segunda-feira, 25 de maio de 2015

O MUSIKVEREIN DE VIENA




O Musikverein (Clube da Música), construído pela Gesellschaft der Musikfreunde (Sociedade dos Amigos da Música), é uma das grandes salas de concerto de Viena. Sede da Orquestra Sinfónica de Viena, acolhe regularmente outras grandes orquestras e os maiores intérpretes a nível mundial.


Tive a oportunidade de aqui assistir, alguns dias atrás, na Grande Sala (com capacidade para 2.000 pessoas), a um notável concerto, cujo programa menciono abaixo, com a Orquestra da Casa, dirigida pelo maestro estónio Olari Elts e a violoncelista argentina Sol Gabetta. Na véspera, estivera Daniel Barenboim ao piano (Schubert), mas outros compromissos impediram-me de estar presente.


Refira-se que é no Musikverein, na Grande Sala (o edifício tem outras salas mais pequenas) que se realiza o famoso e tradicional Concerto de Ano Novo, habitualmente transmitido pelas televisões.


O edifício situa-se junto da Karlsplatz e nas traseiras do célebre Hotel Imperial, na Kärntner Ring, onde esteve alojado Richard Wagner e Hitler se instalou após o Anschluss.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O "NABUCCO" EM VIENA




A Wiener Staatsoper apresenta esta temporada a sempre apreciada ópera Nabucco, de Verdi. No espectáculo de 14 deste mês, a que assisti, interpretaram os principais papéis Željko Lučić, em Nabucco (que alternava, quiçá vantajosamente, com Plácido Domingo, agora regressado a barítono), Carlos Osuna, em Ismaele (e que se estreava neste papel na Ópera de Viena), Michele Pertusi, em Zaccaria (substituindo Mikhail Kazakov, por motivo de doença), Monika Bohinec, em Fenena e Maria Guleghina, em Abigaille, um fantástico desempenho, entusiasticamente aplaudido pelo público.


A Orquestra, cuja direcção esteve a cargo do conhecido e vetusto maestro Jesús López Cobos, emprestou ao espectáculo o brilho requerido, tal como se verificou com a magnífica actuação do Coro. Outro tanto não se poderá dizer da encenação de Günter Krämer, pretensamente moderna, retirando à ópera a sua contextualização bíblica para a converter, honni soit qui mal y pense, num demagógico espectáculo de propaganda sionista, em que os escravos hebreus foram ostensivamente transformados nos judeus que eram conduzidos aos campos de concentração nazis. Além de um "cenário" inexistente, de um guarda-roupa confrangedor e de uma iluminação improvável.


Compreendo que Viena tenha necessidade de exorcizar periodicamente os seus fantasmas, que continuam a assombrar a cidade, não obstante, desde 1938, terem já decorrido quase 80 anos sobre a delirante aclamação do Führer na Heldenplatz. Mas, com intuitos políticos ou mesmo sem eles, não vale a pena estragar uma obra de arte com o pretexto de renovar as produções, a maior parte das vezes de forma gratuita e até ridícula. São poucas as óperas e menos ainda os encenadores capazes de apresentar um tema clássico num contexto moderno. Costumo recordar, a propósito, a encenação de Der Ring des Nibelungen, de Wagner, em Bayreuth, em 1976-1980, por Patrice Chéreau, mas este caso é praticamente ímpar na história das produções operáticas.


É tempo de correr dos teatros líricos com os pretensiosos encenadores "modernos" e de restituir às óperas a dignidade que lhes foi conferida durante décadas, sob pena de tornar incompreensíveis os espectáculos, como sucede habitualmente nestes casos, onde a letra do texto (agora, ainda para mais, projectada em legendas electrónicas) nada tem a ver com a acção que se desenrola sobre as tábuas do palco.





Nota: o frontão da Ópera, onde figura, inscrito a letras de ouro, o nome de Francisco José I, encontra-se tapado, como se pode ver na foto, por uma espécie de barracão de lona ou de papelão, fazendo propaganda à ópera para crianças (Oper für Kinder).



PALMYRA




A conquista de Palmyra pelo auto-denominado Estado Islâmico, sustentado por "forças ocultas" aos olhos dos ingénuos e dos ignorantes, é um crime contra a Humanidade. Não sabemos ainda se as antiquíssima ruínas serão destruídas, havendo só noticia de que algumas peças únicas da Antiguidade foram retiradas do museu local.

