sábado, 15 de dezembro de 2012

ENTRE SOCIALISMO E FASCISMO



Quando, a semana passada, procurava um livro numa estante, por entre montes de obras, caiu-me literalmente em cima o Gilles, de Pierre Drieu La Rochelle, cuja tradução portuguesa comprara em 1994, aquando da sua publicação, e que, pela habitual falta de tempo, não chegara a ler. Porque o autor foi uma controversa figura da vida política e cultural francesa, era agora  tempo de fazê-lo.

Nasceu Drieu La Rochelle em Paris em 1893, cidade em que viria a suicidar-se em 1945. Romancista, ensaísta e jornalista, Drieu é, com Céline e Brasillach, um dos três grandes escritores que, durante a Segunda Guerra Mundial, se solidarizaram com o regime de Vichy e com a ocupação alemã, embora cada um a seu modo. Céline, um dos maiores nomes da literatura francesa do século XX, acabou amnistiado, embora votado à indignidade nacional, Brasillach, não tendo conseguido a graça do general De Gaulle, foi fuzilado em 1945 e Drieu tê-lo-ia sido certamente, não fora ter recorrido ao suicídio, apesar de lhe terem facilitado a fuga.

A trajectória de Drieu La Rochelle é sinuosa, como, aliás, a de muitos, ou quase todos os grandes homens. Frequentando os mais distintos círculos intelectuais franceses, amigo de Aragon (a quem inspirou o protagonista do romance Aurélien), de Mauriac e de Malraux, combatente na Primeira Guerra Mundial, onde foi ferido, cultivou ideias republicanas e progressistas, manifestou-se contra o racismo e denunciou o anti-semitismo e o fascismo, sempre guiado pelos ideais socialistas, que triunfavam na França da época e pretendiam constituir uma barreira ao comunismo. Isto, até 1934, quando se declarou, após uma viagem à Alemanha, simultaneamente "socialista" e "fascista" e publicou Socialisme fasciste. Durante a ocupação, assumiu, além do anti-semitismo, a direcção da prestigiadíssima "Nouvelle Revue Française" (NRF) e defendeu a colaboração com a Alemanha, na perspectiva de uma internacional fascista. Numa última provocação, aderiu ao Partido Popular Francês, de Jacques Doriot, e confiou aos seus escritos íntimos a sua admiração pelo estalinismo. Recusou a fuga, que lhe era proposta por amigos, como Malraux, e optou por pôr termo à vida.

A sua obra literária é vasta e Gilles é o seu maior (mesmo em tamanho, mais de 600 páginas) romance. Demasiado extenso, já que o plot poderia restringir-se, supomos, a metade das folhas, sem perder nada daquilo que o autor pretende transmitir. A época situa-se entre as duas guerras mundiais, tendo o livro sido publicado com cortes em 1939, e depois, em versão integral, em 1942. De certa forma, Gilles, o protagonista do romance Gilles, é um alter-ego de Drieu la Rochelle. De boa presença, Gilles torna-se um alvo apetecível das mulheres (Drieu também era un dandy) e entre casamentos, aventuras e desventuras, os seus amores são geralmente todos mal sucedidos, porque Gilles tem uma obsessão de conquistar mulheres mas depois aborrece-se e larga-as (diríamos que é um pouco como Don Juan, a quem só interessa a conquista - com uma lista comparável ao "catálogo" que Leporello mostra a Donna Elvira, no Don Giovanni, de Mozart). Existem, de facto, demasiadas mulheres neste livro, e o seu número em nada contribui para a economia da obra. Há quem argumente que uma tão prolixa inclusão se deverá ao facto de Drieu (sobre quem recaíam algumas suspeitas de homossexualidade) procurar um efeito de despistagem com tantos casos amorosos pormenorizadamente descritos.  É sabido que os homens que falam sistematicamente em mulheres e conquistas no feminino são em geral aqueles que pretendem ocultar a sua homofilia mental ou mesmo praticante. Raramente conseguem enganar o próximo.

Mas o leit-motiv da obra é a decadência da França. Ao longo da ficção, estão espelhados episódios reais, muitas vezes sob nomes de empréstimo. E é evidente a vontade de Drieu de que a história seguisse determinado caminho, embora não seja evidente qual, tal como o próprio Drieu hesitou e mudou várias vezes o seu percurso político. Há umas ténues referências que um judeu fundamentalista poderia tomar como anti-semitas, não mais do que isso, mas nem sequer o livro faz uma apologia do fascismo, salvo na última parte, em que Gilles se encontra em Barcelona, ao serviço das forças que apoiam Franco. A xenofobia também é irrelevante, mas os imigrantes de então eram mais do Leste do que do Norte de África e a independência da Argélia e a vaga magrebina ainda estavam distantes.

Curiosamente, ao longo das 600 páginas, tecem-se muitas considerações perfeitamente aplicáveis ao nosso tempo. E já lá vai mais de meio-século. Não tanto porque Drieu pudesse prever o destino mas porque as coisas são o que são. A "grandeza" da França, que De Gaulle não se cansava de evocar, e a centralidade do Santo Império Romano-Germânico, que custou uma guerra a Guilherme II e outra a Adolf Hitler, são realidades que permanecem em confronto e não há União Europeia que lhes valha. Depois, o resto da Europa são trocos, um pouco mais volumosos no caso da Espanha e da Itália (ambas a caminho de uma eventual desagregação). O Reino Unido só entra parcialmente nestas contas, mais ligado aos EUA do que ao Velho Continente, e a Rússia oscila entre a Europa e a Ásia.

Antes de Jean Monnet e Robert Schumann, também Drieu pensou numa Federação Europeia, mas com a predominância da Alemanha e da França. E sem o empecilho da "democracia", que, segundo o autor, foi a tragédia da III República. Daí, a eventual admiração final por Estaline, que só poderá surpreender os mais incautos.

Mesmo assim, parece mais sério alguém assumir claramente uma opção soi-disant totalitária do que defender denodadamente um regime supostamente democrático (porque formalmente o é),  mas que ignora e atropela as mais elementares regras da democracia.

Muitas das figuras  de políticos que Drieu caracteriza no seu livro (tal como o nosso Eça de Queiroz umas décadas antes) podem ver-se hoje nos corredores do poder seja em Portugal, na Europa ou no Mundo. Nesse aspecto, nada mudou.

À guisa de conclusão, poderia dizer que Gilles é um livro interessante mas não indispensável, e sendo considerado por muitos o opus magnum do autor, igualmente considerado um dos grandes romancistas franceses da época, não lhe vislumbro foros de grandeza, mas talvez por defeito meu. E como, confesso-o, não li as outras obras de Drieu La Rochelle, não posso estabelecer comparações.

1 comentário:

Zephyrus disse...

«É sabido que os homens que falam sistematicamente em mulheres e conquistas no feminino são em geral aqueles que pretendem ocultar a sua homofilia mental ou mesmo praticante. Raramente conseguem enganar o próximo.»

Nem mais. E ainda há uns meses saiu um estudo que descreve a relação entre homofobia e homossexualidade recalcada.