sábado, 30 de junho de 2012

O ENCONTRO DE GENEBRA


O encontro de ontem em Genebra sobre a situação na Síria nada adiantou de substancial para a resolução do conflito. Segundo o  PÚBLICO, KofiAnnan, ex-secretário-geral da ONU e nomeado por aquela organização para a mediação do conflito, declarou que “Estamos aqui para chegar a um acordo quanto às linhas mestras e princípios de uma transição política na Síria que vá ao encontro das legítimas aspirações do povo sírio. Estamos à beira de uma crise internacional de enorme gravidade, que ameaça ultrapassar as fronteiras. Ninguém duvide dos perigos gravíssimos que este conflito representa para os sírios, para a região e para o mundo”. Sábias palavras.

Estiveram presentes no encontro representantes dos Estados Unidos, Reino Unido, França, China e Rússia, e ainda a Turquia, o Qatar, o Kuwait e o Iraque, os secretários-gerais da Liga Árabe e da ONU e a alta-representante para os Negócios Estrangeiros da União Europeia. A americana Hillary Clinton e o britânico William Hague, pessoas de duvidosa moralidade política e mesmo cívica, insistiram na partida de Bashar Al-Assad e do seu círculo, enquanto Sergueï Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia reiterou que o resultado do processo político da Síria é uma tarefa para os sírios. O ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Yang Jiechi, afirmou que o processo político de transição só pode ser dirigido pelos sírios e aceite por todos os principais interessados sírios. Não estiveram representados nem o governo da Síria, nem a oposição síria, nem o Irão (um dos principais apoiantes do regime de Assad) nem a Arábia Saudita (um dos principais fornecedores de armas e dinheiro à oposição síria).

Foi aceite o princípio da criação de um governo de transição com a participação das partes em confronto, que Hillary Clinton deseja submeter à aprovação do Conselho de Segurança. Também a Al Jazira noticia o encontro, embora as informações deste órgão não possam considerar-se hoje isentas, na medida em que é o porta-voz do governo do Qatar, uma das partes interessadas no conflito.

A hipótese de uma intervenção armada ocidental e dos países do Golfo está provisoriamente posta de parte, dadas as implicações extraordinárias que Annan teve ocasião de salientar. No entanto, a guerra civil está a ser desencadeada por interpostos actores no terreno e só tenderá a agravar-se com o passar do tempo. Evidentemente que alguns países, e muito em especial os negociantes de armamento, desejam ardentemente a eclosão de um conflito generalizado, se possível uma Terceira Guerra Mundial. O Médio Oriente, que é um dos locais mais propícios a conflitos regionais e à experimentação das novas tecnologias (o caso do Iraque é um exemplo recente) torna apetecível uma guerra na Síria e o seu alastramento ao Irão, cujo poder militar assusta Israel e as monarquias do Golfo. Também um conflito na zona permitirá a Israel o protelar da solução do conflito palestiniano e o alargamento do seu território. A expulsão dos russos da base naval de Tartous, único porto com facilidades para Moscovo no Mediterrâneo, é altamente desejada pelo Ocidente. A posição da Turquia evoluiu de aliada a opositora do regime de Assad, por pressões da NATO, em troca de um fechar de olhos à islamização do país por Erdogan. Claro, que é sempre possível um golpe de Estado militar em Ancara, como já houve anteriormente outros, que deponha o governo actual. A situação no Egipto mantém-se interrogativa, com a eleição de Morsi para a presidência mas sob o controlo dos militares. A clarificação do poder no Cairo é fundamental para a definição de uma estratégia a médio prazo.

Pode dizer-se, por isso, que do encontro de Genebra não saíram mais do que intenções, piedosas ou não, sobre a situação na Síria.

Receio que a tão aplaudida, e incentivada pelo Ocidente (Bernard Henri-Lévy até escreveu um livro e realizou um filme sobre a intervenção na Líbia, conforme Pierre Assouline, no seu blogue "La république des livres"), "Primavera Árabe", mais não tenha sido do que o prelúdio da Terceira Guerra Mundial. Insondáveis são os desígnios do governo-sombra mundial.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

BALOTELLI EXPULSA ALEMANHA DO EURO



Mario Balotelli, de 21 anos, jogador da selecção italiana, natural de Palermo (Sicília), filho de pais ghaneses, actualmente ao serviço do Manchester City, marcou hoje dois golos contra a selecção da Alemanha, expulsando-a do Euro 2012.

Presumo que Angela Merkel, mulher de maus costumes políticos, deva ter ficado irritada não só com a derrota do seu país mas principalmente pelo facto de o ter sido pela Itália, um país mediterrânico, a que ela atribui maus costumes de trabalho, de honestidade e de organização, mas sobretudio por o autor dos golos ter sido um jogador (bem) negro, com ascendência na África profunda.


Já o Führer se irritara com a vitória de um negro norte-americano nos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936. Espera-se que Merkel engula (salvo seja) Balotelli, pois, como dizia Marx, os acontecimentos repetem-se na História. O que foi originalmente uma tragédia surge uma segunda vez como farsa, o que não se deseja.

Está, pois, de parabéns a selecção italiana, contrariando a previsão idiota de Michel Platini, presidente da UEFA e figura muito controversa nos meios futebolísticos, que declarou desejar ver a Alemanha na final do Campeonato. Poderia perguntar-se o que faz correr Platini?

GLÓRIA A NANI NOS RELVADOS...



Após uma brilhante exibição contra a Espanha, Portugal perdeu nos penalties. Falta de sorte, inabilidade ou mérito do adversário? Deve, todavia, referir-se a forma excepcional como Portugal chegou às meias-finais. Mais um esforço, ou iluminação, e estaríamos no fim do Campeonato.

É, contudo, da mais elementar justiça, salientar a prestação de um jogador discreto mas indispensável, e a sua relevante actuação em todos os desafios, dando aos seus colegas uma assistência imprescindível para os golos que marcámos nos jogos pretéritos. Falo, obviamente, de Nani.


Este avançado, como se dizia antigamente, distinguiu-se em todas as partidas e é uma pedra angular da selecção nacional. Como o é do Manchester United.

Julgo que Nani, que está no auge da sua carreira, poderá ser considerado, em breve, o melhor jogador português, sem demérito para os seus colegas de equipa.


Por isso, aqui lhe exaramos público louvor, pela sua actuação nos relvados.

domingo, 24 de junho de 2012

MORSI, PRESIDENTE DO EGIPTO

Mohamed Morsi

Mohamed Morsi, candidato à 2ª volta das eleições presidenciais egípcias, venceu a disputa com 51% dos votos (13,2 milhões) contra o seu adversário Ahmed Shafiq, que obteve 49% (12,3 milhões), informou hoje a Comissão Eleitoral.

Vai, assim, o Egipto, pela primeira vez na sua história, ter um presidente oriundo da Irmandade Muçulmana.

Os resultados do escrutínio, que não contemplam as abstenções mas apenas os votos expressos, mostram um país dividido ao meio, entre os apoiantes de um islamismo menos ou mais radical (a maioria dos salafistas votou em Morsi) e os defensores de um Egipto plural (laicos, muçulmanos não radicais, cristãos coptas, pós-marxistas e pan-arabistas, na esteira de Nasser).

Continuando o Conselho Superior das Forças Armadas a deter o poder, não havendo nem Parlamento nem nova Constituição (que vai ser elaborada por uma comissão nomeada ad hoc), os poderes de Morsi são muito reduzidos (nada que se possa comparar aos de Nasser, ou Sadat, ou Mubarak).