Estive alguns dias em Palmyra, em Setembro de 2005, e fiquei deslumbrado pela magnificência do conjunto arqueológico, de estonteante beleza ao entardecer,  e pelo cuidado que o governo de Bashar Al-Assad, ainda que com meios modestos, dispensava ao museu da cidade.



As ruínas de Palmyra situam-se a alguma distância de Tadmur, nome árabe da localidade, mas o percurso faz-se facilmente a pé.

Continua a constituir um enigma para muita gente como foi possível a um punhado de fanáticos apoderarem-se em poucos meses de um território maior do que Portugal. Insondáveis (ou estúpidos) são os desígnios dos Estados Unidos da América. E abomináveis as monarquias da Península Arábica. Mas tudo começou com a invasão anglo-americana do Iraque, em 2003, encabeçada por dois criminosos de guerra, George W. Bush e Tony Blair, apoiados por outros proxenetas menores mas nem por isso menos danosos.

A destruição do Médio Oriente, a que vimos assistindo desde há mais de dez anos, constitui um dos actos mais ominosos das últimas décadas, com o seu cortejo de milhões de vítimas e a destruição de um património cultural de inestimável valor universal. Não pode haver perdão para os autores materiais e morais desta hecatombe, a maior parte infelizmente ainda vivos, nem para os turiferários de uma guerra justificada pela mais completo argumentário de mentiras alguma vez produzido na História.



Não é este o momento para analisar a criação do "Estado Islâmico" nem para confiar as minhas impressões pessoais sobre a inesquecível estada em Palmyra. Mas não posso deixar de manifestar hoje a mais profunda indignação pela situação que se vive na Síria e no Iraque e pela manifesta hipocrisia do Mundo Ocidental.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

JUAN GOYTISOLO, PRÉMIO CERVANTES














Para memória futura, regista-se o discurso do escritor espanhol Juan Goytisolo, no passado dia 23 de Abril,  na cerimónia de recepção do Prémio Cervantes.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

O GRANDE AUSENTE



Coroa do Santo Império Romano Germânico

Voltei à cidade de Viena, ao fim de quase vinte anos de ausência, para revisitar a majestosa capital do Santo Império Romano Germânico (que o foi praticamente sem interrupções durante cinco séculos) e, depois de 1804 (ou 1806), do Império Austríaco (ou, se preferirem, do Império Austro-Húngaro).

Alguma coisa mudou: mais turismo, mais luxo, maior oferta cultural, aumento da tecnologia em detrimento dos postos de trabalho. Mas permanece o encanto dos palácios e das igrejas, dos museus e dos jardins, das estátuas e dos sumptuosos prédios, dos restaurantes old fashion e dos cafés agora pouco literários, dos hotéis tradicionais e dos globalizados hotéis modernos. Continuam imponentes as grandes avenidas, começadas a surgir com o Ring, o anel que envolve o venerável Hofburg, e onde foram erigidos no século XIX, os edifícios da Staatsoper, do Parlamento (Reichsrat), da Nova Câmara Municipal (Neues Rathaus), do Burgtheater, da nova Universidade, do Kunsthistorisches Museum e do Museu de História Natural.

Todavia, Viena é uma cidade estranha. Vive assombrada por duas figuras tutelares. Uma, omnipresente, é permanentemente mencionada nos monumentos e nos livros, nos nomes das praças e das ruas, e a sua imagem figura nos quadros dos hotéis e dos restaurantes, das lojas e dos cafés, dos museus e dos teatros, em pinturas, em fotos ou em bustos: o imperador Franz Josef I, cujo nome está inscrito em letras de ouro no frontão da Ópera Imperial.

A outra, raramente é referida, apenas em voz baixa e em conversas discretas, quase nunca mencionada nos jornais, onde a sua fotografia escassas vezes aparece e sempre sob falsos pretextos, mas (como já verifiquei claramente em Munique há três ou quatro anos) organiza os espíritos e disciplina a vida em sociedade, contribui para uma certa ordem na cidade, onde não há no chão nem um papel, nem uma ponta de cigarro, onde não se vêem graffiti nas paredes, onde os transeuntes só atravessam as ruas nas passadeiras e com os semáforos verdes, onde os alunos das escolas marcham ordenadamente nas visitas de estudo aos  museus, uma figura que cultivou um mito que não desagradou aos austríacos órfãos de Francisco José e que, sabe-se lá porquê, é hoje estranhamente evocada nas páginas interiores dos menus dos restaurantes e cafés, através da foto de um quase sósia, o grande escritor Stefan Zweig (por sinal judeu, mas que a espantosa semelhança do rosto justifica a inclusão). Trata-se de um antigo cabo do exército germânico (aliás, de naturalidade austríaca), que, após a falência da república de Weimar, desempenhou um papel crucial na Europa em meados do século passado e que, presumivelmente, morreu suicidado em Berlim, em 30 de Abril de 1945. Esse é o Grande Ausente.


