domingo, 29 de julho de 2012

SANTOS MANUEL



Morreu hoje, aos 78 anos, o actor Santos Manuel, fundador, em 1965,  do Teatro Experimental de Cascais (TEC), e a quem  se devem algumas das melhores interpretações da cena portuguesa, como o protagonista de D. Quixote, de Yves Jamiaque.

Santos Manuel estreou-se em 1958, no teatro amador, na Companhia do Teatro Popular de Almada e foi um dos fundadores da Casa da Comédia, em 1962. Representou também no Teatro Aberto e no Teatro A Barraca e participou em diversos filmes e séries televisivas.

A sua vida esteve, contudo, ligada especialmente ao TEC, a cujo elenco pertencia. Já doente, interpretou ainda em Abril passado, no Teatro Mirita Casimiro, a peça Arsénico e Rendas Velhas. Como amigo de Santos Manuel, acompanhei de perto a sua carreira, aplaudi as suas notáveis interpretações, mesmo em papéis secundários, e considero que a sua morte é uma perda significativa para o teatro português.

REFLEXÕES SOBRE O MÉDIO ORIENTE



O quase centenário (n. 31 de Maio de 1916) historiador judeu-britânico-americano Bernard Lewis, um dos maiores (e, por vezes, mais controversos) islamólogos do nosso tempo - que estudou na School of Oriental and  African Studies (SOAS)  da Universidade de Londres, e depois na Universidade de Paris com o orientalista Louis Massignon,  trabalhou no Foreign Office, regressou à SOAS como professor e veio a ingressar na Universidade de Princeton, em 1974, onde permaneceu até à sua reforma em 1974, após o que viria ainda a leccionar, até 1990, na Cornell University, um caso raro de longevidade intelectual - acabou de publicar uma obra retrospectiva da sua carreira, Notes On  A Century - Reflections of A Middle East Historian, onde descreve a sua trajectória intelectual e assinala os factos para si mais marcantes do mundo árabo-islâmico.


A tese de doutoramento de Lewis, The Origins of Ismailism, foi publicada em livro em 1940, mas a sua obra mais conhecida, The Arabs in History, escrita em 1946/7, só foi dada à estampa em 1950. Tornar-se-ia, desde então, o livro (genérico) sobre o mundo árabe mais divulgado em todo o mundo. Traduzido em inúmeras línguas, e para português em 1982, foi uma das obras em que iniciei os meus estudos arabistas.

Os seus livros mais recentes, What Went Wrong? The Clash Between Islam and Modernity in the Middle East (2002), The Crisis of Islam: Holy War and unholy terror (2003) e Faith and Power: Religion and Politics in the Middle East (2010), suscitaram controvérsia e, tendo-se tornado num especialista do Médio Oriente, foi acusado de colaborar com o governo Bush na invasão do Iraque e na elaboração da política da Casa Branca relativamente ao Mundo Árabe. Bernard Lewis viria a refutar essa acusação, mas o facto de ser judeu e também consultor da administração norte-americana não convenceu os espíritos

É certo que ocorrera já, há anos, a célebre polémica que mantivera com o falecido intelectual palestiniano-americano Edward Saïd, autor de Orientalism, devido a algumas teses sustentadas por si e ao seu apoio às políticas de Israel, mas a polémica com Saïd permaneceu viva.

Não só sobre os árabes se debruçou Lewis, mas também sobre os turcos, sobre o Império Otomano e sobre a Turquia Moderna (agora em retrocesso).  E também sobre a célebre seita dos Assassinos.

Qualquer que seja a opinião que se tenha sobre Bernard Lewis, não pode deixar de reconhecer-se o vasto trabalho de investigação a que procedeu ao longo da sua vida, ainda que as conclusões a que chegou não possam ser perfilhadas por todos, nomeadamente pelos próprios árabes.

No entanto, Notes On A Century é um livro de leitura obrigatória para todos os arabistas e islamólogos, até porque recolhe as memórias de um homem que nasceu quando existiam ainda na Europa os impérios dos Habsburg, dos Hohenzollern, dos Romanov e da Sublime Porta, e que ao longo de um século assistiu ao desmoronar de muitas das suas convicções e à necessidade de refazer ou adaptar as teorias que havia defendido.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

DESAPARECEU "A DIVINA COMÉDIA"


Passaram-se em Itália as coisas mais incríveis durante o consulado de Berlusconi. Uma das mais recentes descobertas foi o roubo de livros e documentos preciosos da Biblioteca de Girolamini, integrada no convento dos frades Jerónimos, instituição cultural do Estado e  a mais antiga biblioteca de Nápoles. Entre as obras desaparecidas conta-se o manuscrito com iluminuras d'A Divina Comédia, de Dante, as raríssimas edições de Virgílio e de Séneca, a Jerusalém Libertada de Tasso, ou as obras de Frederico II da Prússia.

Estes livros de valor inestimável foram roubados por um director, Marino Massimo de Caro, nomeado por Silvio Berlusconi, antigo intermediário de negócios escuros na América do Sul, e que fora consultor no ministério da Agricultura antes de passar ao da Cultura, Logo após a sua designação, com a ajuda de uma amante que pernoitava na Biblioteca e a cumplicidade de um padre integrista, Sandro Marsano, o novo director começou a esvaziá-la do seu mais valioso conteúdo.

Porque o assunto merece reflexão, e na impossibilidade de transcrever o artigo esclarecedor que sobre o mesmo escreveu Marcelle Padovani, no nº 2488 do Nouvel Observateur, de 12 a 18 deste mês, indico o site a consultar:.

 http://www.patrimoniosos.it/rsol.php?op=getarticle&id=97284


segunda-feira, 23 de julho de 2012

É SATÃ QUEM CONDUZ O BAILE



Em 31 de Dezembro de 2010 publiquei um post sobre as desgraças que se vinham abatendo sobre o mundo, que intitulei "Et Satan conduit le bal", ilustrando-o com a célebre ária do Faust, de Gounod - "Le veau d'or", onde Mefistófeles canta a célebre expressão.

Passados menos de dois anos, e perante o espectáculo que me é dado contemplar, nomeadamente a situação que se vive no mundo árabe, vejo-me obrigado a retomar o tema. E aproveito para ilustrar o post a capa de um livro de Georges-Anquetil, velho de quase um século, subintitulado "Roman pamphlétaire & philosophique des moeurs du temps", crítica de costumes na França do século XIX e princípios do século XX, mas cujo título se revela apropriado para a ocasião.

Não sendo crente, não posso atribuir a Satã todos os males que assolam o universo, mas reconheço a existência de diabos humanos, menos brilhantes do que Lúcifer, que vagueiam pelo mundo para espalhar à sua volta as maldades mais inconcebíveis. Tinha, pois, razão Sartre quando escreveu na sua notável peça Huit-Clos que "L'enfer c'est les autres".

O caos em que se encontra mergulhada a Síria, um dos últimos actos da tragicomédia apelidada de "Primavera Árabe", não pode deixar de suscitar a maior indignação, o mais vivo repúdio em todos os homens honestos. Como já tinha merecido reprovação universal a invasão do Iraque, há cerca de dez anos, e em que continuam a registar-se os mais graves incidentes, como o que hoje provocou mais de 100 mortos e centenas de feridos em ataques perpetrados em cerca de 20 cidades, entre as quais Baghdad e Kirkuk.

A democracia que o sinistro Bush, acolitado pela funesta administração norte-americana, pretendeu exportar para o Iraque, não levou ao país a liberdade, a fraternidade e a igualdade, para utilizar termos conhecidos, mas antes a paz dos cemitérios, "La pace dei sepolcri", como diria Verdi no Don Carlo.

A insurreição despoletada na Tunísia pela imolação de um jovem, em circunstâncias ainda hoje não totalmente esclarecidas, e que desencadeou as revoluções no Egipto e na Líbia e outras manifestações prontamente sufocadas em alguns outros países árabes, destinou-se a substituir regimes certamente ditatoriais mas razoavelmente laicos por outros que se transformarão a breve trecho, se já o não são, em ditaduras religiosas, que, como todos sabemos, são as piores de todas as ditaduras.

Todas estas revoluções foram apoiadas pelo Ocidente, por miopia política ou por insondáveis desígnios que o tempo se encarregará de revelar. Na Líbia, existiu mesmo um ataque da NATO, ultrapassando uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, para depor (e assassinar) Muammar Qaddafi, quando este já não interessava à "comunidade internacional". Tal como se encenou no Iraque, patrocinado por um governo fantoche, um julgamento que levou ao assassinato legal (por enforcamento) de Saddam Hussein, terminada que fora a guerra com o Irão.