Quero crer que Morsi assumirá, pelo menos por enquanto, uma posição apaziguadora, não só para tranquilizar os mais receosos relativamente à eleição de um presidente islâmico, nomeadamente os cerca de 15% de cristãos, como para igualmente sossegar o chamado mundo ocidental, para quem o Egipto constitui uma peça chave no plano geo-estratégico. Além do que o novo presidente não terá qualquer interferência na vida e actividades das Forças Armadas, que velarão pelos seus interesses e pelos compromissos internacionais.

Poderá a Irmandade Muçulmana ser tentada a legislar sobre matéria de costumes, como está a acontecer na Tunísia (com grande contestação popular), mas aí arrisca-se a comprar senão uma guerra civil, pelo menos um clima de absoluta intranquilidade que a impedirá de governar.

Praça At-Tahrir, hoje

 Faz parte dos princípios do Islão, como fazia parte do Cristianismo (até à Revolução Francesa) a confusão entre a religião e a política. A instalação de regimes pró-marxistas na Argélia, na Tunísia, na Líbia, no Egipto, na Síria e no Iraque, após a independência, tentou inverter essa perniciosa tendência, embora à custa de ditaduras, que reprimiram o fundamentalismo mas não fizeram a obra pedagógica que as circunstâncias impunham. Os resultados dos actos eleitorais recentes representam uma espécie de "vingança de Deus", como poderia escrever Gilles Kepel. Mas a globalização mudou muita coisa. Sei que os camponeses do vale do Nilo não dispõem da mesma informação que os estudantes tunisinos, ou a classe média síria, ou mesmo o que resta da dizimada população do Iraque, uma das mais evoluídas do mundo árabe. Mesmo assim, o contacto permanente com os milhões de turistas estrangeiros que têm visitado o Egipto nos últimos anos abriu-lhes os olhos para muita coisa. E se os resultados das eleições para o Parlamento egípcio (entretanto dissolvido pelo Conselho Superior das Forças Armadas) deram aos Irmãos e aos salafistas 70% dos votos, tal deveu-se mais às obras sociais que a Irmandade desenvolveu no país durante os últimos anos (perante a indiferença dos governos) e à influência da Arábia Saudita que, por razões ainda não suficientemente dissecadas, tem despejado milhões de dólares nos cofres salafistas.

Os islamistas celebraram hoje com grande entusiasmo a vitória de Morsi na praça At-Tahrir (da Libertação). Estão os egípcios finalmente libertos de Mubarak, que fez algumas coisas boas pelo Egipto, mas manteve uma rigorosa repressão e permitiu uma corrupção imensa e um alargamento desmesurado do fosso entre ricos e pobres, esvaziando progressivamente a classe média, como acontece agora na Europa, em alguns países, com resultados que se revelarão, a curo prazo, catastróficos. Não sei, contudo, se ficarão libertos da sharia, que não agradará certamente a pelo menos metade da população.

Por isso penso que, a partir de agora, a situação deverá ser tratada com pinças, pois só faltava (e muitos gostariam) que após uma revolução que se pretendeu "democrática" e "libertadora" o país mergulhasse numa guerra civil.

sábado, 23 de junho de 2012

A REVOLUÇÃO SEGUE DENTRO DE MOMENTOS



A praça At-Tahrir, no Cairo, voltou a encher-se de uma multidão calculada em dezenas de milhar de pessoas, segundo as informações registadas pela Al Jazira. Protestam os egípcios pelo facto de o Conselho Superior das Forças Armadas (CSFA) não ter ainda divulgado os resultados das eleições presidenciais do passado fim-de-semana. A multidão acusa as Forças Armadas de um golpe militar. O CSFA afirma que lhe cabe proteger as instituições do Estado e garantir a estabilidade e a segurança nacional, e que agirá firmemente contra toda e qualquer alteração da ordem pública.

Entretanto, ignora-se a evolução do estado de saúde do ex-presidente Hosni Mubarak, condenado a prisão perpétua e dado anteontem como clinicamente morto.

Ambos os candidatos que passaram à segunda volta, Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana e Ahmed Shafiq, último primeiro-ministro de Mubarak, clamam vitória.

Não só pelos múltiplos interesses, de toda a ordem, em que estão envolvidos como pelo papel geo-estratégico do país, nunca os militares abandonarão o comando da situação política do Egipto. Poderão tolerar um simulacro de democracia "ocidental", desde que não afecte a sua linha de acção. Aliás, como temos repetido, a democracia não se esgota em eleições. Ainda há poucos anos, Tony Blair, contra a vontade da esmagadora maioria do povo britânico, decidiu coligar-se com o seu amigo George Bush para invadir o Iraque. Apenas porque tinha os votos do Parlamento.

O Egipto está muito mais pobre e infeliz desde que, imitando a revolução tunisina (outro equívoco) se rebelou contra Mubarak. E este apenas não continuou porque perdera o apoio das mais altas patentes militares. Já estava no cargo há 30 anos e queria impor o filho como sucessor. Erro fatal.

Quero acreditar que a maioria do povo egípcio (não falo dos milhares de pessoas da praça At-Tahrir mas dos 80 milhões de habitantes do país), considera que a aventura já foi longe demais. O turismo esfumou-se, os investimentos caíram, a pobreza alastra pelas ruas.Mas è tardì, como se costuma dizer nas óperas italianas.

O CSFA procura uma saída para a situação que ele mesmo permitiu, não prevendo a excepcional votação nos partidos islâmicos. Por isso, já dissolveu o Parlamento. Compete-lhe agora decidir se aceita um presidente da Irmandade Muçulmana, mesmo com poderes residuais (não há Constituição) ou se impõe o marechal Ahmed Shafiq, um homem do antigo regime, mas a quem se reconhece obra feita.

Tudo está em aberto. Aguardemos as próximas horas.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

MAIS UM ESFORÇO


 



 Encontrei há anos, num bouquiniste do Sena uma obra que me chamou a atenção. Tinha por título Français, encore un effort e como subtítulo "l'homosexualité et sa répression" e era seu autor Pierre Hahn. Todos conhecemos a expressão célebre "Français, encore un effort si vous voulez être républicains", utilizada por Sade no Quinto Diálogo de La philosophie dans le boudoir. A frase do Divino Marquês suscitou-me a curiosidade e comprei o livro, uma edição de 1970. Perdido entre as centenas de livros que aguardam leitura, só agora, por mero acaso, percorri as suas 200 páginas. 

Trata-se de uma recolha de inúmeras citações sobre a homossexualidade, desde os mais respeitáveis clássicos gregos e romanos até aos autores modernos. Como não é propriamente respeitada a ordem cronológica mas as referências estão agrupadas segundo o critério do autor, temos Karl Marx junto a Platão, Nietzsche ao lado de Aristófanes, Plutarco seguido de Stendhal, Ovídio perto de Marcuse, e por aí adiante.

Mais para os nossos dias, encontramos Freud, Jung, Marañon, Dumézil, Kinsey, Wilhelm Reich, Foucault, Jean Monod, Sartre, Simone de Beauvoir, Kropotkine, Trotsky, Rimbaud, Malaparte, Lautréamont, Fourier, Genet, Lorca, Walt Whitman ou Claude Lévi-Strauss, de quem me apetece transcrever uma das suas citações, em Tristes Tropiques: «Les Nambikwara résolvent aussi le problème d'une autre manière: pour les relations homosexuelles qu'ils appellent poétiquement: tamindige kihandige, c'est-à-dire "l'amour-mensonge". Ces relations sont fréquentes entre jeunes gens et se déroulent avec une publicité beaucoup plus grande que les relations normales. Les partenaires ne se retirent pas dans la brousse comme les adultes de sexes opposés. Ils s'installent auprès d'un feu de campement sous l'oeil amusé des voisins. L'incident donne lieu à des plaisanteries généralement discrètes; ces relations sont considerées comme infantiles, et l'on n'y prête guère attention (...)