quinta-feira, 7 de maio de 2015

O INCONSCIENTE DO ISLÃO




O antropólogo e filósofo argelino Malek Chebel, autor de vasta e notável obra, acabou de publicar um pequeno volume, Linconscient de l'islam, onde denuncia as derivas do mundo arabo-muçulmano actual.

Começa o consagrado ensaísta por referir que a terra do islão é simultaneamente uma terra de paz (dar as-salam) e uma terra de guerra (dar al-harb), que numa tradução mais literal seria "casa da paz" e "casa da guerra". O que conduz directamente à guerra santa, desencadeada sucessivamente pelos califas das diversas dinastias e pelos sultões otomanos, até à queda do califado em 1924. Noto um lapso de Chebel na primeira página: refere o autor a queda do califado em 1923, mas essa foi a data da proclamação da república turca; o califado só foi abolido em 1924.

Sustenta Chebel que essa guerra "permanente" não tinha por fim apenas a islamização do mundo pagão, mas igualmente a satisfação de um desejo de poder e de um desejo sexual.«...seule la première génération de califes, celle d'Umar, d'Uthman et d'Ali ne semble pas avoir eu recours à ce moyen inattendu pour enrichir ses harems.» Continuando o seu raciocínio, Chebel afirma: «Les objectifs de la conversion à l'islam, pour vertueux qu'aient pu être naguère ses prédicats, se sont progressivement vidés de leur sens religieux. Aussi le projet spirituel initial s'est-il transformé en un simple festin céleste, avec ses récompenses ici-bas, ses objectifs de nombre et d'amélioration du pedigree de la classe au pouvoir.»

O livro compõe-se de cinco capítulos: La guerre pour les femmes; Idéologies du kamikaze ordinaire; Du Ma(n)ternel; Livres interdits et autodafé; Imolation ou sacrifice.

 No primeiro capítulo, especialmente dedicado às mulheres, o autor entende que para compreender a génese da guerra santa (jihad) há que recuar à organização elementar do harém, com o seu código endógeno, a sua violência simbólica e o seu mimetismo. O harém, apartamento exclusivo reservado às mulheres, opõe-se ao serralho, o palácio do sultão (na Turquia antiga), ainda que, por ficar integrado no espaço residencial soberano, tenha dado lugar a interpretações incorrectas ao longo da história, como é o caso do título da ópera de Mozart, O Rapto do Serralho. A palavra harém só entrou no dicionário francês em meados do século XIX. Segundo Chebel, o harém, instituição árabe, turca e persa, continua, sem a esgotar, a ideia do gineceu que os gregos desenvolveram no passado. O autor considera que o harém pode ser definido de diferentes maneiras: a dimensão histórica, a dimensão romântica, a regra do equilíbrio, a regra do desejo, a dimensão política, a dimensão demográfica, a regra do desvio. Não cabe neste espaço especificar estas noções.

Segundo o Corão, a poligamia da Jahiliyyah, a época pré-islâmica, ficou reduzida a uma tetragamia, ainda que a possibilidade de quatro esposas legais não exclua, naturalmente, a existência de concubinas. Não é referida neste livro a existência no serralho de muitos rapazes, especialmente cativos de guerra, para serviço íntimo dos soberanos e altos dignitários, mas Chebel alude ao facto em outros volumes da sua vasta obra. Os janízaros (yeniçeri = nova força), corpo de elite otomano, que eram adolescentes cristãos raptados às suas famílias, antes de integrarem o exército na idade adulta, serviam também para a satisfação dos desejos dos seus senhores. Mas este capítulo, o mais longo do livro e que prepara o capítulo seguinte, trata especialmente das mulheres. E do poder que elas detiveram no mundo arabo-muçulmano, especialmente na Sublime Porta, como favoritas e mães de sultões (sultanas Valide), sem esquecer que o harém não era um compartimento tão estanque que não permitisse, em condições especiais, a entrada de terceiros, donde o elevado número de gravidezes impossíveis de esconder. Roxelane, mulher de Solimão, o Magnífico, exerceu uma influência notória, a ponto de mandar matar o favorito e grão-vizir do marido, Ibrahim Pasha, e o próprio filho mais velho (de uma outra esposa) de Solimão para garantir a sucessão do seu próprio terceiro filho (Selim II). Deste Selim II, chamado "o Bêbado", se diz que procedeu à conquista de Chipre não para dilatar a fé mas por causa do bom vinho da ilha.

