sábado, 3 de janeiro de 2015

A EUROPA À DERIVA





 Pedro Bacelar de Vasconcelos no "Jornal de Notícias":


«Não há imagem mais dolorosa e eloquente do estado atual da Europa, do que esse navio sob a bandeira da Moldávia, com um milhar de refugiados sírios e curdos a bordo, abandonado pela tripulação e deixado à deriva no Mediterrâneo, algures, entre a Grécia e a Itália. É o retrato infeliz de uma Europa sem rumo, que se tem mostrado incapaz de definir uma estratégia comum quer na política internacional e nas relações com os seus vizinhos quer na gestão doméstica da grave crise económica e financeira que penalizou cruelmente os países do Sul, que agrava continuamente o peso das "dívidas soberanas" e pode vir a ameaçar a própria sobrevivência da União, caso não mudem as políticas cujo falhanço se torna cada dia mais evidente. A manipulação do medo e da incerteza, na Grécia como em Portugal, Espanha ou Itália, não conseguem esconder o fracasso das receitas que, em doses variadas, foram aplicadas.

No passado, a Europa e o Ocidente pretenderam demonstrar ao Mundo a superioridade dos seus valores civilizacionais como sendo parte da sua prosperidade. Agora, em nome da uma prosperidade cada vez mais desigualmente repartida, prega-se a desregulação económica mundial, a submissão dos mais fracos, a subversão do direito e promove-se por meios ideológicos e financeiros o regresso barbárie.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas rejeitou uma proposta de resolução submetida pela Jordânia que visava impor um prazo de três anos para Israel retirar as suas tropas dos territórios ocupados da Palestina e reabrir negociações internacionais dentro de um ano, para construir uma paz duradoura entre os dois estados e garantir a segurança dos seus cidadãos. A proposta de resolução mereceu o voto favorável da França, a abstenção da Inglaterra e a oposição dos Estados Unidos da América e da Austrália. Na sequência de mais este fracasso, Mamoud Abbas, presidente da Autoridade Palestiniana, iria assinar em Ramallah, na passada quarta-feira, um pedido de adesão ao Tribunal Penal Internacional, a instância judicial permanente criada pela Convenção Diplomática de Roma, em 1998, para investigar e julgar os crimes contra a humanidade.

Com esta iniciativa, a Palestina adquire legitimidade para submeter à apreciação do Tribunal Internacional o massacre de milhares de civis vitimados pela ofensiva das forças armadas israelitas em território palestiniano, no verão passado. Evidentemente, por força da adesão, também a própria Autoridade Palestiniana ficará sob a jurisdição do Tribunal e pode ser julgada por crimes contra a humanidade de que seja acusada. Não é, por isso, fácil explicar que os EUA e Israel tenham vindo de imediato condenar esta iniciativa palestiniana como um ato "unilateral" e "provocatório", sendo certo que a generalidade dos países europeus ratificou esse mesmo tratado e que até o presidente Bill Clinton o chegou também a assinar, ainda que o seu sucessor, George W. Bush, tenha depois recusado ratifica-lo. O Mediterrâneo, onde se deixou afundar a Primavera Árabe e se permitiu que a Crimeia ressuscitasse os fantasmas da "Guerra Fria", é bem o espelho da desorientação reinante na Europa e no Mundo.

Em entrevista concedida a Teresa de Sousa, no jornal "Público, António Guterres traçou um diagnóstico lúcido e corajoso da atual desordem mundial. Para fazer face à maior crise humanitária vivida desde a Segunda Guerra Mundial, o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados não se debate apenas com a insuficiência crónica dos recursos disponibilizados para acorrer a todas as emergências que assolam populações inteiras em fuga dos confrontos armados no Sudão, na Líbia, na Síria, no Iraque ou na Palestina, e que multiplicam por milhões o número de refugiados carecidos de proteção e acolhimento na África e no Médio Oriente. Aponta sobretudo para a "desgovernação" do Mundo, para a debilidade de uma vontade política minada pelos nacionalismos, pelos egoísmos, pela mesquinhez. A propósito de Barak Obama, afirma que "acabou por ser vítima não da incapacidade de responder aos desafios do futuro, mas da vingança dos problemas do passado". Também a Europa precisa de esconjurar os seus fantasmas!»


Ainda recentemente nos referimos, neste blogue, e por várias vezes, à Europa. Na situação actual, nunca é demais.


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