Les rapports homosexuels sont permis seulement entre adolescents qui se trouvent dans le rapport de cousins croisés, c'est-à-dire dont l'un est normalement destiné à épouser la soeur de l'autre à laquelle, par conséquent, le frére sert provisoirement de substitut.».

É claro que Lévi-Strauss encontrou nas suas andanças pelos trópicos outras formas mais explícitas e evidentes destas relações, algumas das quais também são citadas neste livro. Mas a que transcrevi pareceu-me ilustrar bem o carácter vanguardista dos povos a que, durante muitos anos, apelidámos de "primitivos".






quarta-feira, 20 de junho de 2012

MUITO ESTRANHO


Um homem, que diz ter actuado por convicções religiosas, fez hoje quatro reféns numa agência bancária em Toulouse. O sequestrador disparou inicialmente alguns tiros para o ar, a polícia interveio, os reféns foram libertados e o atacante foi ferido e detido, ignorando-se o seu estado. Segundo as forças policiais, o homem referiu pertencer à Al-Qaeda (faz parte do guião) e que não agiu por dinheiro, pretendendo apenas falar com a unidade policial que matou há pouco tempo, também em Toulouse, o suposto islamista Mohamed Merah.

TUDO MUITO ESTRANHO.

domingo, 17 de junho de 2012

AS ELEIÇÕES GREGAS


As eleições legislativas de hoje, na Grécia, segundo os dados mais recentes, com uma significativa abstenção de 38% dos eleitores, apesar da situação de crise em que o país se encontra mergulhado (o que traduz a desilusão definitiva de uma parcela importante dos cidadãos relativamente à política), registou os seguintes resultados: Nova Democracia: 29,7%; Syriza: 26,9 %; PASOK: 12,9%. Os outros partidos obtiveram resultados pouco significativos.

Com estes números, a Nova Democracia, de Antonio Samaras não poderá governar sozinha, apesar do bónus de 50 deputados que é atribuído (uma peculiaridade, ou uma excentricidade, grega) ao partido mais votado.

Afirmou o PASOK que deseja um governo de unidade nacional e que aceita uma coligação com a Nova Democracia, desde que o Syriza seja incluído, mas o Syriza já afirmou que permanecerá na oposição.

Havia grandes expectativas quanto a uma vitória do Syriza, pois ela permitiria testar as reacções internacionais, já que o Syriza, embora aceitasse pagar as dívidas contraídas pelo país, rejeitava a aplicação do memorandum da troika, exigindo novas condições para solver os compromissos gregos. Deixaram-no os eleitores 2 pontos abaixo da maioria obtida pela Nova Democracia. Aguardemos as consequências.

Estou certo que, face a estes resultados e à urgência de liquidez de que carece a Grécia, será encontrada uma solução rápida de governação, mesmo que seja uma solução coxa e provisória. Mas também não ignoro que os gregos não esquecem que foram a Nova Democracia e o PASOK que, alternando sucessivamente no governo, durante anos, conduziram o país à situação catastrófica em que se encontra. O Syriza representava, e continuará possivelmente a representar, uma alternativa à classe política que tem desgovernado o país. Mesmo sabendo-se das idiossincrasias da política grega, da influência das "famílias", de todas as famílias possíveis (e suas alianças) e do peso inacreditável que a Igreja Ortodoxa Grega tem no país,  parece que o Syriza, classificado de extrema-esquerda mas que nada tem a ver com a extrema-esquerda tradicional que nos habituámos considerar, representaria uma lufada de ar fresco na sociedade helénica. A União Europeia e a Alemanha respiraram de alívio com o resultado das eleições de hoje; um suspiro todavia provisório, pois, como escrevi há dias, tudo continua em aberto.

Entre eleições, repetição de eleições, referendos, repetição de referendos, cimeiras, repetição de cimeiras, mini-cimeiras e encontros a dois, a três e a quatro, a crise permanece, pois já nada tem a ver com os pretextos invocados. Trata-se de uma crise não conjuntural, mas verdadeiramente estrutural, de um problema endémico da Zona Euro e da União Europeia, cujo dissolução será tão mais rápida quanto mais tarde demorar a aplicação de autênticas medidas de salvação continental.

Ouviremos amanhã em Atenas, em Bruxelas, em Berlim, certamente que também em Lisboa, discursos de circunstância. Nada adiantarão. Protelarão as verdadeiras soluções ou, hipótese não descartável, começar-se-ão a fazer as malas para uma viagem cujo destino se desconhece.

Os resultados das eleições de hoje na Grécia mais não fizeram que adiar uma hipótese de repensar o futuro.

Continua, pois, tudo em aberto.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

ROGER GARAUDY



O filósofo francês Roger Garaudy, um dos espíritos mais inquietos e brilhantes do século XX, faleceu anteontem, dia 13, com 98 anos, em Chennevières (Val-de-Marne). O corpo será incinerado na próxima segunda-feira, às 15 horas, no crematório de Champigny-sur-Marne.

Nascido em 17 de Julho de 1913, em Marselha, no seio de uma família protestante, converteu-se depois ao catolicismo e finalmente ao islão, nos anos 80 do século passado, numa incessante busca da verdade.

Agregado de Filosofia e doutor em Letras, aderiu em 1933 ao Partido Comunista Francês (PCF). Em 1940, foi internado durante 30 meses num campo do governo de Vichy, na Argélia. Em 1945, ingressou no comité central do Partido e em 1956 no bureau político. Foi eleito deputado pelo Tarn às assembleias constituintes (1945-1946) e à primeira assembleia nacional (1946-1951). Representou o departamento do Seine no Palácio Bourbon (1956-1958) e no Senado (1959-1962).

Ensinou filosofia em Albi, em Argel e em Paris (1958-1959). Foi depois maître de conférences na Universidade de Clermont-Ferrand (1962-1965) e professor titular da Universidade de Poitiers (1969-1973). A partir do fim dos anos sessenta, as suas posições contestatárias (Garaudy fora um dos expoentes maiores do marxismo em França, como a sua obra atesta), tornaram-no no enfant terrible do PCF. Tendo denunciado a "normalização" da Checoslováquia e acusado Georges Marchais de ser o coveiro do PCF, foi excluído do Partido em 1970.

Na sua acção em defesa dos pobres e dos injustiçados, Garaudy contou com o apoio do célebre Abbé Pierre, fundador do Movimento de Emaús e durante décadas a figura mais popular de França.

A publicação do livro Les Mythes Fondateurs de la Politique Israélienne (1996), valeu-lhe uma condenação por contestação de crimes contra a humanidade. Como escrevemos aqui, e também aqui, Garaudy não negou a existência de câmaras de gás nos campos de concentração dos judeus e de outros indivíduos perseguidos pelo regime nazi, apenas pondo em dúvida a veracidade desta tese, face às investigações que nas últimas décadas têm sido realizadas.

Autor de uma vasta obra, sobre variados assuntos, nomeadamente filosofia, religião, estética, questões sociais, diálogo de civilizações, o marxismo, a política de Israel, o imperialismo americano e o islão, Garaudy  foi largamente traduzido em português, à excepção dos últimos livros, desde que a publicação dos mesmos foi proibida em França.

Neste blogue, dedicado a Garaudy, encontra-se interessante informação sobre a sua vida e obra.

