice e que ordena aos seus esbirros que lhe cortem a mão.

A terminar, vem a saber-se, após François Mitterrand ter derrotado nas presidenciais Giscard d'Estaing, que a  sétima função da linguagem tinha afinal caído nas mãos de Jack Lang por ocasião do almoço para o qual convidara Barthes, pois o futuro ministro da Cultura sabia que este recuperara o manuscrito de Jakobson. Como o fizera, isso Lang ignorava. Durante o repasto, Lang subtraíra o papel do casaco de Barthes e entregara-o a Debray, que esperava escondido no vestíbulo. Debray correra a levar o documento a Derrida que que a partir do texto original forjou outro com uma falsa função, que Debray remeteu depois a Lang e foi parar novamente ao casaco de Barthes, antes que o almoço terminasse. Assim, Mitterrand pôde utilizar a famosa função no duelo televisivo contra Giscard.

Tout compte fait, só Mitterrand (e Jakobson, obviamente) conheceu o conteúdo do documento, pois nem Lang, nem Debray, tiveram tempo para o ler e Derrida, entretanto "morto", jurara guardar segredo.

Voltando ao início. O "écho" de Hamed moribundo seria, vertendo do francês para o italiano, Eco!!!

Muito fica naturalmente por dizer. Por isso, vale a pena ler o livro de Laurent Binet.

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