Com o advento da modernidade o harém foi perdendo a sua importância tornando-se residual. Quando Abdul Hamid II, o último sultão otomano a exercer os seus poderes autocráticos, foi deposto em 1909 pela Revolução dos Jovens Turcos, tinha apenas no seu harém seis mulheres e duas escravas negras, ao contrário das dezenas que lhe eram atribuídas pela vulgata.

O segundo capítulo, muito breve, trata do kamikaze vulgar. A ideia do kamikaze (vento divino), divulgada aquando dos ataques suicidas dos aviadores japoneses na Segunda Guerra Mundial, é contrária tanto ao Decálogo como ao Corão, que recusa o suicídio como solução final e priva de sepultura os que, evitando a fogueira dos homens, se encontrarão inevitavelmente na Gehena. Afirma Chebel que foi necessário o 11 de Setembro para realizarmos a lógica assassina de que se alimenta o kamikaze. Julgo que os jovens-bomba palestinianos já nos haviam interpelado muito antes na sua luta por um Estado nacional. Séneca e Plutarco defenderam o suicídio mas a maioria dos filósofos opôs-se-lhe. O autor refere que, segundo Albert Camus, existe um laço directo entre o nihilismo e o crime: «Celui qui nie tout et s'autorise à tuer, Sade, le dandy meutrier, l'Unique impitoyable, Karamazov, les zélateurs du brigand déchaîné, le surréaliste qui tire dans la foule, revendiquent en somme la libérté totale, le déploiement sans limites de l'orgueil humain.» (L'Homme révolté). Noto que a citação no livro do período de Camus foi transcrita com imprecisão. Por isso consultei o original e apresentei a versão exacta do escritor francês.

A interpretação do Corão que os djihadistas invocam para os ataques suicidas fundamenta-se no versículo 154 da Sura II, mas o contexto actual é profundamente distinto do que existia no começo da islamização, além do que um muçulmano não pode matar outros muçulmanos, conceito hoje olimpicamente ignorado.

O terceiro capítulo debruça-se sobre a relação mãe/filho masculino. É um dos grandes temas, quase sempre tabu, da civilização islâmica. Escreve Chebel: «Le ma(n)ternel est le nom que je donne à un processus d'introjection symbolique, ou de "dévoration", de l'enfant mâle par sa propre mère pour que celle-ci puisse se construire par son truchement et trouve sa place de mère dans le rhizome familial. Le "n" de manternel symbolise le sentiment éprouvé par la mère qui fonctionne comme une "mante religieuse", au lieu d'adopter un sentiment maternel ordinaire.»

Nesta relação, Chebel refere os estudos que analisaram a passagem da cultura árabe entre a Jahiliyyah e o islão, entre o paganismo beduíno e o monoteísmo árabe, uma mutação que foi sentida como um sismo, provocando grane número de resistências.

Uma passagem: «Dans la mesure où la femme arabe ou musulmane ne peut exister en tant qu'individu que lorsqu'elle a mis au monde des enfants mâles et que ces mêmes enfants ont à leur tour enfanter d'autres enfants mâles, il apparaît évident que la relation mère-enfant s'inverse au fil du temps, pour devenir une relation enfant-mère.»

Ou: «La "manternalisation" est un type de consommation symbolique de la mère à l'égard de son enfant, voire dans certains cas - toujours symboliques -, le mimétisme d'une relation anthropologique à une échelle plus large, héréditaire. Précisons ici que le tabou de l'inceste n'en est pas moins posé.»

O capítulo quarto fala-nos do "inferno das bibliotecas árabes", na medida em que o Corão é o único livro que vale a pena ser chamado livro. É referida a fatwa lançada pelo ayatollah Khomeiny em 1989 a propósito de Os Versículos Satânicos, de Salman Rushdie. Escreve o autor: «Ce qui dérange le plus dans la question des versets sataniques tient à un bout de phrase, qui aurait été dicté par Satan au Prophète et que le Coran avait formulé une premiére fois de cette manière, avant de l'abroger aussitôt: "Avez-vous considéré Al-Lat, Al-'Uzza et Manat, cette troisième (idole)? Ce sont de 'sublimes déesses' et leur intercession est certes souhaitée"» (Corão, LIII, 19-21). E segue-se toda uma explicação, aliás exaustivamente tratada à época da "excomunhão" do livro.

