quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O HORROR DA SOBREMODERNIDADE



O antropólogo e etnólogo francês Marc Augé (n. 1935) é um dos mais importantes teóricos da sobremodernidade. Doutor em Letras e Ciências Humanas, Marc Augé foi presidente da École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHASS), de Paris, onde sucedeu a Fernand Braudel, Jacques le Goff e François Furet.

Dirigiu numerosas investigações na África Negra e na América do Sul e é autor de cerca de 30 livros e inúmeros artigos em publicações diversas sobre antropologia e etnologia.

Um dos seus livros mais importantes, Non-Lieux: Introduction à une anthropologie de la surmodernité (1992), cuja tradução portuguesa aqui se comenta, é uma obra de referência para o estudo da modenidade, da sobremodernidade, da pós-modernidade e daquilo a que Hartmut Rosa (a que nos referimos noutro local)  chama modernidade tardia.

Não é fácil discorrer sobre a centena de páginas de Não-Lugares.Tentemos uma aproximação. E recordemos, porque importa que "non-lieux" é, em francês, a designação jurídica que designa a não-pronúncia; isto é, a decisão que significa não haver um procedimento judicial

Citamos o autor, a partir da superabundância espacial do presente, expressa em mudanças de escala. na multiplicidade das referências imagéticas e imaginárias e nas acelerações espectaculares dos  meios de transporte: «Atinge, concretamente, alterações físicas consideráveis: concentrações urbanas, transferências de população e a multiplicação do que nós chamaremos "não-lugares", por oposição à noção sociológica de lugar, associada por Mauss e toda uma tradição etnológica à de cultura localizada no tempo e no espaço. Os não-lugares tanto podem ser instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias rápidas, viadutos, aeroportos) como os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são colocados os refugiados do planeta.».

Marc Augé define a "sobremodernidade", em oposição à "modernidade",  por três características:

- a "superabundância de acontecimentos": «Para um certo número de intelectuais de hoje, o tempo deixou de constituir um princípio de inteligibilidade. A ideia de progresso, que implicava que o depois era explicável em função do antes, afundou-se, nos recifes do século XX, com o fim das esperanças ou ilusões que tinham acompanhado a travessia do século XIX. Este questionamento refere-se, na realidade, a várias constatações distintas umas das outras: as atrocidades das guerras mundiais, dos totalitarismos e das políticas de genocídio que, é o mínimo que se pode dizer, não abonam em favor de um progresso moral da humanidade; o fim das grandes narrativas, ou seja, dos grandes sistemas de interpretação que pretendiam dar conta da evolução do conjunto da humanidade e não o conseguiram, ao mesmo tempo que os sistemas políticos que se inspiravam oficialmente nalguns deles, se desviaram ou desapareceram.». É a própria superabundância (num planeta cada dia mais pequeno) que coloca problemas ao historiador da contemporaneidade. «A "aceleração" da história corresponde, de facto, a uma multiplicação de acontecimentos, na maioria dos casos não previstos pelos economistas, os historiadores ou os sociólogos.». «Há uma necessidade de dar um sentido ao presente, para já não falar do passado, e ela é o preço da superabundância de acontecimentos que corresponde à situação que podemos designar de "sobremodernidade" a fim de dar conta da sua modalidade essencial: o excesso.». «O prolongamento da expectativa de vida, a passagem à coexistência habitual de quatro e já não três gerações, arrastam progressivas mudanças práticas na ordem da vida social.». «Pode-se dizer que a sobremodernidade é a face de uma moeda de que a pós-modernidade nos apresenta apenas o reverso - o positivo de um negativo.». «É da nossa exigência em compreender todo o presente que decorre a dificuldade em atribuir um sentido ao passado próximo; a procura positiva de um sentido (de que o ideal democrático é, sem dúvida, um aspecto essencial), que se manifesta nos indivíduos das sociedades contemporâneas, pode, paradoxalmente, explicar os fenómenos que, por vezes, são interpretados como indícios de uma crise do sentido e, por exemplo, as desilusões de todos os desiludidos da terra: desiludidos do socialismo, desiludidos do liberalismo, e, muito em breve, desiludidos do pós-comunismo.».

- a "superabundância espacial": «Sobre o excesso de espaço, poderíamos dizer, em primeiro lugar e, também aqui, um pouco paradoxalmente, que ele é correlativo do estreitamento do planeta: dessa distância de nós a nós mesmos a que correspondem as performances dos cosmonautas e a ronda dos nossos satélites.». «Estamos na era da mudança de escala, no que respeita à conquista espacial, certamente, mas também na terra: os meios de transporte rápidos põem qualquer capital a umas horas apenas de qualquer outra. Na intimidade das nossas casas, por fim, toda a espécie de imagens, retransmitidas pelos satélites, captadas pelas antenas que se erguem nos telhados da aldeia mais remota, podem dar-nos uma visão instantânea e, por vezes, simultânea, de um acontecimento que se está a produzir no outro extremo do planeta.».

- a "individualização das referências":  «É a figura do ego, do indivíduo, que reaparece na própria reflexão antropológica pois, à falta de novos terrenos, num universo sem territórios, e de chama teórica, num mundo sem grandes narrativas, os etnólogos, certos etnólogos, depois de terem tentado tratar as culturas (as culturas localizadas, à Mauss) como textos, acabaram por se interessar apenas pela descrição etnográfica enquanto texto - enquanto expressão do seu autor, naturalmente, de forma que, a acreditar em James Clifford, os Nuer ensinar-nos-iam mais sobre Evans-Pritchard que este sobre aqueles.».

Resumindo: «As três figuras do excesso por intermédio das quais procurámos caracterizar a situação de sobremodernidade (a superabundância de acontecimentos, a superabundância espacial e a individualização das referências) possibilitam a sua apreensão, sem ignorar as suas complexidades e contradições, mas também sem a transformar no horizonte inatingível de uma modernidade perdida da qual não nos restaria mais do que salientar os vestígios, registar as ilhas que subsistem ou inventariar os arquivos.».

Ainda sobre "lugares" e "não-lugares":

«Se um lugar pode definir-se como identitário, relacional e histórico, um espaço que não possa definir-se nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá um não-lugar. A hipótese aqui defendida é a de que a sobremodernidade produz não lugares, ou seja, espaços que em si mesmos não constituem lugares antropológicos e que, ao contrário da modernidade baudelairiana, não integram os lugares antigos: inventariados, classificados e promovidos a "lugares da memória" estes ocupam naquela um lugar circunscrito e específico. Um mundo onde se nasce na clínica e morre no hospital, onde se multiplicam, em modalidades luxuosas ou inumanas, os locais de trânsito e as ocupações provisórias (as cadeias de hotéis e os squats (1), os clubes de férias, os campos de refugiados, os bairros da lata votados à destruição ou à perenidade e à degradação), onde se desenvolve uma rede compacta de meios de transporte que são, também, espaços habitados, onde o utente habitual dos grandes centros, dos multibancos e dos cartões de crédito recria, com os gestos do comércio "na linguagem dos mudos", um mundo votada à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efémero, oferece ao antropólogo, e aos outros, um objecto novo cujas dimensões inéditas há que medir, antes de perguntar de que olhar será passível.».

Muito mais haveria a dizer sobre este pequeno livro de Marc Augé, em cujo texto vem tudo muito bem explicado. E poderíamos fazer outras citações lapidares. E assinalar outros aspectos que transformam num horror quotidiano a vida dos cidadãos. Mas os interessados nestas matérias podem ler o livro, de que existe até esta tradução portuguesa.



(1) Casas devolutas ocupadas por grupos de jovens.

Sem comentários: