terça-feira, 3 de julho de 2012

PIER PAOLO PASOLINI E O FUTEBOL



Pelo seu comprovado interesse, transcreve-se, com a devida vénia, o artigo de Rui Miguel Tovar, hoje publicado no jornal "i":

Finito. O Euro-2012 já não mora mais aqui. Em Varsóvia, na Polónia. O Alemanha-Itália de quinta-feira é o último acto futebolístico na capital polaca. Não quer isso dizer que a abandonemos assim de repente, num estalar de dedos. Não, nós não. Ficamos aqui mais uns dias até à final de Kiev e aproveitamos para conhecer a Cidade Velha, um pedaço encantador de arquitectura e ruas serpenteadas, longe das bolas gigantes de futebol nas rotundas e das cores aberrantes das selecções do Euro nas paredes dos hotéis. Aqui respira-se História.

Quando entramos na imponente Avenida Tokarzewskiego Karaszewicza, há um pequeno jardim. À esquerda, uma exposição fotográfica sobre Varsóvia de meados do século XIX. À direita, uma outra exposição fotográfica, esta sobre o futebol em Varsóvia no início do século XX. No meio, a separar os caminhos e as fotografias, um quadrado gigante de ferro preso ao chão com a bandeira de Portugal. Damos a volta ao quadrado e só dá Portugal: cachecóis, fitas para o cabelo, bandeirinhas e papelinhos. Só jogámos uma vez em Varsóvia (1-0 à República Checa para os quartos-de-final) e marcámos território.

Ainda estamos surpreendidos com esta situação quando ouvimos Portogallo lá ao longe. São três italianos sentados numa esplanada. Olhamos para eles, sorrimos de forma simpática na esperança de selar um acordo “calem-se para continuarmos a andar sem sermos perseguidos pelos olhares de dezenas, centenas de turistas” e saímos de cena. Em direcção a um beco sem saída. Temos de voltar para trás e continuamos a ouvi-los gritar Portogallo. Eles já sabiam da marcha-atrás e só há uma saída: ir ter com eles. À medida que nos aproximamos debaixo de um calor abrasador, eles insistem no Portogallo. Cada vez mais alto. Quando nos sentamos à mesa, calam-se. Finalmente. Okay, chegámos e agora querem o quê? Fare il portoghese, e riem-se controladamente. O quê?

Lição número um: “Na Roma do século XVIII, o embaixador de Portugal convida os seus compatriotas residentes na capital para assistirem a uma peça no Teatro Argentina. À porta, os convidados só têm de dizer a sua nacionalidade e não lhes é pedido qualquer contrapartida financeira. Aproveitando-se dessa situação, alguns (muitos) romanos passam-se por portugueses e vêem o teatro à borla.” Ahhhh agora sim, click, esta história já nos passara pelas mãos, através de um amigo luso-brasileiro durante um Fiorentina-Benfica de 1997.

Lá estamos nós a falar de futebol. Estes adeptos não são desses. Aliás, são italianos muito especiais. Primeiro, não falam com as mãos nem com os ombros, limitam-se a abrir a boca e debitar palavras – assim também nós, ah. Depois não querem saber de Cassano nem de Balotelli. Nem de Buffon ou de Pirlo. Ma ché cosa? Para terminar, as suas camisolas não são do azul desta Itália, os números não são os desta Itália e os nomes também não. À nossa esquerda, com o número 9 a ocupar toda a t-shirt, Pasolini. À nossa direita, com o chapéu do JR do Dallas, Pier. À nossa frente, com um canivete a tentar fazer um buraco no frasco artesanal do sal, Paolo. Devidamente alinhados, eles são um só: Pier Paolo Pasolini. Quem?