Mesmo nos nossos dias, e sem a virulência de Khomeiny, o Ministério da Informação e o Ministério dos Assuntos Religiosos e dos Waqfs argelinos, organizadores do Salão Internacional do Livro de Argel, em 2007, impediram, sem o mínimo pretexto,  a venda dos livros de Abû-l-'Ala al-Ma'arri, o célebre poeta cego da Síria, individualista, agnóstico e vegetariano (m. 1057).

«Les livres suspectés de déviationnisme ne portent pas forcément sur le religieux. La politique est aussi l'une des  causes de friction, sans compter que l'État s'en mêle assez fréquemment... Après la religon, et la politique, la sexualité constitue la troisième mauvaise veine qui exaspère les censeurs et les moralistes.» Chebel refere também Al-Jâhiz e os mutazilitas, Al-Mutanabbi, um dos maiores poetas árabes, assassinado em 965, Abu Nawas e Omar Khayyam. Averróis (Ibn Rushd), o célebre "comentador" de Aristóteles, acabou a vida desterrado, e se pior não lhe aconteceu tal deveu-se à protecção dos califas almohadas. Mahmud Muhammad Taha e Farag Foda, ambos do século XX, morreram assassinados. O próprio Taha Hussein (1889-1973), o grande escritor cego egípcio, considerado o decano da literatura árabe, foi perseguido pelos académicos de Al-Azhar, e não fora o seu imenso prestígio, teria sofrido as consequências da sua independência de espírito.

Tudo isto, sem esquecer As Mil e Uma Noites,  o livro "mais obsceno" alguma vez escrito, aos olhos de alguns moralistas hipócritas e impostores, e cuja introdução no Ocidente se deve a Antoine Galland (1646-1715), que redescobriu esses contos maravilhosos e os traduziu do árabe para francês. Há alguns anos, uma associação egípcia, Advogados sem Fronteiras, tentou interditar a sua publicação, reclamando-se do artigo 178 do antiquíssimo Código Penal Egípcio, felizmente sem êxito. Quem, no mundo, não conhece Sheherazade, Sindbad, o marinheiro, Zumurud (que serviu de fio condutor do filme homónimo de Pasolini), Aladino e a lâmpada maravilhosa, Ali Baba e os quarenta ladrões?

Conclui Chebel: «Il faut opérer une séparation étanche entre le pouvoir temporel et le pouvoir intemporel, renvoyer la religion et les religieux dans leurs mosquées, et réévaluer le rôle du politique et de ses prérrogatives.» Vasto programa, certamente difícil de executar.

O quinto e último capítulo trata da imolação ou sacrifício, evocando a imolação pelo fogo, em 2011, do vendedor ambulante tunisino Mohammed Bouazizi, que Chebel trata de "diplômé", versão então largamente difundida mas que não corresponde à verdade. Este suicídio, que pôs fim ao regime de Ben Ali, foi objecto de vasta propaganda mas nunca se esclareceram, exactamente, como normalmente acontece neste género de situações, as circunstâncias precisas em que ocorreu o caso.

Lembra Chebel que o islão proíbe o suicídio (Corão, IV, 29-30), embora existam versículos passíveis de interpretações distintas, como referimos acima. Neste capítulo trata o autor, ainda que de forma assaz confusa, pois coexistem as versões do Génesis e do Corão, do sacrifício exigido a Abrahão de seu filho Isaac ou Ismaïl, conforme o cristianismo ou o islão. E também dos sacrifícios animais e das suas proibições.

Conclui Malek Chebel: «Cet opus sur L'inconscient de l'islam est une page ouverte sur tous les artefacts, les strates et les éléments psychiques qui restent inexplorés, car soumis au tabou implacable d'un certain islam, que le Coran semble résumer par cette image: "sourds, muets, aveugles" (summûn, bûkmûn, 'ûmyûn) (II,18). «Le Prophète n'a-t-il pas dit dans un hadith qûdsi, c'est-à-dire inspiré par Dieu: "Allah a voulu se faire connaître, il a créé le monde pour que l'homme, saisi de sa Sublime Beauté, puisse le vénérer à sa guise.»