Após a condenação, que o levou a deixar a França, Garaudy habitou sobretudo nos países islâmicos, ensinando e escrevendo, vindo finalmente a morrer na sua pátria.

A longa vida de Garaudy, cujas posições muitos consideram controversas, especialmente a partir do momento em que condenou o sionismo, assumindo a defesa da causa palestiniana, traduziu-se na procura contínua dos valores mais autênticos e caros para a felicidade do Homem.


quinta-feira, 14 de junho de 2012

SUPREMO TRIBUNAL EGÍPCIO DISSOLVE PARLAMENTO



Como escrevi anteontem está tudo em aberto na Europa e na África do Norte. Assim, o Supremo Tribunal Egípcio dissolveu hoje o Parlamento, considerando que as eleições do ano passado, que deram a vitória aos islamistas, foram inconstitucionais. Foi também anulada a lei da recém-eleita Assembleia que proibia as figuras do anterior regime de se candidatarem à presidência do país.

A Irmandade Muçulmana considerou a decisão como um golpe de estado, dado que nestas circunstâncias nada impedirá o marechal Ahmed Shafiq (ex-primeiro-ministro de Mubarak), um dos candidatos à segunda volta no próximo fim-de-semana, de vir a ser eleito, como se espera, para a mais alta magistratura da nação.

Admite-se igualmente que, dissolvido o Parlamento, o Conselho Supremo das Forças Armadas (CSFA) chame a si o poder legislativo e nomeie uma comissão para redigir a nova Constituição.

Esta medida surge como uma contrapartida à condenação em tribunal do antigo presidente da República Hosni Mubarak. O CSFA, o órgão que governa de facto o Egipto, tem adoptado desde a queda do regime uma série de disposições que ora vão ao encontro das aspirações dos islamistas e outros oposicionistas, ora satisfazem as pretensões dos partidários do regime deposto. Uma suposta política de neutralidade visando equilibrar os pratos da balança. Da revolução egípcia se poderá dizer, pelo caminho que as coisas levam, que, glosando Lampedusa,  foi preciso mudar tudo, ou quase, para que tudo, ou quase, permanecesse na mesma.

YANNICK DJALÓ (VII)


Segundo as mais recentes notícias, Yannick Djaló decidiu divorciar-se, irreversivelmente, de Luciana Abreu. Em comunicado enviado à imprensa, o jogador escreve: «Divergências de vária ordem levam-me a pôr termo à minha ligação com a Luciana. A existência do meu filho mais velho (Chrystyan, de 4 anos) nunca foi aceite pela Luciana, dificultando o meu papel de pai. Estou certo das minhas responsabilidades familiares e continuarei a cumprir todas elas. A minha vida profissional não se compadece com uma vida social activa».

Parece que na origem da separação terão estado questões mundanas e materiais, entre as quais um Porsche que Luciana terá passado para o  nome da irmã. O casal tem duas filhas, Lyonce Viiktória e Lyanni Viiktória, sendo o filho fruto de uma anterior relação com Ana Sofia Miguel e do qual é padrinho Miguel Veloso, juntamente com Nani, um dos futebolistas mais amigos de Yannick.

Desejamos que Yannick Djaló, um jogador que merece a nossa simpatia e tem sido mal aproveitado pelos clubes que têm usufruído dos seus préstimos, possa refazer em breve a sua vida sentimental com quem o aprecie devidamente. Não lhe faltarão, certamente, propostas.

terça-feira, 12 de junho de 2012

ANTES LEVASSEM HOMENS

Valérie Trierweiler


Um tweet de Valérie Trierweiler, companheira do novo presidente, François Hollande, rebentou como uma bomba na cena política francesa. Nele manifestou Valérie o seu apoio a Olivier Falorni, um socialista dissidente que foi o segundo classificado, em La Rochelle, na primeira volta das eleições legislativas do passado domingo. Acontece que a posição oficial do Partido Socialista, aliás expressa pelo próprio presidente da República, é a de apoiar naquele círculo Ségolène Royal, candidata derrotada nas anteriores eleições presidenciais e anterior companheira (durante 30 anos) e mãe dos quatro filhos de François Hollande. A partir da sua eleição em La Rochelle, Ségolène aspira ser eleita para a presidência da Assembleia Nacional.

Esta atitude de Valérie está a provocar a maior perplexidade e incómodo no Partido Socialista, ao ponto da própria secretária-geral, Martine Aubry, ter pensado inicialmente que o tweet era falso. O facto da nova "primeira-dama" ser jornalista e ter declarado não desejar abdicar da sua carreira havia já levantado sérias interrogações quanto à promiscuidade entre a política e o jornalismo. O acontecimento de hoje configura um ajuste de contas entre duas mulheres, a antiga e a actual, o que nada contribui para o prestígio das instituições.

Durante a V República, as "esposas" sempre se comportaram com a adequada reserva no campo político. Yvonne De Gaulle nunca se pronunciou publicamente, embora se possa admitir que, em privado, aconselharia o general. Claude Pompidou manteve uma discrição impecável ao longo do mandato do marido. Anne-Aymone Giscard D'Estaing, uma aristocrata, foi uma presença digna ao lado de Valéry. O próprio François Mitterrand, pródigo em aventuras, conservou Danièle sempre a seu lado,  em cerimónias oficiais, e não consta que tivesse levado alguma vez a sua amante Anne Pingeot para o Eliseu. De Chirac, ainda que dado a aventuras, sempre viveu, e vive, com a sua esposa Bernadette.

A confusão começou, obviamente, com Nicolas Sarkozy. Os sucessivos desentendimentos e reconciliações com Cécilia Ciganer-Albéniz, até à ruptura final, já depois de instalados no Eliseu, alimentou durante meses a crónica social e a coscuvilhice doméstica. E o casamento (de encomenda) com Carla Bruni, dias depois da separação, em nada prestigiou quer os envolvidos, quer a função presidencial.

Removido que foi Sarkozy, surge agora o caso Hollande. O seu "divórcio" de Ségòlene data das anteriores eleições presidenciais, em que esta perdeu a favor de Sarkozy. François Hollande nunca aceitou bem a candidatura da mulher á presidência e a separação consumou-se. Refez a vida com Valérie Trierweiler, que é hoje a "primeira-dama" de França, "the first girl-friend" na expressão americana.

A presente atitude de Valérie causou profundo desagrado no PS francês e arrisca-se a ter repercussões na segunda volta das legislativas do próximo domingo. Tanto mais que parece não desejar esta senhora abandonar a profissão de jornalista, apesar de instalada no Eliseu.

Naturalmente que a direita tende a aproveitar-se desta situação, e um conselheiro regional UMP já declarou: « c'est 'Dallas' à l'Elysée!".

Considero que a atitude de Valérie Trierweiler prejudica gravemente a imagem que Hollande se pretendia dar de um "presidente normal" e que o seu "ataque" a Ségolène Royal (e sou insuspeito porque nunca apreciei Ségolène) é do mais duvidoso gosto.

Com a confusão começada com Sarkozy e agora continuada por Hollande das sucessivas entradas no Eliseu de mulheres pouco recomendáveis para a função, apetece dizer:  "Antes levassem homens".

NOVOS INCIDENTES NA TUNÍSIA



Graves incidentes na Tunísia determinaram o restabelecimento do recolher obrigatório em Tunis e mais sete zonas do país, na sequência de acções violentas perpetradas pelos salafistas e que provocaram numerosos feridos e danos materiais.

A vaga de violência eclodiu ontem com o ataque dos extremistas a tribunais, esquadras da polícia e edifícios estatais, utilizando cocktails Molotov, pedras, armas de fogo e armas brancas. Em Tunis os confrontos verificaram-se principalmente nas cités de El Intilaka e Ettadhamen (na periferia da cidade), tendo depois alastrado aos bairros residenciais.

Parece que esta nova onda de incidentes, os piores desde a revolução do ano passado que levou à queda do regime de Ben Ali, foi inicialmente desencadeada por causa de uma exposição numa galeria de arte de La Marsa (uma espécie de Cascais tunisina) que conteria obras que os fundamentalistas consideraram ofensivas do islão.

O mufti da Tunísia, Othman Batikh, pediu à assembleia constituinte que aprovasse leis contra a blasfémia, afirmando que existem linhas vermelhas religiosas que não podem ser ultrapassadas.

Estes confrontos colocam problemas ao Ennahda, o partido islâmico supostamente moderado que governa a Tunísia, já que o líder da Al-Qaeda, Ayman Al-Zawahiri, apelou aos tunisinos para defenderem os princípios islâmicos contra o Ennahda, que acusou de trair a religião.

O alastrar, aliás não totalmente imprevisível, do fundamentalismo islâmico no norte de África tem causas próximas e remotas, entre estas todas as asneiras do Ocidente durante o período de colonização. E no passado recente o apoio da "comunidade internacional" aos regimes ditatoriais que, pelo menos, constituíam um dique às aventuras do radicalismo religioso. Outro disparate foi a precipitação do Ocidente em apoiar incondicionalmente todas as rebeliões que eclodiram após a insurreição tunisina, à excepção, óbvia, das monarquias do Golfo. Os líderes ocidentais, por ignorância nata e oportunismo duvidoso, atropelaram-se para ver quem chegava primeiro, alguns inspirados por falsos filósofos, como Bernard-Henri Levy.

Sendo a Tunísia o país globalmente mais culto da África do Norte, com um razoável nível de instrução da sua população, nomeadamente a jovem, compreende-se que os tunisinos, em especial os laicos e/ou de esquerda, se sintam traídos pela evolução dos acontecimentos, quando muitos deles (ingenuidade da juventude) contribuíram decisivamente para o derrube do regime e a instauração do que julgavam poderia vir a ser uma democracia (mesmo com todos os defeitos inerentes às democracias). Estão agora confrontados com um dilema: ou aceitam uma ditadura religiosa ou provocam uma nova revolução

Como escrevemos esta manhã, tudo está em aberto na Europa e no Norte de África.

EM VÉSPERA DE SANTO ANTÓNIO



Porque hoje é véspera de Santo António, porque os bairros populares estão em festa, porque Amália é sempre grande, e também porque o marujo português é (ou foi) um símbolo desta capital, perfilho a escolha do meu amigo Fernando Heitor, que publicou, no Facebook, este fado:

TUDO EM ABERTO



Finalmente, no passado fim-de-semana, a Espanha pediu à União Europeia um empréstimo, ou resgate, de 100 mil milhões de euros, a juros aparentemente mais favoráveis do que os negociados com a Irlanda e Portugal. A Irlanda já protestou; Portugal, não. Continuam a não ser bem conhecidas as condições do empréstimo à Espanha, que o governo de Rajoy se empenha em disfarçar, apesar das declarações não coincidentes feitas pelo ministro alemão das Finanças e pelos "funcionários" da União Europeia. Então, esperemos.

Depois da situação sui generis da Islândia, dos empréstimos à Grécia, à Irlanda e a Portugal, deste "misterioso" empréstimo a Espanha, Chipre encontra-se em fila de espera para obter os fundos que evitem a bancarrota da república. Por sua vez, a Itália tenta ultrapassar dificuldades porventura inultrapassáveis. O panorama em França e no Reino Unido também não é brilhante, e a própria Alemanha se encontra em dificuldades. No leste europeu, a maioria do qual não pertence à zona euro, os problemas avolumam-se.

No próximo domingo, dia 17, realiza-se a segunda volta das eleições legislativas em França. E também as novas eleições legislativas na Grécia. Igualmente, ocorre a 2ª volta das eleições presidenciais no Egipto, de cujo resultado muitas coisas dependem.

Na Síria, continua a confrontação entre as forças leais ao regime de Bashar Al-Assad e a oposição apoiada pela chamada "comunidade internacional" e pelos países do Golfo. A Líbia está mergulhada em guerra civil. A Tunísia aguarda uma Constituição e um governo não provisório. A Argélia está no rescaldo das eleições legislativas. O futuro de Marrocos permanece uma incógnita. No Mali agitam-se os islamistas. O conflito israelo-palestiniano permanece sem solução.

Parece, pois, que, estando tudo em aberto, as próximas semanas serão decisivas para clarificar, positiva ou negativamente, a situação na Europa, mormente na Europa meridional e também no norte de África, o que equivale a dizer, no mare nostrum, o Mediterrâneo. Seria bom que os dirigentes políticos (já nem falo dos povos cujo esclarecimento é sistematicamente iludido) se dessem conta da responsabilidade do momento e das consequências, porventura fatais, de uma negligente ou indigente gestão da crise, da que se avizinha e da que já existe.

Há quem sustente que não são necessários homens providenciais. Duvido. Eles costumam surgir em épocas de grande aflição, umas vezes para bem do mundo, outras para mal. Esperamos, e desejamos, que desta vez surjam para bem.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

ATÉ OS PINGUINS



Segundo o PÚBLICO, os pinguins são uns depravados sexuais que se entregam largamente à homossexualidade, não só entre adultos mas incluindo pederastia, violações e necrofilia.

Os hábitos sexuais dos pinguins foram descobertos por George Murray Levick, durante a sua viagem à Antártida entre 1911 e 1912. Como as conclusões a que chegou o chocaram profundamente (fora educado na hipócrita moral vitoriana), quando regressou a Inglaterra decidiu publicar apenas em grego, e em tiragem reduzida e separada, a parte relativa aos hábitos sexuais destas aves, editando em inglês os resultados gerais da expedição. Ficou, assim, ignorada durante décadas a pesquisa de Levick, a bem da decência e para sossego das famílias, como poderia escrever Jorge de Sena.

Cinquenta anos mais tarde, outros cientistas chegaram às mesmas conclusões, ignorando o trabalho pioneiro de George Levick. Até que foi agora descoberta, no Museu de História Natural de Londres, uma cópia daquela investigação, que o curador do Museu, Douglas Russell decidiu publicar no Polar Record, ultrapassadas que estão hoje, no que às aves diz respeito, as condicionantes sexuais. Aparte alguns aspectos mais datados e circunstanciais, as conclusões a que chegou George Murray Levick permanecem válidas.

Se a investigação de Levick tivesse sido divulgada à época, é bem possível que, em nome dos bons costumes, a "comunidade internacional" de então se empenhasse numa expedição para extermínio daqueles simpáticos animais.

domingo, 10 de junho de 2012

UMA PAIXÃO DE CAMÕES




Muito se tem escrito sobre a vida e a obra de Luís de Camões (1524-1580), considerado o maior (senão um dos maiores) poeta português e uma das grandes figuras da literatura ocidental. Mas há alguns aspectos da sua vida que ainda hoje são pouco claros, ou objecto de controvérsia, e outros que foram apenas levemente aflorados e que a ortodoxia oficial prefere ocultar. Entre eles inclui-se a paixão que Camões terá nutrido pelo jovem D. António de Noronha (1536-1553), que foi pupilo do poeta e que morreu em Ceuta, nas lutas contra os mouros, apenas com 17 anos.

Ganha hoje cada vez mais consistência entre alguns eruditos que se têm dedicado ao estudo da vida e obra do vate que o célebre soneto que a seguir se transcreve, além de outros poemas explicitamente dedicados, terá sido consagrado à memória do jovem fidalgo.


Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.


Passemos, pois, aos factos.

A primeira publicação conhecida sobre a vida de Camões, é de Pedro de Mariz (1550-1615). Com o título “Ao Estudioso da Lição Poética”, é uma espécie de prefácio à primeira edição de Os Lusíadas (1613).

Manuel Severim de Faria (1584-1665), Cónego da Sé de Évora, publica em 1624 um Vida de Camões, afirmando que se deve buscar na obra poética os vestígios da sua vida.

Ainda no século XVII, Manuel de Faria e Sousa (1590-1649) escreve duas biografias do poeta para as edições monumentais de Os Lusíadas e das Rimas. A primeira foi editada em Madrid em 1639; a segunda, estava pronta para impressão à data da morte do autor (1649) mas só foi publicada em Lisboa em 1685.

Estas biografias, ainda que quase contemporâneas do poeta, além de conterem elementos fantasiosos, suscitam mais interrogações do que fornecem esclarecimentos sobre a vida de Camões. E nelas há algo que sugere pretenderem os autores ocultar factos de que tendo conhecimento entendem preferível não mencionar.

No século XVIII, escreveu-se bastante sobre Camões, mas nada de novo veio a lume. Já no século XIX, João António de Lemos Pereira de Lacerda, 2º visconde de Juromenha (1807-1887), inicia a publicação de umas Obras Completas (1860-1869), de que saíram seis volumes. Deve-se ao visconde a determinação da data exacta da morte de Camões (1580 e não 1579, como era referido pelos anteriores biógrafos) e a descoberta da sua sepultura no convento de Sant’Ana.

Wilhelm Storck (1829-1905), eminente filólogo, publicou pela primeira vez em alemão a Vida e Obras de Luís de Camões, edição que viria a sair em versão portuguesa em 1897, com tradução e notas de Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925), investigadora célebre e a primeira mulher a leccionar numa universidade portuguesa, a de Coimbra.

Desde então, muitos têm sido os livros publicados sobre Camões, a sua vida e a sua obra, oscilando entre a investigação erudita, a investigação fantasiada e o romance: Teófilo Braga (Camões e o Sentimento Nacional, 1891; Camões, Época e Vida, 1907), José Maria Rodrigues (Fontes dos Lusíadas, 1905), Oliveira Martins (Camões, 1872, revisto em 1891), Augusto Epifânio da Silva Dias, Joaquim Lourenço de Carvalho, A.J. Costa Pimpão, Aquilino Ribeiro, Américo da Costa Ramalho, Aníbal Pinto de Castro, Campos Júnior, António Sérgio, Hernâni Cidade, António José Saraiva, José Hermano Saraiva, Jorge Borges de Macedo, Jorge de Sena, Aguiar e Silva, Vasco Graça Moura, etc., etc., para não falarmos de Almeida Garrett ou de Antero de Quental.

Tem sido pacífico entre os estudiosos que Camões serviu como criado, escudeiro ou preceptor em casa de D. Francisco de Noronha, 2º conde de Linhares e de sua mulher D. Violante de Andrade. Sobre a fidalguia de Camões apenas é mencionada a expressão “cavaleiro-fidalgo” no alvará em que o rei, em 1572, lhe concede uma tença de quinze mil reis anuais pelo período de três anos. Mas nos alvarás seguintes (a tença foi renovada) de 1575, 1576, 1578 e 1582 (este já depois da sua morte, a pedido da madrasta) a expressão desaparece surgindo tão só o nome “Luís de Camões”. Só num alvará de 1585 se diz “Luís de Camões, cavaleiro da minha casa” mas não “cavaleiro-fidalgo” o que é diferente.

A vida atribulada de Camões tem sido tratada pelos especialistas já referidos, que igualmente se debruçaram sobre a obra, que, sabemo-lo hoje, retrata aquela, ainda que num registo poético.

Mas apesar dos esforços desenvolvidos, continua a saber-se muito pouco sobre os anos que Camões passou em Portugal, no norte de África ou na Índia e Orientes. Pelo menos, as certezas são poucas, as hipóteses muitas. Não sabemos onde nasceu e onde exactamente morreu (em Lisboa) e algum tempo após a sua morte, desconhecia-se onde fora sepultado.

Constatou-se depois que o fora na Igreja de Santa Ana, mas só anos mais tarde D. Gonçalo Coutinho lhe mandou fazer sepultura própria, em campa rasa, com este epitáfio: «AQUI JAZ LUÍS DE CAMÕES. PRÍNCIPE DOS POETAS DO SEU TEMPO. VIVEU POBRE E MISERAVELMENTE E ASSIM MORREU, NO ANO DE 1579. ESTA CAMPA LHE MANDOU AQUI POR D. GONÇALO COUTINHO. NA QUAL SE NÃO ENTERRARÁ PESSOA ALGUMA». A notícia da morte foi tão pouco notada que até o ano indicado está errado. Camões morreu em 1580 e não em 1579. A igreja foi parcialmente destruída pelo terramoto de 1755 e nas escavações efectuadas no local em 1858 encontraram-se uns ossos (mas não a lápide) que se supôs serem os de Camões. Quando em 1880, em momento de grande exaltação patriótica, se procedeu à trasladação para o Mosteiro dos Jerónimos subsistiu a dúvida (que permanece) se os restos mortais depositados no Mosteiro são efectivamente de Camões. Mas neste caso é o símbolo que importa.

À morte de Camões ainda sua madrasta era viva e o poeta vivia com um escravo jau (porque natural de Java), de nome António, que teria trazido da Índia e que, presumivelmente o sustentava, pedindo esmola para ele.

Camões serviu desde muito cedo em casa de D. Francisco de Noronha (1507-1574), futuro 2º conde de Linhares, e de sua mulher D. Violante de Andrade (filha de Fernão Álvares de Andrade, que foi tesoureiro-mor e pertenceu ao Conselho de D. João III). D. Francisco era o 5º filho do 1º conde de Linhares, D. António de Noronha (1464-1551), que era filho do 1º marquês de Vila Real. Do seu casamento (cerca de 1510) nasceram 13 filhos e filhas e mais uma filha fora do casamento, isto segundo a actual genealogia oficial. Sustentam alguns autores que houve ainda mais uma filha dentro do casamento, D. Joana, isto segundo D. António Caetano de Sousa (1674-1759), autor da História Genealógica da Casa Real, que menciona duas filhas com o nome de Joana. A primeira teria sido enviada para África e teria “morrido no mar”. Mais tarde, os pais voltariam a dar o nome de Joana a uma outra filha, a décima na ordem cronológica. Porquê?

Os autores desta tese defendem que Camões teria tido uma paixão (correspondida) por sua ama D. Violante (uns dez anos mais velha), que teria tido início quando o poeta, ainda quase imberbe, entrara ao serviço da casa. Camões ter-se-ia apaixonado depois pela filha da sua patroa, a referida D. Joana, que por isso teria sido enviada para África, quiçá devido ao ciúme da mãe.

Ao longo dos anos, e analisando a obra lírica, têm-se encontrada referências susceptíveis de provar a paixão de Camões por Violante ou por Joana, ou ainda por Natércia, Catarina, Dinamene, ou mesmo pela Infanta D. Maria, e outras que nos dispensamos de citar. Como em tudo, ou quase, na vida de Camões, não existem certezas quanto a estas paixões ou suas destinatárias. Só as explícitas dedicatórias ao filho primogénito dos condes de Linhares, D. António de Noronha, aquele que morreu em Ceuta com 17 anos e que foi pupilo de Camões, permitem enxergar uma afeição especial, que poderia não ser apenas um exercício literário.

Na altura em que Camões terá privado mais de perto com D. António, teria este 14 ou 15 anos e o poeta uns 26 ou 27. É inquestionável que os ligava uma forte amizade.

O soneto seguinte, dedicado a D. António, após ter conhecimento da sua morte em Ceuta (29 de Abril de 1553), é um exemplo de uma eventual paixão pelo jovem, numa altura em que as letras não permitiam aos poetas que fossem mais explícitos:


Em flor vos arrancou, de então crescida
(Ah! senhor dom António!), a dura sorte,
Donde fazendo andava o braço forte
A fama dos Antigos esquecida.

Uma só razão tenho conhecida,
Com que tamanha mágoa se conforte:
Que, pois no mundo havia honrada morte,
Que não podíeis ter mais larga a vida.

Se meus humildes versos podem tanto
Que co desejo meu se iguale a arte,
Especial matéria me sereis.

E, celebrado em triste e longo canto,
Se morrestes nas mãos do fero Marte,
Na memória das gentes vivereis.


Também a Écloga V é dedicada a D. António de Noronha:


A quem darei queixumes namorados
Do meu pastor queixoso e namorado,
A branda voz, suspiros magoados,
De quem serão seus males consolados?
Quem lhe fará devido gasalhado?
Só vós, Senhor formoso e excelente,
Especial em graças entre a gente.

................................


Igualmente este soneto, dedicado a um jovem cavaleiro morto em combate, tem indubitavelmente como destinatário o mesmo D. António:


Alma gentil, que à firme Eternidade
Subiste clara e valerosamente,
Cá durará de ti perpetuamente
A fama, a glória, o nome a saudade.

Não sei se é mor espanto em tal idade
Deixar de teu valor inveja à gente,
Se um peito de diamante ou de serpente,
Fazeres que se mova a piedade.

Invejosas da tua acho mil sortes,
E a minha mais que todas invejosa,
Pois ao teu mal o meu tanto igualaste.

Oh! ditoso morrer! sorte ditosa!
Pois o que não se alcança com mil sortes,
Tu com uma só morte o alcançaste!


* * * * * 


Comecei a escrever este texto há alguns meses. Devido a outros afazeres, fui obrigado a interrompê-lo, não tendo podido retomar até agora a investigação que me propusera efectuar. Assim, e para que ele não fique totalmente no olvido, já que ignoro quando poderei concluí-lo, resolvi proceder hoje,  Dia consagrado a Camões, à sua publicação.


Túmulo de D. António de Noronha


Acrescentarei apenas que D. António de Noronha está sepultado no Convento do Beato, como quase toda a sua família. A história dos descendentes do 2º conde de Linhares, especialmente de sua filha D. Joana, e onde se poderão encontrar elementos que corroborem a tese aqui expendida, ainda que contrariada pela ortodoxia oficial, da paixão do Poeta pelo seu discípulo (uma atracção perfeitamente natural, ontem como hoje), constitui matéria a que me dedicarei oportunamente.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

EDUARDO GALEANO E JEAN ZIEGLER

Reflexões de dois homens esclarecidos:

SALAZAR E PASSOS COELHO


A propósito da comparação, efectuada por D. Januário Torgal Ferreira, entre Passos Coelho e o Doutor Salazar:

07
Jun 12

Por josé simões, às 22:45


Não resisto a transcrever, com a devida vénia, este post do blogue "DER TERRORIST":





O velho, porque sempre foi velho desde a idade de ser novo, de Santa Comba Dão era muito menos básico, dito de outra forma, muito mais inteligente. E tinha António Ferro. Pedro Passos Coelho tem Miguel Relvas. Et pour cause…

[Na imagem Salazar com António Ferro no lado direito da fotografia]

quinta-feira, 7 de junho de 2012

A "REVOLTA CULTURAL"



Segunda relata o "Diário de Notícias", o cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo,  «apelou hoje aos líderes europeus para que mantenham a dignidade da pessoa humana no centro da resposta à crise, e defendeu que a solução só será encontrada com uma "revolta cultural"». 

Durante a homilia da missa da festa do Corpo de Deus, na Sé de Lisboa, em que estiveram presentes representantes europeus das igrejas católica e ortodoxa, que participam no III Fórum de Diálogo entre as Igrejas, o cardeal-patriarca afirmou que «com a adulteração cultural que se tem realizado, no centro da qual deveria estar a pessoa humana na sua dignidade e na sua vocação de fraternidade, sem uma revolta cultural, a Europa poderá encontrar soluções precárias, mas não a solução". 

Também o cardeal-arcebispo de Budapeste e presidente da Comissão das Conferências Episcopais, Peter Erdo, presente na cerimónia, associou-se às palavras de D. José Policarpo, declarando: «Estamos convictos de que a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa têm unanimidade na forma de olhar para a actualidade. Encontrámo-nos para falar da crise económica e da pobreza na Europa. Não somos especialistas em economia, mas antes de qualquer proposta técnica queremos partir da expectativa da fé e antes de propor princípios de moral, temos que olhar para a realidade».

Começa a ser visível o mal-estar dos dirigentes das igrejas cristãs na Europa relativamente à situação que se vive no continente e à ineficácia das políticas aplicadas. O próprio Papa já se referiu com veemência ao problema e só a insanidade de alguns políticos, capitaneados pela luterana Angela Merkel, tem levado ao protelamento das medidas indispensáveis para colocar o homem, e não o dinheiro, no centro das preocupações internacionais. 

É que a revolta cultural, agora preconizada por D. José Policarpo, poderá degenerar em revolta tout court, se não forem adoptadas providências, com a urgência que a situação reclama.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

RAY BRADBURY


Morreu ontem em Los Angeles, com 91 anos, o escritor norte-americano Ray Bradbury, autor de ficção científica (Fahrenheit 451) e de fantasia (Martian Chronicles), entre numerosos livros. Intitulava-se um "escritor de ideias" e costumava dizer: «A ficção científica é uma representação do real, a fantasia é uma representação do ilusório». No início da sua carreira teve o apoio do escritor britânico Christopher Isherwood.

Leitor insaciável e apaixonado por livros, o seu romance Fahrenheit 451 (onde os livros são queimados - o título refere-se à temperatura a que o papel arde), constituiu um extraordinário sucesso, está traduzido em português e foi adaptado ao cinema por François Truffaut em 1966.

Muito céptico em relação às novas tecnologias, que aliás prediz nos seus livros, exprimiu sempre as suas dúvidas em relação ao valor da internet na sociedade e recusou que a sua obra fosse convertida em e-books. «Temos já demasiadas máquinas», costumava dizer. E tinha razão.

Pode ler-se aqui uma notícia circunstanciada da vida e obra deste mestre da ficção científica que não chegou a ganhar o Pulitzer, mas recebeu uma citação do mesmo em 2007 "for his distinguished, prolific and deeply influential career as an unmatched author of science fiction and fantasy.”.


PHILIP ROTH



Foi anunciado em Oviedo que o escritor americano de origem judaica Philip Roth foi galardoado com o prémio "Príncipe de Asturias" 2012.

Segundo o "EL PAÍS", Roth, que recebeu a maioria dos mais importantes prémios literários à excepção do Nobel, é considerado, de acordo com o júri, um dos últimos romancistas vivos da estirpe dos grandes nomes da narrativa norte-americana da segunda metade do século XX, na tradição de John dos Passos, Scott Fitzgerald, Faulkner, Hemingway, Bellow ou Malamud.

Autor de vasta obra (muitos dos seus livros encontram-se traduzidos em português), Philip Roth (n. 1933) tem explorado numerosos temas, desde a Grande Depressão à Segunda Guerra Mundial e ao Macarthismo. Com a publicação de Portnoy's Complaint (1969), tornou-se uma das referências imprescindíveis do panorama literário universal.

terça-feira, 5 de junho de 2012

ELEIÇÕES SEM DEMOCRACIA



O intelectual tunisino Larbi Sadiki publicou recentemente um oportuno e exaustivo livro sobre a relação que há entre democracia e eleições: Rethinking Arab Democratization: Elections Without Democracy. Trata-se de um estudo editado pela primeira vez em 2009 e agora actualizado com as revoluções da chamada Primavera Árabe.
Analisa o autor a situação no Mundo Árabe, mas temos de convir que o estudo se aplica a muitos outros países, aliás à maior parte dos países, incluindo obviamente a Europa e a América, já para não falar da África e da Ásia.

Nos últimos anos tem sido salientada a realização de eleições, tanto quanto possível livres, como demonstração do funcionamento dos regimes democráticos. Puro engano. A esse respeito, já tive ocasião de publicar um post, em que transcrevi uma entrevista de Jacques Rancière ao Nouvel Observateur e onde aquele filósofo francês tece pertinentes questões sobre a matéria.

A democracia não se esgota em eleições, nem estas, por mais fiáveis que sejam, constituem uma garantia de democracia. Para o confirmar, não precisamos de sair da Europa, nem sequer de Portugal. É da ciência política que a Democracia supõe a existência de partidos políticos, que se apresentam ao sufrágio dos eleitores com um programa que se propõem aplicar, caso obtenham votação maioritária e sejam chamados a formar governo. O que temos constatado, nestes quase 40 anos de regime dito democrático em Portugal, especialmente nos últimos anos, é que os programas eleitorais, por razões só explicadas a posteriori, nunca são integralmente concretizados, ou, o que é pior, a prática governativa acaba por ser precisamente o oposto daquilo que fora prometido antes da realização das eleições.

Não admira, por isso, que a taxa de abstenção aos actos eleitorais seja continuamente crescente. Os cidadãos, descrentes, prescindem de ir às urnas, pois já não confiam nas promessas dos políticos. Daí a pergunta, que muitos fazem, quanto à legitimidade democrática de um governo saído de umas eleições em que, por hipótese, se abstenham 70 ou 80 % dos eleitores. A descredibilização da classe política avança em marcha acelerada, em Portugal como em outros países da Europa, e não tardará o dia em que se coloque a questão: são os países europeus, onde se pratica o sufrágio universal, mais democráticos do que eram as chamadas democracias populares dos regimes comunistas? Esta a vexata quaestio.

Voltando a Larbi Sadiki e ao seu livro, recorda o autor que na Tunísia e no Egipto se realizaram nas últimas décadas eleições presidenciais, legislativas e autárquicas. Embora sofrendo de todos os condicionalismos dos regimes vigentes e da pouca transparência dos actos, a verdade é que tiveram lugar. Não se pode, contudo, afirmar, que os regimes no poder eram democráticos.

É verdade que os actos eleitorais na Europa, ou pelo menos em grande parte dela, se processam em condições de liberdade formal. Mas poderá considerar-se democrático um governo que, sendo eleito mediante um programa, aplica políticas contrárias às prometidas logo que assume funções. Reside aqui a grande contradição, cujas consequências não têm sido devidamente avaliadas, uma vez que esse governo não pode ser removido (a não ser à força) até à realização de outro acto eleitoral.

Não fazia mal a ninguém que todos os cidadãos, a começar pelos políticos, dedicassem uns minutos de atenção a esta matéria.

domingo, 3 de junho de 2012

AS CRÍTICAS DO GENERAL

General Loureiro dos Santos


A propósito do seu novo livro Forças Armadas em Portugal, o general Loureiro dos Santos, que foi ministro da Defesa Nacional e chefe do Estado-Maior do Exército, concedeu duas importantes entrevistas à "Visão" e ao PÚBLICO.

Entre as muitas considerações que teceu, e cuja leitura se torna imperativa, afirma o general que o nosso grande objectivo estratégico é criar condições para sairmos da União Europeia quando isso nos for possível. Sem pretender fazer processos de intenção, julgo que Loureiro dos Santos pensa que a União é um cadáver adiado (que não procria) e que está destinada a uma próxima desagregação, como referi aqui. Considera ainda o general que a Alemanha não possui "espaço" para ter fronteiras defensáveis «e procura fazer com que as suas fronteiras sejam nas costas marítimas da Europa. Tentou isso duas vezes pelas armas sem o conseguir. Não digo que seja uma intenção deliberada, mas a crise das dívidas soberanas dá-lhe essa oportunidade. Se encontrar uma solução em que junte num bloco económico todos os países europeus (como é o país mais poderoso será sempre a voz mais importante) conseguiu salvaguardar o tal interesse permanente. Não pelas armas, mas em termos económicos. Não sei é se a maneira como está a agir lhe permitirá fazer isso. Sente-se que, em termos políticos, certos países europeus, os que lhe garantem as praias, estão a ficar zangados.»



Sobre a actuação do Governo, designadamente na pasta da Defesa, o general dá-lhe 10 (em 20), o que, convenhamos, é uma nota muito baixa após um ano de funções. Critica também severamente o ministro das Finanças, dizendo que os ministros são uma "caixa de correio" para Vítor Gaspar. «Para se fazer alguma coisa no Exército, o chefe de Estado (dos Estados Maiores, entenda-se) tem de propor ao ministro. Mas o ministro também não tem autonomia. Tem de pedir ao ministro das Finanças. O que é que acontece? Claro que não é o ministro das Finanças, é um funcionário de quinta ordem nas Finanças que vai decidir se uma determinada questão, que está autorizada e orçamentada, vai ser posta em execução pelo ministro da Defesa! É uma coisa que não lembra... Enfim, não digo mais nada para não dizer uma asneira! O ministro das Finanças não confia nos outros ministros...».

Conhecendo-se a ligação muito próxima entre o general  Loureiro dos Santos e o general Ramalho Eanes, pode admitir-se que o primeiro, sem prejuízo da sua autonomia de pensamento, dê voz a algumas preocupações que Eanes não quer, não pode ou não deve agora manifestar.

É evidente o mal-estar que reina nas Forças Armadas, e isto não só por questões salariais. As Forças Armadas que são, por definição, a reserva moral da Nação, têm assistido com a maior perplexidade às decisões tomadas pelos gestores políticos nos últimos anos. Este clima não é exclusivo de Portugal, antes é uma constante na maior parte dos países europeus. Mas há que reconhecer que não sendo todos os militares um exemplo de cultura, inteligência e honestidade, é ainda na instituição castrense que se encontram os padrões mais elevados de sentido cívico, numa altura em que a Europa é governada por um  bando de sicários, gente medíocre, ambiciosa, venal, que não hesita na adopção das mais torpes decisões, desde que elas satisfaçam os seus interesses imediatos.

Carece, assim, o país, e a Europa, de uma Regeneração, que será tanto mais dolorosa quanto mais tardar.

Concluiria com Fernando Pessoa, na Mensagem:

Ninguem sabe que coisa quere,
Ninguem conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ancia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!

Valete, Fratres.