Chegou, entretanto, a vez da Síria. Ensaiada uma primeira contestação, reprimida talvez com despropositada violência, logo se instalou um clima insurreccional que viria a degenerar na guerra civil em que o país se encontra hoje mergulhado. Tratando-se de um regime ditatorial, como todos os regimes dos países árabes, não contaram as forças interessadas no apoio que o povo prodigalizava a Bashar Al-Assad, que empreendera, para lá de algumas reformas sociais, uma considerável melhoria do nível de vida. Certamente que a oposição ao regime gerou a adopção de medidas de repressão quiçá exageradas, estabelecendo-se, como era desejo dos arautos da "democracia", uma espiral de violência, em que muitas famílias perderam os entes queridos e, especialmente por essa razão, passaram a contestar a governação alauíta.

Sendo um regime laico, existia na Síria uma convivência pacífica, e mesmo amistosa, entre os seguidores dos cerca de 20 credos por que se distribui a população, além das diversas etnias existentes no país.

Estive na Síria mais do que uma vez, e pude verificar o espírito de confraternização dos seus habitantes. Haveria corrupção? Certamente. Verificar-se-iam injustiças sociais? Com certeza. Estariam cerceadas algumas liberdades? Não duvido.Mas não são essa distorções comuns à generalidade dos países, com especial inclusão do Ocidente? Posso testemunhar que assisti a uma peça num teatro de Damasco em que se faziam as maiores críticas à polícia política do regime, os Mukhabarat, para gáudio dos espectadores. Havia, portanto, uma polícia política. Mas quais são os estados que a não possuem, normalmente disfarçadas com o título de serviços de informações.

Porque não quero, nem devo, alongar-me, proponho duas reflexões.

1) A "Primavera Árabe" é um mito destinado a ocultar a verdadeira intenção de tanto alvoroço: abrir caminho para o Irão e iniciar um cerco à Rússia, agora com o Afeganistão pretensamente domesticado e o Paquistão misteriosamente privado de Bin Laden, cujo cadáver é suposto repousar no fundo dos oceanos. E reforçar também a posição de Israel, protelando sine die, a solução da questão palestiniana.

2) Não vi, até hoje, nenhum dirigente político ocidental preocupar-se com a falta de democracia, da mais elementar liberdade, nas monarquias dos países do Golfo. Precisamente aqueles que apoiaram, para boa consciência da "comunidade internacional", a invasão da Líbia e fornecem agora, armas, dinheiro e homens à insurreição na Síria, nomeadamente a Arábia Saudita e o Qatar, que são considerados países exemplares e que se orgulham em brandir os seus certificados de bom comportamento.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas, devido aos vetos da Rússia e da China, tem sido impedido de desencadear uma ofensiva militar contra a Síria. Mas, os Estados Unidos e seus sequazes, não o fazendo  abertamente, têm apoiado de forma tanto quanto possível discreta, e com o apoio enigmático da Turquia ( o que faz correr Erdogan?) a revolta contra o presidente Bashar Al-Assad.

Duvido que o regime sírio sobreviva. Mas tenho a certeza de que, a exemplo do Iraque, ou muito pior, devido a circunstâncias que o espaço me não permite explicitar, com Assad ou sem ele, o país entre numa guerra civil permanente,  com o seu interminável cortejo de vítimas.

Muito mais haveria a dizer e deveria ser dito. Mas, por hoje, basta. Talvez os rios de sangue que correm do Iraque, da Síria, da Líbia, em breve do Egipto, porventura do Irão e de outros países, acabem por desaguar em Washington e nas outras capitais do mundo ocidental.


domingo, 22 de julho de 2012

PEDRO RAMOS DE ALMEIDA



Faleceu hoje, aos 80 anos, o escritor, jurista, professor  e político Pedro Ramos de Almeida, que foi dirigente do Partido Comunista Português e do MDP/CDE.

Desde muito cedo ligado aos meios oposicionistas, fez parte do MUD Juvenil, foi um quadro destacado do PCP, esteve exilado em Paris, representou o partido em Praga e a partir de 1964 viveu cinco anos em Argel, já membro do Comité Central e da Frente Patriótica de Libertação Nacional.

Entre 1969 e 1971 viveu em Portugal na clandestinidade, que abandonou quando o seu padrasto, o famoso advogado Fernando Abranches Ferrão, obteve a garantia de que não existiam processos contra ele. Começou então a militar na CDE, de que foi dirigente a partir de 1974.

Colaborou em rádios, jornais e revistas e escreveu diversos livros.

sábado, 21 de julho de 2012

HELENA CIDADE MOURA



A professora Helena Cidade Moura, responsável pela maior campanha de alfabetização nacional  no pós 25 de Abril, faleceu ontem em Lisboa, aos 88 anos.

Deputada à Assembleia da República em várias legislaturas pelo MDP/CDE, partido de que foi dirigente, distinguiu-se pela sua militância política a favor da liberdade.

A ausência de fotografias na Internet leva-me a publicar esta desfocada imagem, que "roubei" no Facebook ao José Zaluar.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

JOSÉ HERMANO SARAIVA



Faleceu hoje, em Setúbal, com 92 anos, José Hermano Saraiva, uma das mais interessantes figuras portuguesas da segunda metade do século XX e dos primeiros anos do século XXI. Professor, historiador, advogado, autor de estimulantes programas televisivos, escritor, investigador, deputado à Assembleia Nacional e procurador à Câmara Corporativa, ministro da Educação Nacional, embaixador no Brasil, membro efectivo da Academia das Ciências, José Hermano Saraiva marcou indelevelmente o seu tempo e despertou nos portugueses o gosto pela história pátria.

Nem sempre a sua pesquisa terá utilizado os métodos históricos considerados mais "correctos", e daí a contestação de que era objecto por parte de outros historiadores "oficialmente encartados", mas a contribuição que prestou à divulgação da história nacional, ao longo de muitos anos, e o entusiasmo que colocava nas suas palestras televisivas, que registaram audiências espectaculares para o nosso país, constituem prova iniludível não só do seu vastíssimo conhecimento em matérias várias como do agudo sentido pedagógico que envolveu toda a sua actividade pública.

Deixando os pormenores para os obituários, apresento à família as minhas condolências.

Afastado da ribalta há alguns anos, por motivos de saúde e de idade, nunca o nome de José Hermano Saraiva foi esquecido. Este é, verdadeiramente, um daqueles momentos em que se pode afirmar que Portugal ficou mais pobre.

RAMADAN



Começa hoje o mês islâmico do Ramadan, mês do jejum (sawm) diário e de oração (salat) que terminará com a celebração de 'Id Al-Fitr, que ocorrerá no primeiro dia do mês seguinte, Shawwal. A festa 'Id Al-Fitr é designada muitas vezes como 'Id Al-Saghir ( a pequena festa) por oposição à outra festa dos muçulmanos , 'Id Al-Adha, a grande festa ('Id Al-Kabir), comemorada no décimo dia do mês de Dhu al-Hijjah, o último mês do calendário islâmico.

No 26º dia do mês de Ramadan (ou num dos dez últimos dias do mês) celebra-se a Noite do Poder ou do Destino (Laylat Al-Qadr), comemorando o aniversário da revelação do Corão ao profeta Muhammad (s.a.w.) pelo anjo Gabriel (Jibril), no ano de 610.

Saúdo todos os meus amigos muçulmanos e lamento profundamente as confrontações entre muçulmanos presentemente em curso, nomeadamente na Síria, muitas vezes instigadas por homens poderosos, muçulmanos ou não, que não procuram a dilatação da fé mas antes a satisfação de interesses materiais e políticos, em contradição quer com o islão, quer com o cristianismo. Homens (e mulheres) que, afirmando-se crentes (nas religiões monoteístas), procedem como infiéis, relapsos e contumazes.

Que a Paz habite no coração de todos os verdadeiros crentes.

Que ela possa habitar também no coração daqueles que, não sendo crentes nem professando qualquer religião, são igualmente homens de boa vontade.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

O GUARDIÃO DAS DUAS MESQUITAS SAGRADAS

Rei Abdullah

O rei Abdullah bin Abdulaziz Al Saud da Arábia Saudita (o único país que ostenta na sua designação o nome da família reinante), usa também o título de Guardião das Duas Mesquitas Sagradas (Meca e Medina). Seria, pois, de esperar que fosse um fervoroso crente, homem temente a Deus e empenhado na felicidade do seu semelhante. Duvido, contudo, que o seja. Duvido, até, que seja crente.

A criação do reino da Arábia Saudita é recente (1932). O território engloba fundamentalmente as zonas do Hijjaz e do Nejd e ocupa a maior parte da Península Arábica, onde também se situam o Yemen, o Oman, o Qatar, os Emirados Árabes Unidos e o Kuwait.

Na sequência de lutas tribais, Abulaziz ibn Saud, no princípio do século passado, conquistou sucessivamente o Nejd e o Hijjaz (onde se encontram Meca e Medina). O emir, Hussein bin Ali, sharif de Meca, representante da dinastia hachemita e supostamente descendente do profeta Muhammad (s.a.w.), a quem o célebre coronel Lawrence (da Arábia) prometera a chefia de um grande reino árabe em todo o Médio Oriente, foi expulso e a sua descendência, que ainda governou a Síria e o Iraque, está hoje reduzida a reinar na Jordânia.

Estabeleceu-se, entretanto, uma aliança duradoura entre a dinastia saudita e o wahhabismo, um subgrupo do hanbalismo, uma das quatro escolas do islão sunita. Devido às suas imensas reservas petrolíferas, o presidente Franklin Delano Roosevelt considerou em 1942 que a defesa da Arábia Saudita era vital para os interesses norte-americanos, vindo a cimentar essa aliança no navio "Quincy", no canal de Suez, em 1945, através de um "acordo secreto" pelo qual os Estados Unidos garantiam a segurança do reino em troca de petróleo.

Não cabe aqui a história das lutas para a constituição da Arábia Saudita, as traições oportunistas do Ocidente (especialmente dos britânicos) nem a ligação íntima do reino aos interesses americanos ao longo das últimas décadas. Mas importa referir a poderosa contribuição da Arábia Saudita na desestabilização do mundo muçulmano, quer pela exportação do wahhabismo, quer pelo apoio em dinheiro, armas e homens às revoluções que têm agitado o mundo árabe. E dinheiro é o que não falta à família de Ibn Saud, certamente milhares de biliões de dólares.

Assistimos hoje à instalação de um governo islâmico na Tunísia (do partido Ennhada), à predominância da Al-Qaeda na Líbia, à vitória dos Irmãos Muçulmanos e dos salafistas no Egipto (tudo pago pela Arábia Saudita e pelo Qatar) e agora na Síria onde o Guardião das Mesquitas, de parceria com a Turquia de Erdogan (que sonha com o restabelecimento do Califado e do Império Otomano) e com o Qatar multiplica esforços para o derrube de Bashar Al-Assad.

A "fronda" conduzida contra o regime (laico) sírio, o único que subsiste no Médio Oriente, depois da invasão do Iraque e do assassinato de Saddam Hussein, visa, de facto, mais o Irão do que a própria Síria. A rebelião na Síria é o último passo para o cerco e posterior invasão do Irão, e neste ponto as monarquias do Golfo e Israel estão de mãos dadas num nefando conúbio. Israel, porque o Irão se afirma contrário à sua existência como estado; as poderosas monarquias petrolíferas do Golfo porque, sendo sunitas, se supõem ameaçadas pelo xiismo iraniano. É evidente que não são motivos humanitários que levam os países da Península Arábica a apoiar os opositores do governo ditatorial de Al-Assad, pois os governos desses países são muito mais ditatoriais e absolutistas do que o governo sírio. Trata-se de países governados segundo a mais estrita lei islâmica, interpretada segundo os interesses dos seus dirigentes e muitas vezes contrariamente aos próprios ensinamentos do Profeta.

Jogam-se hoje no Médio Oriente não só os destinos da região para o futuro próximo mas os interesses vitais do Mundo para as décadas que se aproximam. Por causa do petróleo, do gás, das comunicações, das indústrias de armamento. Tem estado o planeta, desde a Segunda Guerra Mundial, confinado a guerras locais, com "poucos" proventos para os negociantes de armas. Por isso, os grandes interesses económicos e financeiros suspiram por uma guerra generalizada, uma nova guerra mundial. Aliás, a presente crise da União Europeia mais não é do que o prólogo da grande confrontação que se avizinha.

Regressemos ao início.

Vivia a Síria em paz e com franco desenvolvimento económico e social sob o regime (ainda que ditatorial e repressivo, como em todos os países árabes) do presidente Bashar Al-Assad. Conviviam, em perfeita harmonia, as cerca de 20 confissões religiosas e as diversas etnias. Com a guerra civil instalada, de que o atentado de hoje constitui a prova inequívoca de que os opositores ao regime trabalham mais de acordo com Shaitan do que com Allah, prefigura-se para o país um cenário terrível, semelhante, ou pior, ao do Iraque, onde as vítimas, entre mortos, feridos, estropiados, loucos, desalojados, emigrantes, são da ordem dos cinco milhões.

O papel da Arábia Saudita neste conflito tem sido tenebroso. Onde deveria reinar a paz e a concórdia decorrem conciliábulos de horrores. Espanta-me que os muçulmanos de todo o mundo permitam que a guarda dos Lugares Sagrados do Islão esteja confiada a gente de tão discutível idoneidade.

E há muitos muçulmanos que colocam já esta questão: será o rei Abdullah um homem piedoso e crente ou um criminoso de guerra?

terça-feira, 10 de julho de 2012

INTERRUPÇÃO

Por motivo de ausência do seu autor, a actividade deste blogue será interrompida durante alguns dias.

ROMÉNIA DEMITE PRESIDENTE

Traian Bâsescu


O Tribunal Constitucional da Roménia aprovou a decisão do Parlamento, tomada na passada sexta-feira passada por 256 dos 432 deputados, de suspender o mandato do presidente da República Traian Bâsescu, devendo a mesma ser submetida a referendo popular no próximo dia 29 deste mês. O presidente do Senado, George-Crin Antonescu, assumiu interinamente a chefia do Estado.

Bâsescu é acusado de ter assumido poderes respeitantes ao chefe do Governo quando em 2010 anunciou medidas drásticas de austeridade. O voto do Parlamento surge na sequência de sérias controvérsias acerca da matéria, que têm agitado o país nos últimos meses.

Esta situação, inédita, está a provocar a maior apreensão não só nos países vizinhos mas no conjunto da União Europeia e nos próprios Estados Unidos. O governo alemão criticou já o impeachment como "inaceitável" e violador dos princípios democráticos, aliás na boa tradição da actual política germânica.

Começa, assim, a verificar-se alguma agitação nos Balcãs, que poderá estender-se aos restantes países da região, todos eles afectados por uma grave crise económica e financeira.

Em lugar de um colapso súbito e definitivo, a União Europeia vai apodrecendo pouco a pouco.


domingo, 8 de julho de 2012

MORSI ANULA DISSOLUÇÃO DO PARLAMENTO



O recém-eleito presidente egípcio, Mohamed Morsi, decretou hoje a anulação da dissolução do Parlamento, ordenada pelo Supremo Tribunal devido a irregularidades processuais no acto eleitoral.

A decisão do Tribunal fora confirmada pelo Conselho Supremo das Forças Armadas (CSFA), que decidira que só se realizariam novas eleições quando houvesse uma nova Constituição no país. Na ausência de uma assembleia legislativa, o CSFA resolvera nomear uma comissão para a elaboração do novo texto constitucional.

Segundo o decreto de Morsi, o Parlamento anteriormente eleito será restabelecido, elaborará a nova Constituição, e, já de acordo com ela, serão então realizadas novas eleições no prazo de 60 dias.

A decisão de Mohamed Morsi, que está a causar a maior perplexidade no Egipto e nos meios políticos internacionais, surge como um desafio às Forças Armadas, a menos que tivesse existido um acordo prévio com os militares, o que se afigura improvável. Aliás, a Junta Militar que tem governado o país desde a deposição de Hosni Mubarak convocou uma reunião de emergência e o Supremo Tribunal anunciou também que se reuniria amanhã em sessão especial.

Como não é crível que os militares abandonem a cena política para entregarem o poder total à Irmandade Muçulmana (da qual Morsi faz parte), este acto de força do novo presidente deverá ser seguido com a maior atenção, não só pelas suas consequências no Egipto, como pela repercussão em todo o mundo árabe, em Israel e mesmo no mundo ocidental.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

AGORA É A FINLÂNDIA



Depois do Reino Unido ter admitido referendar as suas relações com a União Europeia, como referimos aqui, é agora a vez da Finlândia, pela voz da sua ministra das Finanças, declarar preferir sair da zona euro, e eventualmente da União, a ter de pagar as dívidas dos outros.

Alguma coisa não bate certo na letra e no espírito desta União Europeia. A sucessão de ameaças e de equívocos, de empréstimos, de resgates, de austeridades, de bancos falidos ou não, de cimeiras, de acordos, de tratados, etc., etc., ou revela o profundo desvario em que se encontram os dirigentes europeus ou serve para adiar decisões convenientes para algumas partes e profundamente gravosas para outras. A transparência dos actos políticos, se alguma vez existiu, encontra-se definitivamente erradicada da cena actual.

Como todos o sabem mas poucos o dizem, existem poderes mais ocultos uns, menos ocultos outros, que governam a seu bel- prazer os destinos do mundo. Os políticos, "democraticamente eleitos", não passam de uns serventuários bem pagos, encarregados de governar os povos de acordo com as instruções que recebem dessas "altas instâncias" não eleitas, que decidem do destino da população mundial.

Há muitas décadas que assim é, mas agora, talvez pela rapidez da transmissão da informação e pela falta de vergonha dos agentes envolvidos, o escândalo é demasiado evidente. Não creio que a situação possa ser resolvida no curto prazo, mas é sempre bom que um número cada vez maior de pessoas se aperceba da farsa que se encontra encenada no palco mundial, servida progressivamente por piores actores e cuja encenação seria risível se não estivesse em causa a vida de centenas de milhões de pessoas.

Aguardemos.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

A ESTRANHA MORTE DE YASSER ARAFAT (II)


Como escrevemos aqui em Dezembro do ano passado, mantinha-se o desconhecimento sobre as causas da morte de Yasser Arafat, que tudo levava a supor não  ter sido devida a razões naturais. Ignoravam-se o agente mortífero e os agentes interessados.

Segundo o PÚBLICO de ontem, um laboratório suíço, a partir da análise das roupas que lhe foram entregues pela viúva, admite que o líder palestiniano tenha sido envenenado com polónio, a exemplo do antigo espião russo, Aleksandr Livtenko, que morreu em Londres em 2006. Os sintomas foram exactamente os mesmos. A confirmação poderá ser obtida através da exumação do cadáver, sepultado em Ramallah.

Segundo a Al Jazira, a viúva, Suha Arafat, terá já pedido á Autoridade Palestiniana para que se proceda ao exame dos ossos. Alguns elementos importantes oportunamente solicitados ao Hospital Militar de Percy, em Paris, onde Arafat foi tratado e acabou por morrer, foram destruídos aquando da morte, segundo informações oficiais. Também os médicos do hospital como outros clínicos (tunisinos e egípcios) que o assistiram se recusaram a prestar esclarecimentos, dado tratar-se de um "segredo militar".

Parece, pois, não restarem dúvidas que se tratou de um assassinato político. Talvez nunca venha a saber-se  quem mandou proceder ao (lento) homicídio,  e quem efectivamente o praticou.

terça-feira, 3 de julho de 2012

A DESTRUIÇÃO DE TIMBUKTU



Os islamistas de Ansar Dine que, inicialmente com o apoio dos tuaregues de Azawad, tomaram o norte do Mali, estão as destruir os monumentos da histórica cidade de Timbuktu, perante a passividade (não diria o espanto, porque era previsível) do mundo dito civilizado.

Nada pior do que os extremismos religiosos, porque constituem sempre um atentado à cultura, a todas as culturas.

Transcreve-se um artigo do "Nouvel Observateur":

A Tombouctou (nord-ouest du Mali), après avoir démoli pendant le week-end sept des seize mausolées de saints musulmans, les islamistes du groupe armé Ansar Dine (Défenseurs de l'islam) qui contrôlent la région ont franchi une étape supplémentaire en brisant la porte d'entrée d'une des trois plus grandes mosquées de la ville. Selon l'islamologue, Mathieu Guidère, ces violentes actions sont une opération de communication.

Les islamistes qui contrôlent Tombouctou, dans le nord du Mali, ont démoli ce week-end sept des seize mausolées de saints. Que représentent ces tombes pour les musulmans ?

- Ce sont des mausolées de saints, de "wali" en arabe. Les saints musulmans existent depuis les premières années de l'islam, dès le VIIème siècle. C'étaient des hommes qui, à leur époque, ont démontré un degré de piété important ou qui ont accompli des actions considérées comme exceptionnelles. C'étaient des hommes pieux, pauvres, qui vivaient généralement dans le dénuement, qui aidaient leur entourage et incitaient au bien. On peut dire que c'étaient des hommes à la moralité irréprochable.

Ce sont les populations elles-mêmes qui désignaient que tel ou tel devait être considéré comme un saint. Après leur mort, leurs tombeaux vont devenir des lieux de visite pour se remémorer les actions qu'ils ont accompli et s'en inspirer pour devenir un bon musulman.

Autour de ces endroits de recueillement, il n'était pas rare de construire une petite pièce pour accueillir les croyants, un dispensaire, une salle de classe ou un hôpital. Il y a des mausolées de saints un peu partout dans le monde musulman, de la Mauritanie à la Tunisie, en passant par l'Algérie...

Quel islam ces saints enseignaient-ils ?

- L'enseignement était surtout oral même si certains oulémas (savants, ndlr) ont laissé des écrits. Ces derniers, pour les plus importants, ont donné lieu à des confréries soufies. Dans chaque pays musulman, vous avez un ou deux grands noms de guide spirituel.

La majorité des saints maliens étaient issus du courant soufi. Ils enseignaient un islam de méditation, de recueillement, très pacifiste. Le Mali a toujours été influencé par cet islam pieux et calme.

Le groupe islamiste, Ansar Dine, qui revendique les destructions des mausolées, se réclame d'un 
autre islam. Quand apparaît cette rupture ?

- Pendant longtemps, toutes les tendances cohabitaient très bien. C'est Ibn Taymiwa, mort en 1328, qui le premier prône un retour aux sources de l'islam. Il est le fondateur du salafisme. Il estime qu'il faut combattre le soufisme car ce courant est trop mou, qu'il ne fait pas assez pour la défense de l'islam et qu'il est responsable du retard des musulmans dans le monde. On voit alors apparaitre cette opposition entre le salafisme et le soufisme. C'est la première rupture, idéologique et doctrinale.

La deuxième rupture clé va arriver un peu plus tard, au XVIIIème siècle et elle va s'accompagner d'actions plus violentes. Le théologien, Abdelwahhab disciple tardif d'Ibn Taymiwa, va fonder le salafisme dit wahhabite, un nouveau courant venu d'Arabie Saoudite. Il estime qu'il faut détruire tout ce qui est lié à ce soufisme pour que, selon lui, la nation musulmane retrouve sa puissance et sa gloire.

En Arabie saoudite, il va commencer par raser tous les mausolées de saints (dont celui du prophète Mahomet et de sa petite fille Zohra, ndlr). En effet, dans les écrits coraniques et dans le fondement de l'islam, il ne peut exister qu'une relation direct entre le croyant et dieu, il ne doit pas y avoir d'intermédiaire. C'est la doctrine dite de l'unicité. Il est impossible d'avoir un clergé, ni faire appelle à quelqu'un ou à un saint pour s'adresser à dieu. Pour éviter que les croyants ne demandent des grâces à dieu en passant par ces saints, il va ordonner la destruction de tous les mausolées. D'ailleurs, il n'en existe presque plus dans la péninsule arabique. Le salafisme wahhabite les a interdits partout où il s'est diffusé.

Ensuite, il va interdire les décorations des mosquées, parce qu'il considère que ce sont des lieux de recueillement qui ne doivent pas présenter des signes de richesse. Les tapisseries vont être enlevées par exemple.

Enfin, il va s'attaquer aux cimetières estimant que les tombeaux ne doivent pas être trop voyants jugeant que les croyants doivent être égaux dans la mort.

Ce sont les trois traits du salafisme wahhabite que l'on retrouve dans tous les groupes qui s'en réclament aujourd'hui. Et ce sera toujours les premières actions qu'ils vont faire. (Les dernières profanations de mausolées remontent à 1989, en Algérie par le Front islamique du salut, ndlr)

Est-ce pour cela que l'Arabie saoudite ne réagit pas aujourd'hui, contrairement à d'autres pays musulmans ?

- L'Arabie saoudite est en effet en accord avec cette doctrine de l'unicité. Dans le pays, cela ne fait même pas débat. En revanche, dans le Maghreb, les musulmans sont plutôt sunnites malékites, une tendance relativement proche du soufisme. Il est donc tout à fait normal de voir l'Algérie ou le Maroc condamner ces actes puisqu'ils abritent eux-mêmes bon nombre de mausolées.

Ansar Dine fait-il partie de ce courant ?

- Ansar Dine se définit clairement comme salafistes. Mais il y a en son sein plusieurs tendances dont le salafisme wahhabite. Il faut savoir qu'il y a aussi une lutte de pouvoir entre les différents courants. Les rapports de force se jouent au jour le jour. Quel groupe va prendre le dessus ? Le groupe salafiste modéré, wahhabite, malékite, soufi ou sunnite ?

Cette aile radicale qui mènent les destructions, à peine 50 personnes parmi les combattants, n'est pas les talibans. Ces derniers avaient fait exploser en deux minutes 20 mètres de statues à Bamiyan. Au Mali, les hommes se sont munis de burins et de pioches, alors qu'on sait qu'ils ont des explosifs... Pour l'instant, il n'y a pas de destruction massive et systématique, ni revendications claires de la part des leaders du groupe.

Tout cela ressemble à une opération de communication, bien qu'elle soit très mauvaise. Selon moi, c'était la seule manière d'attirer l'attention sur eux afin de se positionner comme seul interlocuteur.

AVISO POR CAUSA DA POBREZA



Numa entrevista ontem concedida ao jornal "i", o bispo das Forças Armadas, D. Januário Torgal Ferreira, faz um aviso por causa do estado de  pobreza em que ficará o país no fim, se lá chegar, da política de austeridade do governo em funções.

Pelo relevo do entrevistado e do tema, transcreve-se, com a devida vénia, o texto:

É o único bispo português a viver num andar e ainda não perdeu o hábito de fechar os convidados à chave dentro de casa. Em 2010, quando recebeu o i pela primeira vez, D. Januário Torgal apressou-se a justificar o estranho hábito com o facto de ter sido assaltado há pouco tempo. Levaram-lhe uma máquina fotográfica. Agora, assim que voltamos a ver a chave rodar na fechadura, equacionamos a hipótese de ter havido outro assalto. Afinal não: trancar o apartamento a sete chaves tornou-se apenas uma questão de hábito. Na verdade, as novidades no prédio do bispo das Forças Armadas são outras e bem sedutoras para as más-línguas: D. Januário tem como novos vizinhos dois travestis. Um morador mais antigo até já foi falar com ele para lhe pedir que resolvesse “o problema”. “Mas eu cá não me meto nessas coisas”, garante o bispo. Depois da polémica recente em torno dos seus rendimentos, D. Januário Torgal continua a dar entrevistas, apesar de se confessar incomodado com a hipótese de os portugueses poderem pensar que é “um grande aldrabão”. Diz que não sente repulsa pelos ricos, mas sim pelo enorme abismo que existe entre ricos e pobres. E deixa um aviso: quando Portugal acabar de pagar a dívida, o que vai restar é uma “multidão de pobres”.
Houve, recentemente, uma polémica em torno da sua reforma. Associou-a ao facto de ter criticado, pouco tempo antes, o primeiro-ministro. Acredita mesmo que existiu uma relação?
Não tenho a menor dúvida. Foi a propósito. E não tenho a mania da perseguição. Defendo a liberdade de expressão. O que eu achei altamente desagradável foi ter-se atirado para a opinião pública a ideia de que um trabalhador com tantos anos de serviço – eu trabalhei mais de 40 anos, primeiro como professor e só depois ao serviço das Forças Armadas – e que até mostra uma grande sensibilidade por quem vive mal é, afinal de contas, um grande aldrabão. Porque ganha muito. Ou seja, ganha muito dinheiro ao fim do mês e depois anda para aí a fazer-se de santinho. O grande problema que se gerou com isto tudo tem a ver com o exemplo que a pessoa dá. No caso, um bispo.
Está zangado com os jornais?
Não, de maneira alguma. Terei sempre para com os jornalistas a mesma atitude de respeito.
É legítimo que os padres e bispos aufiram grandes rendimentos? Isso choca com a doutrina da Igreja?
Na Universidade Católica, os professores sacerdotes ganham menos do que os leigos. Eu devo dizer que não sei se concordarei com isso.
Acha, então, que um padre deve ganhar o mesmo que um leigo?
Não é bem isso. Penso que um sacerdote deve ganhar o suficiente para levar, com dignidade, a sua vida. Não acho que deva ter um salário muito elevado. E acima de tudo deve, na sua vida pessoal, dar testemunho de amor aos pobres e de desprendimento. É uma regra fundamental. Eu posso ter um fato bom, não muito caro, mas bom e digno. Isso não tem mal nenhum. Mas não vou ter dez fatos. Pode ser, de facto, questionável que um bispo tenha automóvel, casa de campo, passe a vida em turismo, tenha um andar principesco numa das melhores zonas da cidade, frequente os restaurantes mais caros de Lisboa. Isso sim, pode ser questionável.
É legítimo que as pessoas queiram saber o que um bispo faz com o seu dinheiro?
O que eu acho é que quem assume campos públicos deveria publicitar os bens que possui...
Mas eu perguntava-lhe em relação aos membros da Igreja.
A mim não me repugna absolutamente nada dizer o que a Igreja tem. Da última vez que vi, o Ordinariato Castrense tinha no banco, e posso-lhe dizer sem qualquer problema, cerca de quatro mil contos (20 mil euros). Dinheiro que vamos poupando e vamos lá pondo.
E onde é que gasta o seu dinheiro? Tem exuberâncias?
Não.
É o único bispo português que vive num andar. Paga a renda...
Pago a minha renda, claro. Onde às vezes gasto algum dinheiro é em livros. Eu adoro livros, pronto. Mas não faço colecções luxuosas de livros ou de obras antigas. O livro é um objecto de estudo. Gosto de o riscar, de o marcar, respeitando-o, claro. Mas não sou pessoa de acumular coisas. Às vezes recebo presentes e depois distribuo por amigos, família. A única exuberância, se lhe posso chamar assim, são mesmo os livros. Temo o homem de um só livro, como no ditado clássico. Temos de nos abrir ao pluralismo da ciência, do progresso. Por isso, devemos cultivar o gosto da leitura e aprender com os livros no silêncio da nossa casa e no silêncio do próprio livro e também com as pessoas que nos ensinam. E com os acontecimentos.
Ganha-se bem dentro da Igreja, actualmente?
Francamente, acho o salário dos padres relativamente baixo para as responsabilidades que assumem. Mas também posso dizer – há algumas excepções, claro – que, felizmente, o clero não vive uma situação incómoda.
Dizia há pouco que se pode questionar se um bispo tem determinados bens ou determinados hábitos. A questão está no uso que se dá ao dinheiro?
E no uso que se dá aos bens. No caso da minha reforma, volto a dizer: são cerca de 2500 euros. Na década de 1970, fui chamado para dar aulas na faculdade. Não como padre, mas graças ao meu desempenho enquanto aluno. E, mais tarde, no caso das Forças Armadas, foi a prestação de um serviço espiritual. Uma vez que aos padres e aos bispos é atribuída uma graduação militar para se inserirem numa cultura muito específica, com certeza que esses padres e bispos devem ganhar o salário normal e justo desses escalões. O problema, como dizia, não é o dinheiro que se ganha. Digo muitas vezes isto: eu tenho alguma culpa de ser filho de pais ricos? Ou de os meus pais, proporcionalmente à população portuguesa, serem considerados mais ricos do que os pobres? Os meus pais foram pessoas da classe média, mas o meu pai era um velho industrial e a minha mãe – que foi uma das primeiras mulheres licenciadas em Portugal – deixou de trabalhar a dada altura, mas foi professora de liceu. Isso faz ou fez de mim uma pessoa pior?
Considera que há cargos que devem ser bem remunerados?
Claro. É justo que as pessoas aufiram o ordenado que merecem e de acordo com as suas responsabilidades. Não é justo é que existam, no país, tantas disparidades salariais. Tem de haver maior equidade. No entanto, considero que há funções que devem ser muitíssimo bem pagas: um grande operador, um grande cirurgião, um grande professor universitário. Eu acho, por exemplo, que os professores universitários são muito mal pagos. E é uma das carreiras mais nobilitantes, mais sérias e mais importantes. Todo o sector da educação deveria, aliás, ser melhor pago. A mim não me repugna que existam ricos. O que me repugna é que haja um abismo tão grande, na sociedade, entre ricos e pobres. É preciso igualdade de oportunidades. Foi essa a doutrina de um dos meus maiores amigos e a minha sensibilidade política vem daí: de Francisco Sá Carneiro. O que repugnava o Chico era a ideia de que a sociedade portuguesa fosse insensível aos problemas sociais.
Como conheceu Sá Carneiro?
Ele pertencia ao movimento de casais “Equipas de Nossa Senhora” e depois vim a encontrá-lo num outro movimento, o Cursos de Cristandade. Conhecemo-nos em 1962. Eu era professor no Colégio da Formiga, em Ermesinde, e ele pediu-me se era possível arranjar lá quartos para os vários casais do movimento se encontrarem e levarem os filhos, aos domingos. Depois foi-se formando um conjunto de amigos. Tínhamos muitas conversas e o que sempre me tocou nele foi a enorme sensibilidade para com as injustiças sociais, os pobres, os maus salários, as condições degradantes de trabalho. Eu gostava de ver, em Portugal, uma nova classe política.
Porquê uma nova classe política?
Primeiro que tudo, eu não entro em políticas partidárias. Entro em política no sentido da defesa do cidadão e do bem comum. Mas o que eu vejo, hoje, é que a classe política usa eufemismos para falar nos pobres: são apelidados de “os mais vulneráveis”, “os mais débeis”. E o que eu gostava de ver era uma nova classe que não tenha dificuldade em pegar nos problemas dos mais pequeninos. E repare que o mundo pobre é muito vasto: a pedofilia, a violência doméstica – no ano passado, 50 mulheres foram assassinadas pelo velho machismo português. Tudo isto faz parte do conceito de pobreza. Tal como também faz parte do conceito de pobreza o desaparecimento de tribunais e pessoas que têm de andar dez quilómetros a pé para ir a um tribunal. Eu pergunto-me: onde está a sensibilidade?
Diz que não lhe repugnam os ricos, mas não é o Evangelho que diz que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino do céu?
Sim, mas depois os discípulos perguntaram a Jesus: mas então os ricos perdem-se? E Jesus explicou que não, porque o que é impossível aos homens é possível a Deus. E oxalá Deus toque nos ricos de Portugal. Temos ricos magníficos, mas também temos outros que só vêem o dinheiro. Talvez sejam tocados para que despertem para as suas responsabilidades sociais e comecem a partilhar os seus bens.
Há pouco falou em sensibilidade. Tem faltado sensibilidade a este governo?
Os políticos merecem respeito. Mas os políticos encartados não, porque fizeram disso a sua carreira. Porque não conseguiram outra. Aquilo que me repugna a mim e a muitos portugueses é a insensibilidade. E não venham cá com cumprimentos e saudações. As pessoas têm vivido oprimidas, estão revoltadas.
Mas são precisas reformas?
Eu sempre defendi a necessidade de reformas. Mas o que eu não vejo, ou não vejo de forma proporcional, é o abate das gorduras do Estado – como aliás foi prometido. Ainda há bocado esteve aqui em casa um casal jovem, que está à espera do segundo filho e que me disse que está no limite das suas capacidades. Gostaria que este casal tão jovem, tão digno, tivesse uma vida um pouco mais desafogada para criar os seus filhos. Andamos aí a chorar porque não há crianças em Portugal e qualquer dia somos um jardim de velhos. Precisamos de povoar o país, mas isso não vai acontecer porque a maioria da população está no limite. Repare que os cortes têm chegado de todas as frentes. Choca-me que parte da sociedade portuguesa não tenha sequer dinheiro para pagar uma casa. Sim senhor, que se faça uma reforma. E com certeza que temos de pagar o que devemos. Mas fico muito admirado quando vejo, no Estado, determinados funcionários com determinadas regalias – como por exemplo um motorista de um determinado ministério de que tanto se falou. Ou o menu da Assembleia da República que é altamente afidalgado. Custa-me a acreditar que possa ser verdade. As gorduras do Estado não têm sido abatidas e continuo a pôr o problema de existirem instituições a quem não é aplicado o ditame da troika. Tem havido filhos bastardos e filhos legítimos. E se não houver equidade não há coesão social.
A que instituições se está a referir?
A várias... A Caixa Geral de Depósitos, o Banco de Portugal, a TAP. Outras. E às tantas até pode haver muita gente a pensar que o Ordinariato Castrense também é um privilegiado.
E não é verdade que a Igreja é uma privilegiada?
Há realmente muita gente que continua convencida que os padres e os bispos não pagam impostos. Mas pagamos. E é bom que paguemos. Eu entendo que no cumprimento de direitos e de deveres devemos ser iguais.
Seria de esperar, por parte da Igreja, uma posição mais forte relativamente à situação que o país atravessa?
Acho que a Igreja, mais do que nunca, deveria falar, embora haja aí uns senhores que têm medo. O que não faz sentido: a Igreja deveria sentir-se perfeitamente à vontade para o fazer, porque isso vai ao encontro das directrizes que nos foram dadas. Quando somos ordenados bispos é-nos feita uma pergunta: “Queres ser bondoso e compassivo com os pobres?” E compaixão significa solidariedade. Não deve ser um sentimento romântico, irreal e beato. Mais: quando o Papa esteve cá há dois anos pediu, no encontro com os bispos, para sermos defensores dos direitos inalienáveis da pessoa. Para juntarmos a nossa voz à dos mais débeis, aos que não têm voz própria. E disse-nos para não termos medo de levantar a voz em favor dos oprimidos e dos humilhados.
Mas poucos bispos têm levantado publicamente a voz.
Há gente que pensa que levantar a voz é fazer política partidária. Mas não é. Acho que a Igreja deve falar de forma concertada. E tem responsabilidade na matéria, porque toma o partido dos pobres – distribuindo bens através de instituições sociais e centros paroquiais. Por isso, deve estar perfeitamente à vontade para o fazer.
Esse papel concertado cabe a quem? À Conferência Episcopal, ao cardeal- -patriarca?
A Conferência Episcopal já publicou vários documentos sobre esta questão, neste e em outros períodos conturbados. E o cardeal-patriarca é um bispo igual a qualquer outro, só que foi votado para presidente da Conferência...
... por isso deveria ter maiores responsabilidades.
Quanto a isso, não devo julgar. Só respondo pelas minhas posições e o que eu quero é que me ajudem sempre para eu poder assumir as minhas responsabilidades. Eu falo por mim e só por mim. Pelo meu pensamento, pela minha consciência. Haverá bispos que concordam comigo, outros que não. Eu digo o que penso quando a minha consciência o dita. Se agora há guerra na Síria, eu acho horroroso que se deixe morrer um povo. Como acho horrorosa a política do Irão. Como acho horroroso que certos partidos em Portugal – e é uma pergunta que coloco à minha consciência – tenham a pouca sorte de ter lá um conjunto de cidadãos que são hoje conhecidos em todo o país pela sua corrupção, pelos roubos e por outras coisas que operaram. É que não são um, nem dois, nem três.
Está a falar de quem?
Dos casos que vêm a público. Não vou particularizar.
E de onde vem essa corrupção?
Como diz S. Paulo, a raiz de todos os vícios é o dinheiro. Mas o dinheiro em si, ou mesmo o lucro, não são um problema. O problema é o lucro gigantesco enquanto sanguessuga daqueles que nem sequer podem ter acesso àquilo que dá lucro, a uma moedazinha que seja... isso sim é o problema. E tudo isto em que nos encontramos é fruto do dinheiro, da ânsia de prestígio social e de poder. Quem tem dinheiro tem poder e quem tem poder raramente vive sem dinheiro. Eu conheço empresários magníficos, que são os primeiros a dizer-me que são uma excepção. Há um certo número de empresários portugueses que são perfeitamente inaptos, não tiveram formação nem cultura, e que querem ganhar dinheiro de qualquer forma. E isto, hoje, acontece em qualquer profissão. Dou um pontapé no outro, passei à frente do outro, utilizei a mentira, acusei o outro? Isso não interessa. E isso repugna-me. Precisamos hoje de um Padre António Vieira, porque há índios que estão a ser maltratados. Precisamos de um Ximenes Belo, que pôs de pé a autonomia de Timor ou de um João Paulo II, que teve a coragem de dizer que há ideologias mortíferas. Eu tenho a impressão que o primeiro golpe contra o muro de Berlim veio do Papa. E esta ditadura da austeridade... não haverá hoje uma outra nova ditadura?
Há uma dívida que é preciso pagar.
E eu estou de acordo com isso: pagar aquilo que pedimos. Mas como gente honesta que somos – e temo-lo demonstrado – poderíamos pagar mais devagar para que a cauda da procissão não seja calcada pela dívida. Porque no termo de todo este pagamento, lá para 2020 – e eu amo o meu país, as pessoas do meu país e bato-me pela paz social –, nessa altura vamos ter uma multidão desenfreada de pobres. Pagámos a dívida dos ricos, mas nasceu uma multidão de pobres e revoltados em Portugal. Não tenho dúvidas de que é isso que vai acontecer no futuro. E foi por isso que eu há tempos disse que era preciso ir para a rua fazer democracia.
Mas aconselha e incentiva os portugueses a irem para a rua?
Nesta altura não resolvemos nada indo para a rua no sentido de destruir. Mas a CGTP, por exemplo, é um modelo de cidadania – e há muita gente que vai ficar zangada por eu dizer isto. As manifestações a que tenho assistido, o primeiro de Maio... Eu no ano passado fui ver o protesto dos professores. Estive lá, fui ver. E o que é que aquilo significava? Significava o desacordo relativamente à condução de um sistema pedagógico. Estamos numa democracia! E ninguém virou carros ou partiu montras. Uns fazem guerra, outros fazem amor. Mas a missão de qualquer cidadão é fazer democracia.