«Ici s'achèvent ces réflexions sur l'interdit, la faute et la transgression en islam.»


Ainda que constituindo uma abordagem importante sobre alguns dos temas mais delicados do islão, parece-me que Malek Chebel não foi tão cuidadoso no tratamento dos assuntos desenvolvidos neste livro, ao contrário do que se verifica nas suas obras anteriores, a cuja precisão estamos habituados, sendo algumas delas indispensáveis a qualquer islamólogo. Mas regista-se a intenção, que se saúda.

terça-feira, 5 de maio de 2015

A IMPOSTURA DA MARCHA "JE SUIS CHARLIE"




O número desta semana do "Obs" (2634) publica uma entrevista com o historiador, sociólogo e antropólogo francês Emmanuel Todd, a propósito da edição colocada hoje à venda do seu livro Qui est Charlie?. Nesta entrevista, Todd denuncia a colossal impostura que constituiu a manifestação de 11 de Janeiro passado, na sequência do atentado contra a sede da revista Charlie Hebdo.


Trata-se de um requisitório impiedoso contra uma França mergulhada na boa consciência (a França de François Hollande), uma França inigualitária e autoritária, em secessão total com o o seu povo.

A frontalidade e a lucidez das declarações de Emmanuel Todd, cuja vasta e notável obra responde pelo nível intelectual do autor, obriga à leitura do texto que abaixo se apresenta:

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Salientamos algumas passagens::

«Lorsqu'on se réunit à 4 millions pour dire que caricaturer la religion des autres est un droit absolu - et même un devoir! -, et lorsque ces autres sont les plus faibles de la société, on est parfaitement libre de penser qu'on est dans le bien, dans le droit, qu'on est un grand pays formidable.»

«En gros, la France qui est aux commandes, c'est la France qui a été antidreyfusarde, catholique, vichyste.»

«Il faut voir les choses en face: l'agent le plus actif et le plus stable des politiques économiques qui nous ont mené au chômage de masse actuel, c'est tout de même le PS.»

«Le niveau de bonne conscience de ce pays est devenu littéralement insupportable.»

«Or la réalité de la société française aujourd'hui, c'est quoi? Une société dominée par des classes moyennes qui ne croient plus à rien, qui ne savent plus où elles vont, qui se sont seulement lancées dans la construction d'un euro qui ne mène nulle part.»

«(Je plaide) qu'on en finisse avec cette nouvelle religion démente que j'appelle le "laicisme radical", et qui est pour moi la vraie menace.»


PARA MEMÓRIA PASSADA, PRESENTE E FUTURA.

domingo, 3 de maio de 2015

OS PERVERSOS




O número (555) deste mês de Maio do "Magazine Littéraire" consagra o seu dossier mensal aos Perversos. Tema interessante, estimulante e de grande oportunidade para Portugal.

Está fora de causa proceder aqui a um resumo dos artigos publicados, quer pela sua extensão, quer pela sua complexidade. Os interessados poderão adquirir a revista. Mas importa, pelo menos, sublinhar a referência à evolução e às interpretações do conceito, à flutuação das definições médicas e jurídicas e, last but not least, às abordagens científicas, artísticas e literárias. Existem alguns nomes incontornáveis: Richard von Kraft-Ebing, Jean-Martin Charcot, Sigmund Freud, Alfred Binet, Alexandre Lacassagne, Magnus Hirschfeld, Henry Havelock Ellis, Alain Robbe-Grillet, Alfred Hitchcock, Alain Resnais, Stanley Kubrick, Lars von Trier, Michael Haneke, Fiódor Dostoiévski, Vladimir Nabokov, Georges Bataille, Jean Genet, Michel Foucault, sem esquecer o Marquês de Sade ou Gilles de Rais, recuando um pouco.

O artigo de Julie Mazaleigue-Labaste, "Circonscrire l'incontrôlable: l'invention de la perversion" é suficientemente esclarecedor.

O conjunto de textos, escritos por especialistas na matéria, que constituem esta publicação constitui um esforço notório para o esclarecimento de assunto de tão relevante importância.

Eu sei que não se pode exigir muito aos nossos políticos tendo em conta as suas limitações intelectuais, mas seria bom que - pelo menos os que ainda conseguem ler em francês - se debruçassem com um mínimo de atenção sobre este dossier antes de plasmarem a sua ignorância em diplomas sobre matérias que afectam o Estado de Direito.