Lição número dois: “Pier Paolo Pasolini, um dos maiores artistas intelectuais italianos do século XX. Poeta, romancista, dramaturgo, cineasta, linguísta e jornalista.” Ahhh jornalista, então é cá dos nossos. Segue-se o pingue-pongue de rotina. Jornalismo escrito, televisivo ou radiofónico? Lisbona, Oporto, Coimbra ou Sagres? Política, economia, sociedade ou desporto? Quando a resposta é sport, Pier Paolo Pasolini falam entre si. Continuam a falar. Pier mete a mão no meu ombro como que a dizer “calma aí, já serás atendido”, Paolo consegue finalmente fazer um furo no frasco artesanal de sal que-afinal-é-de-pimenta e Pasolini baixa-se ligeiramente para nos emprestar um livro. Será o momento do fare il portoghese?

Lição número três: não te rias quando os outros estão sérios. Abrimos o livro e vemos imagens, manuscritos, reportagens, pensamentos... Tudo de Pier Paolo Pasolini. “Isto não é futebol, é futebol--poesia”, garantem-me. Mas o que fazem aqui? “Vamos ver a final, como tu. Sempre que há um jogador do Bolonha na selecção italiana, nós acompanhamo-lo até ao final.” E quem é do Bolonha? “Ai és jornalista desportivo? Di-a-man-ti, conheces?” Ahhhh sim, ele é engraçado, porque é mais rápido do que a própria sombra e causa sempre enormes problemas aos adversários, como no jogo com a Inglaterra. “Sim, sim, sim, mas isso não interessa nada. Estamos aqui para acompanhá-lo.” Mas porquê?

Lição número quatro: Pier Paolo Pasolini nasce em Bolonha em 1922. O Bolonha é campeão italiano em 1925 e 1929 mas PPP é muito novo, não se lembra de nada. Na sua adolescência, o Bolonha é campeão em 36, 37, 39 e 41. Pasolini agarra-se ao clube da terra como um adepto mais, frenético, apaixonado, exacerbado. Independentemente da sua influência sócio-político-cultural na Itália dos anos 50/60/70, Pasolini passa invariavelmente os limites quando o assunto é futebol. É visto a jogar de fato e gravata com os miúdos nas ruas mais pobres de Bolonha e de Roma como é visto a debater tácticas, resultados, jogadas e defesas nos cafés à noite. No Verão, passa férias em Grado, um paraíso para os mais abastados na era pré-Maldivas e outros destinos exóticos. Lá, cruza-se com futebolistas a sério, da Serie A, como Fabio Capello, e organiza jogos com eles.

Lição número cinco: nove e meia da manhã de 16 de Março de 1975. Entram uns vinte e tal gadelhudos na Cittadella, campo de treinos nas imediações do Estádio Ennio Tardini (Parma). O Parma joga nesse dia em Pescara e há quem aproveite a deixa para organizar um jogo para a História. De um lado, um onze de electricistas, guionistas, e actores vestidos à Bolonha, capitaneados por Pier Paolo Pasolini. Do outro, 11 juniores do Parma com t-shirts psicadélicas, liderados por Bernardo Bertolucci. É o dérbi dos cineastas. A equipa de Pasolini chama-se Centoventi (pela obra 120 giornate di sodoma), a de Bertolucci é a Novecento (1900, o seu próximo filme com Robert de Niro, Gerard Depardieu e Burt Lancaster). Atenção, isto não é um jogo amigável. As duras críticas públicas de Pasolini ao Último Tango em Paris de Bertolucci (ex--assistente de realização de PPP) dividem os cineastas. Não se sabe ao certo o resultado final: 5-2, 4-2, 19-13. A única certeza é que Pasolini deixa o campo antes do fim a gritar narcisistas. Pasolini, o adepto à nossa esquerda, indica-nos o recorte do jornal Gazzetta di Parma de 19 de Março de 1975, com declarações de Hugo Chessari, jogador da equipa de PPP: “Ele não é como os outros, não joga para se divertir. Só joga para ganhar. Quando vê que está a perder e sem hipótese de recuperar, é isto.”