PIER PAOLO PASOLINI E O FUTEBOL



Pelo seu comprovado interesse, transcreve-se, com a devida vénia, o artigo de Rui Miguel Tovar, hoje publicado no jornal "i":

Finito. O Euro-2012 já não mora mais aqui. Em Varsóvia, na Polónia. O Alemanha-Itália de quinta-feira é o último acto futebolístico na capital polaca. Não quer isso dizer que a abandonemos assim de repente, num estalar de dedos. Não, nós não. Ficamos aqui mais uns dias até à final de Kiev e aproveitamos para conhecer a Cidade Velha, um pedaço encantador de arquitectura e ruas serpenteadas, longe das bolas gigantes de futebol nas rotundas e das cores aberrantes das selecções do Euro nas paredes dos hotéis. Aqui respira-se História.

Quando entramos na imponente Avenida Tokarzewskiego Karaszewicza, há um pequeno jardim. À esquerda, uma exposição fotográfica sobre Varsóvia de meados do século XIX. À direita, uma outra exposição fotográfica, esta sobre o futebol em Varsóvia no início do século XX. No meio, a separar os caminhos e as fotografias, um quadrado gigante de ferro preso ao chão com a bandeira de Portugal. Damos a volta ao quadrado e só dá Portugal: cachecóis, fitas para o cabelo, bandeirinhas e papelinhos. Só jogámos uma vez em Varsóvia (1-0 à República Checa para os quartos-de-final) e marcámos território.

Ainda estamos surpreendidos com esta situação quando ouvimos Portogallo lá ao longe. São três italianos sentados numa esplanada. Olhamos para eles, sorrimos de forma simpática na esperança de selar um acordo “calem-se para continuarmos a andar sem sermos perseguidos pelos olhares de dezenas, centenas de turistas” e saímos de cena. Em direcção a um beco sem saída. Temos de voltar para trás e continuamos a ouvi-los gritar Portogallo. Eles já sabiam da marcha-atrás e só há uma saída: ir ter com eles. À medida que nos aproximamos debaixo de um calor abrasador, eles insistem no Portogallo. Cada vez mais alto. Quando nos sentamos à mesa, calam-se. Finalmente. Okay, chegámos e agora querem o quê? Fare il portoghese, e riem-se controladamente. O quê?

Lição número um: “Na Roma do século XVIII, o embaixador de Portugal convida os seus compatriotas residentes na capital para assistirem a uma peça no Teatro Argentina. À porta, os convidados só têm de dizer a sua nacionalidade e não lhes é pedido qualquer contrapartida financeira. Aproveitando-se dessa situação, alguns (muitos) romanos passam-se por portugueses e vêem o teatro à borla.” Ahhhh agora sim, click, esta história já nos passara pelas mãos, através de um amigo luso-brasileiro durante um Fiorentina-Benfica de 1997.

Lá estamos nós a falar de futebol. Estes adeptos não são desses. Aliás, são italianos muito especiais. Primeiro, não falam com as mãos nem com os ombros, limitam-se a abrir a boca e debitar palavras – assim também nós, ah. Depois não querem saber de Cassano nem de Balotelli. Nem de Buffon ou de Pirlo. Ma ché cosa? Para terminar, as suas camisolas não são do azul desta Itália, os números não são os desta Itália e os nomes também não. À nossa esquerda, com o número 9 a ocupar toda a t-shirt, Pasolini. À nossa direita, com o chapéu do JR do Dallas, Pier. À nossa frente, com um canivete a tentar fazer um buraco no frasco artesanal do sal, Paolo. Devidamente alinhados, eles são um só: Pier Paolo Pasolini. Quem?

Lição número dois: “Pier Paolo Pasolini, um dos maiores artistas intelectuais italianos do século XX. Poeta, romancista, dramaturgo, cineasta, linguísta e jornalista.” Ahhh jornalista, então é cá dos nossos. Segue-se o pingue-pongue de rotina. Jornalismo escrito, televisivo ou radiofónico? Lisbona, Oporto, Coimbra ou Sagres? Política, economia, sociedade ou desporto? Quando a resposta é sport, Pier Paolo Pasolini falam entre si. Continuam a falar. Pier mete a mão no meu ombro como que a dizer “calma aí, já serás atendido”, Paolo consegue finalmente fazer um furo no frasco artesanal de sal que-afinal-é-de-pimenta e Pasolini baixa-se ligeiramente para nos emprestar um livro. Será o momento do fare il portoghese?

Lição número três: não te rias quando os outros estão sérios. Abrimos o livro e vemos imagens, manuscritos, reportagens, pensamentos... Tudo de Pier Paolo Pasolini. “Isto não é futebol, é futebol--poesia”, garantem-me. Mas o que fazem aqui? “Vamos ver a final, como tu. Sempre que há um jogador do Bolonha na selecção italiana, nós acompanhamo-lo até ao final.” E quem é do Bolonha? “Ai és jornalista desportivo? Di-a-man-ti, conheces?” Ahhhh sim, ele é engraçado, porque é mais rápido do que a própria sombra e causa sempre enormes problemas aos adversários, como no jogo com a Inglaterra. “Sim, sim, sim, mas isso não interessa nada. Estamos aqui para acompanhá-lo.” Mas porquê?

Lição número quatro: Pier Paolo Pasolini nasce em Bolonha em 1922. O Bolonha é campeão italiano em 1925 e 1929 mas PPP é muito novo, não se lembra de nada. Na sua adolescência, o Bolonha é campeão em 36, 37, 39 e 41. Pasolini agarra-se ao clube da terra como um adepto mais, frenético, apaixonado, exacerbado. Independentemente da sua influência sócio-político-cultural na Itália dos anos 50/60/70, Pasolini passa invariavelmente os limites quando o assunto é futebol. É visto a jogar de fato e gravata com os miúdos nas ruas mais pobres de Bolonha e de Roma como é visto a debater tácticas, resultados, jogadas e defesas nos cafés à noite. No Verão, passa férias em Grado, um paraíso para os mais abastados na era pré-Maldivas e outros destinos exóticos. Lá, cruza-se com futebolistas a sério, da Serie A, como Fabio Capello, e organiza jogos com eles.

Lição número cinco: nove e meia da manhã de 16 de Março de 1975. Entram uns vinte e tal gadelhudos na Cittadella, campo de treinos nas imediações do Estádio Ennio Tardini (Parma). O Parma joga nesse dia em Pescara e há quem aproveite a deixa para organizar um jogo para a História. De um lado, um onze de electricistas, guionistas, e actores vestidos à Bolonha, capitaneados por Pier Paolo Pasolini. Do outro, 11 juniores do Parma com t-shirts psicadélicas, liderados por Bernardo Bertolucci. É o dérbi dos cineastas. A equipa de Pasolini chama-se Centoventi (pela obra 120 giornate di sodoma), a de Bertolucci é a Novecento (1900, o seu próximo filme com Robert de Niro, Gerard Depardieu e Burt Lancaster). Atenção, isto não é um jogo amigável. As duras críticas públicas de Pasolini ao Último Tango em Paris de Bertolucci (ex--assistente de realização de PPP) dividem os cineastas. Não se sabe ao certo o resultado final: 5-2, 4-2, 19-13. A única certeza é que Pasolini deixa o campo antes do fim a gritar narcisistas. Pasolini, o adepto à nossa esquerda, indica-nos o recorte do jornal Gazzetta di Parma de 19 de Março de 1975, com declarações de Hugo Chessari, jogador da equipa de PPP: “Ele não é como os outros, não joga para se divertir. Só joga para ganhar. Quando vê que está a perder e sem hipótese de recuperar, é isto.”

Lição número seis: em Outono de 1963, Pasolini viaja de Roma, onde vive com a mãe, para Bolonha, onde monta um espectáculo nunca visto. Então não é que junta todos os jogadores do Bolonha para jogarem futebol de bairro com os mais desfavorecidos! É um documentário sobre homossexualidade! A exaltação do corpo, os jovens taciturnos, a masculinidade exacerbada... “Não é preciso ser nenhum Freud”, escreve Pasolini nesse ano, “para se perceber que o futebol é um meio fortemente homossexual. Ao mesmo tempo, a homossexualidade existe e é fortemente reprimida. Sou muito sensível a essa repressão, ao abrigo da família e da religião. O machismo dos políticos representa a má orientação da masculinidade. E o futebol é levado por esse machismo.”

Lição número sete: em Janeiro de 1971, Pasolini escreve sobre o futebol em geral. “Os brasileiros jogam um futebol de poesia, à base de dribles e golos. O futebol europeu é um futebol em prosa, fundado na sintaxe, na organização do jogo colectivo. Antecipo aqui um exemplo sobre Bulgarelli [avançado do Bolonha e campeão europeu pela Itália em 1968], que joga um futebol em prosa. Já Riva [avançado do Cagliari, também campeão em 1968] é um poeta.”

Lição número oito: o primeiro romance de Pasolini sai em 1955, chama-se Ragazzi di Vita e fala sobre a prostituição masculina. Escândalo. É-lhe instaurado um processo por obscenidade pelo tribunal de Milão mas a obra é um sucesso literário. Seis anos depois, sai o seu primeiro filme Accatone. Crónica nua e crua de um proxeneta dos bairros pobres de Roma. Mais um processo judicial. Em 1968, o filme Teorema é sobre um homem misterioso que entra no dia-a-dia de uma família burguesa de Milão e altera-lhe os hábitos com sucessivas relações sexuais a cada um dos membros. Mais uma queixa por obscenidade, mais um processo e mais um êxito popular. Há quem esteja preocupado com esta sequência. Na noite de 1 para 2 de Novembro de 1975, Pino Pelosi, um prostituto de 17 anos, entra no Alfa Romeo de Pasolini para dar uma volta. Param em Ostia, na região metropolitana de Roma. Algumas horas depois, Pasolini é encontrado sem vida, com a cara desfigurada, num campo de futebol (ironia das ironias). Pelosi é rapidamente apanhado pela polícia e diz-se culpado. É condenado a nove anos de prisão. Em 2005, já solto, volta atrás e diz-se inocente. “O crime foi cometido por três pessoas com sotaque do Sul.” Assassinato político? O Ministério Público reabre o processo e recolhe novas provas sobre o assassinato do artista mais controverso da Itália contemporânea.

Lição número nove: nas nossas mãos, temos um recorte do jornal “Stadio” do dia seguinte ao do assassinato. Lê-se: “A Organização de Actores de Roma confirma a data, a hora e o local do jogo [Stadio Favorita, em Palermo] contra uma equipa de antigas glórias do futebol italiano e adianta que vai começar com dez jogadores, por ausência forçada de Pier Paolo Pasolini. Decidiu-se que o seu lugar de extremo-esquerdo não será ocupado por ninguém.”

Lição número dez: Silêncio na mesa. Então? “Sabes quem são os jogadores pasolinianos da Itália?” Diamanti? “Não, esse é só do Bolonha, nunca será um pasoliniano.” Quem, então? “Cassano. Fica atento ao Fantantonio [número dez da Itália]. Se este Europeu é o dele, Pier Paolo Pasolini ficaria orgulhoso. Como orgulhoso ficou no Euro-68, quando a Itália ganhou a finalíssima à Jugoslávia com um golo do Riva.” Esse mesmo, o poeta.

Lição número onze: se não sei quê não sei que mais, junta-te a eles. No avião Varsóvia-Kiev, estamos sentados no 25 D. O 21 A, B e C estão ocupados por italianos vestidos de azul. São os tais, só que o Pasolini de hoje não é o de ontem, nem o Pier ou o Paolo. Todos os dias, trocam de camisola mas a filosofia mantém-se. Devidamente alinhados, eles são um só: Pier Paolo Pasolini. Esse mesmo, o poeta.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

O PRINCÍPIO DO FIM



O primeiro-ministro David Cameron admitiu a hipótese de se realizar no Reino Unido um referendo sobre as relações do país com a União Europeia, dada a progressiva perda de soberania em favor de Bruxelas. Segundo as mais recentes sondagens, a maioria dos britânicos escolheria estar fora da União Europeia.

É bom recordar que De Gaulle, que detestava os ingleses e os americanos, sempre foi contrário à entrada do Reino Unido na então CEE, que os ingleses sempre foram cépticos ao ingresso na União e jamais aceitaram a moeda única, que a adesão sucessiva de países e a celebração de tratados foi realizada, na quase totalidade dos casos, à revelia dos povos interessados. O RESULTADO ESTÁ À VISTA.

A actual crise do euro, que é acima de tudo uma crise da União, não se resolve com fantasmáticas cimeiras e mini-cimeiras, ou com mais uns milhões de euros para aplacar as dívidas soberanas. O problema não é apenas de forma mas de fundo.

Não cabe neste espaço uma larga divagação sobre todos os acidentes de percurso desta União, que começou modestamente por três tratados entre seis países e que sempre ignorou as questões fundamentais. É verdade que face à emergência de novas grandes potências, como o Brasil, a China, a Índia, seria interessante que a Europa se apresentasse a uma só voz, mas tal não é possível. Nem estou certo que daí resultasse notório proveito. É fácil para os países citados, apesar dos seus imensos territórios, a adopção de uma política comum, tendo em conta que as suas populações partilham as mesmas tradições, ou quase. Esta apreciação é igualmente válida para os Estados Unidos ou para a Rússia. Não é, todavia, o caso da Europa. O Velho Continente, velho de mais de vinte séculos, tem no seu seio as mais diversas culturas, sucessivamente objecto de cruzamentos vários ao longo da história, e que as migrações das últimas décadas aprofundaram. Existem, entre os actuais países da Europa, antagonismos seculares, de carácter religioso, de origem étnica, de ideologia política (ainda que mais ao menos submetidos, mas não convencidos, ao monoteísmo de mercado), de estratégia militar, de tipo de mentalidade. Estão os países do sul da Europa mais próximos dos países do norte de África do que dos países do norte da Europa (se excluirmos a actual vaga islâmica intitulada Primavera Árabe). Nunca a União Europeia falará a uma só voz, a menos que sob a égide de uma potência tutelar, como pretendeu militarmente Hitler e parece agora pretender economicamente Angela Merkel.

Eu sei que é politicamente incorrecto profetizar o fim da União Europeia. Mas acredito que esteja próximo. Ela foi criada, além de outras razões mais explícitas e economicamente defensáveis, para evitar o eclodir de um terceiro conflito armado na Europa, de imprevisíveis consequências. E se a Segunda Guerra Mundial foi já verdadeiramente mundial, uma terceira será apocalíptica. Mas o caminho preconizado foi errado. A criação de uma super-burocracia em Bruxelas ajudou à desintegração da União. Não é novidade que os povos europeus nutrem o maior desprezo por Bruxelas, que lhes leva o dinheiro, lhes impõe normas surrealistas (no mau sentido), numa completa ignorância das realidades nacionais. Aliás as instituições europeias nem sequer funcionam, com um parlamento sem poderes, uma Comissão não eleita e um Conselho que não funciona, como ainda recentemente se constatou, observando o confrangedor espectáculo das reuniões Merkel/Sarkozy, que o mais desprovido encenador se recusaria a subscrever.

Muito, muito mais haveria a dizer, mas fiquemos hoje por aqui. Convém que comecemos a preparar os espíritos.