Lição número seis: em Outono de 1963, Pasolini viaja de Roma, onde vive com a mãe, para Bolonha, onde monta um espectáculo nunca visto. Então não é que junta todos os jogadores do Bolonha para jogarem futebol de bairro com os mais desfavorecidos! É um documentário sobre homossexualidade! A exaltação do corpo, os jovens taciturnos, a masculinidade exacerbada... “Não é preciso ser nenhum Freud”, escreve Pasolini nesse ano, “para se perceber que o futebol é um meio fortemente homossexual. Ao mesmo tempo, a homossexualidade existe e é fortemente reprimida. Sou muito sensível a essa repressão, ao abrigo da família e da religião. O machismo dos políticos representa a má orientação da masculinidade. E o futebol é levado por esse machismo.”

Lição número sete: em Janeiro de 1971, Pasolini escreve sobre o futebol em geral. “Os brasileiros jogam um futebol de poesia, à base de dribles e golos. O futebol europeu é um futebol em prosa, fundado na sintaxe, na organização do jogo colectivo. Antecipo aqui um exemplo sobre Bulgarelli [avançado do Bolonha e campeão europeu pela Itália em 1968], que joga um futebol em prosa. Já Riva [avançado do Cagliari, também campeão em 1968] é um poeta.”

Lição número oito: o primeiro romance de Pasolini sai em 1955, chama-se Ragazzi di Vita e fala sobre a prostituição masculina. Escândalo. É-lhe instaurado um processo por obscenidade pelo tribunal de Milão mas a obra é um sucesso literário. Seis anos depois, sai o seu primeiro filme Accatone. Crónica nua e crua de um proxeneta dos bairros pobres de Roma. Mais um processo judicial. Em 1968, o filme Teorema é sobre um homem misterioso que entra no dia-a-dia de uma família burguesa de Milão e altera-lhe os hábitos com sucessivas relações sexuais a cada um dos membros. Mais uma queixa por obscenidade, mais um processo e mais um êxito popular. Há quem esteja preocupado com esta sequência. Na noite de 1 para 2 de Novembro de 1975, Pino Pelosi, um prostituto de 17 anos, entra no Alfa Romeo de Pasolini para dar uma volta. Param em Ostia, na região metropolitana de Roma. Algumas horas depois, Pasolini é encontrado sem vida, com a cara desfigurada, num campo de futebol (ironia das ironias). Pelosi é rapidamente apanhado pela polícia e diz-se culpado. É condenado a nove anos de prisão. Em 2005, já solto, volta atrás e diz-se inocente. “O crime foi cometido por três pessoas com sotaque do Sul.” Assassinato político? O Ministério Público reabre o processo e recolhe novas provas sobre o assassinato do artista mais controverso da Itália contemporânea.

Lição número nove: nas nossas mãos, temos um recorte do jornal “Stadio” do dia seguinte ao do assassinato. Lê-se: “A Organização de Actores de Roma confirma a data, a hora e o local do jogo [Stadio Favorita, em Palermo] contra uma equipa de antigas glórias do futebol italiano e adianta que vai começar com dez jogadores, por ausência forçada de Pier Paolo Pasolini. Decidiu-se que o seu lugar de extremo-esquerdo não será ocupado por ninguém.”

Lição número dez: Silêncio na mesa. Então? “Sabes quem são os jogadores pasolinianos da Itália?” Diamanti? “Não, esse é só do Bolonha, nunca será um pasoliniano.” Quem, então? “Cassano. Fica atento ao Fantantonio [número dez da Itália]. Se este Europeu é o dele, Pier Paolo Pasolini ficaria orgulhoso. Como orgulhoso ficou no Euro-68, quando a Itália ganhou a finalíssima à Jugoslávia com um golo do Riva.” Esse mesmo, o poeta.

Lição número onze: se não sei quê não sei que mais, junta-te a eles. No avião Varsóvia-Kiev, estamos sentados no 25 D. O 21 A, B e C estão ocupados por italianos vestidos de azul. São os tais, só que o Pasolini de hoje não é o de ontem, nem o Pier ou o Paolo. Todos os dias, trocam de camisola mas a filosofia mantém-se. Devidamente alinhados, eles são um só: Pier Paolo Pasolini. Esse mesmo, o poeta.

1 comentário:

Anónimo disse...

Pasolini, um profundo conhecedor da vida.