domingo, 8 de abril de 2012

O CAIS DO SODRÉ JÁ NÃO É O QUE ERA


Segundo o PÚBLICO, «o Cais do Sodré mudou e os moradores não estão a gostar». Como eu os compreendo! Com o barulho até de madrugada e a porcaria pelo chão, o Cais do Sodré, em nome do "progresso", está a transformar-se num novo Bairro Alto, donde grande parte dos habitantes teve de fugir.

Diz-se que antigamente o Cais do Sodré tinha má fama. Depende do que se entenda por "má fama". Havia normalmente sossego e discrição nas ruas. Algumas "meninas" e também alguns "meninos" e soldados e marinheiros interpelavam, mais com olhares do que com palavras, os cavalheiros que passavam, a horas ainda razoáveis, e acompanhavam-nos a um poiso adequado, normalmente a velha pensão do Largo de São Paulo, creio que há muito tempo encerrada, e que foi um templo tranquilo para os "amantes sem dinheiro" (ou com pouco), como diria Eugénio de Andrade num poema.

Desde o começo da globalização, tudo mudou. As "meninas", que já eram nessa altura umas matronas, ou estão mortas, ou transformaram-se numa ruína ambulante que ninguém arrisca a levar para a cama. As novas no ofício (a mais antiga profissão do mundo), frequentam outros locais, que melhor se adequam a "senhoras" que adquiriram uma "posição" por força dos euros dos novos-ricos do capitalismo neo-liberal. Militares fardados em Lisboa é coisa que também já não existe, e os "meninos", que nessa altura já eram mais velhos que os conscritos, ou desaparecerem por força da idade, ou, nos casos mais felizes, encontram-se e convivem ainda, os que conservaram dois palmos de cara e de corpo, com "os senhores" que então os "desenrascavam".

Não conheço, nem pretendo conhecer, a nova fauna que deambula pelo Cais do Sodré, nesta Lisboa que a Câmara Municipal, na mais profunda ignorância das realidades sociais e da alma do povo português, pretende equiparar às outras metrópoles europeias, também elas (oiçam-se os residentes) cada vez mais decadentes e desertas, com a excepção de alguns guetos de "divertimento obrigatório", sujeitos, obviamente, às regras comunitárias de Bruxelas ou (quem sabe) da própria senhora Merkel, que tem agora uma palavra a dizer sobre todas as matérias que à União concernem.

Há meio século, Lisboa, no centro ou nos bairros periféricos, era uma cidade alegre e movimentada, sem barulhos e com segurança, mesmo à noite, onde era possível "curtir" desde que se mantivessem as aparências mínimas tão caras ao pensamento de Salazar (e da maior parte dos portugueses): «o que parece é»; logo, se não parecesse, não era "pecado", e ninguém levava a mal.

Em nome da liberdade e da democracia, vivemos hoje espartilhados por regulamentos e normas inimagináveis, tristes, inquietos, angustiados (embora o disfarcemos) e, ainda por cima, falidos e mal pagos, sabe-se lá se por causa dessa fúria legislativa que se apossou do governo europeu e dos governos nacionais, se por causa das regras do político e moralmente correcto que as sociedades "civilizadas" impõem aos seus cidadãos.

Excluindo os guetos a que me referi, Lisboa à noite é hoje uma cidade praticamente morta, abandonada, entregue a uns quantos delinquentes que tornam inseguro o mais inofensivo passeio para quem se aventure nas suas ruas. A mudança de paradigma de vida, exaltada e propagandeada até à exaustão pela comunicação social e pela publicidade enganosa, encarcerou os lisboetas (excluo os possuidores das "novas" fortunas) nas suas casas, em frente de um televisor ou (em menor percentagem) de um computador, como se as relações humanas fossem coisa para o lixo quando comparadas com o último grito das mais recentes tecnologias.

Recordo a Avenida da Liberdade, verdadeiro "Passeio Público", que se mantinha animada noite adentro, após o fim da 2ª sessão das revistas do Parque Mayer, um espaço agora morto e enterrado. E lembro as bichas (ambas) para as bilheteiras dos cinemas que se foram extinguindo, o Éden, o Tivoli, o Condes, o Odéon, para já não falar do antigo Teatro Avenida. Até mesmo o Olympia, o velho cinema de reprise (ponto de encontro da "melhor" e da "pior" sociedade lisboeta), adquirido não sei porquê nem para quê pelo Filipe La Féria, se encontra hoje de portas fechadas, definitivamente condenado.

Apesar das solicitações dos tempos modernos, Lisboa podia ter conservado uma parcela das características que a tornavam, na opinião de muitos estrangeiros, uma cidade sui generis, que os atraía e encantava. Mas não. Ano após ano, mercê de uma gritante falta de visão das sucessivas  edilidades, e também da incontornável especulação imobiliária, a cidade exaltada por Cesário Verde e Fernando Pessoa tornou-se na pálida sombra de si mesma, que nenhuma Ode Marítima pode já resgatar.

A proliferação de centros comerciais, dentro da própria cidade, levou ao desaparecimento das lojas e cafés tradicionais, substituídos por agências bancárias e afins, esses lugares de culto do mundo dos nossos dias. O incêndio do Chiado, e a sua penosa e inconcebível reconstrução,  foi o toque de finados de uma zona aonde restam, como testemunhos de uma época passada, o Teatro de São Carlos, a Basílica dos Mártires, o Grémio Literário, a Livraria Bertrand e a Brasileira, onde Pessoa, imortalizado no bronze frente à porta, não poderia hoje escrever no interior qualquer dos seus poemas.

Comecei por falar do Cais do Sodré, passei pela Avenida e já estou no Chiado. É tempo de terminar. Acrescentarei tão só que as episódicas manifestações de cultura e/ou divertimento que se realizam em Lisboa, públicas ou privadas, não passam de epifenómenos que em nada alteram o panorama sombrio da vida quotidiana da capital do país. Antes, vivia-se habitualmente, sem que isso significasse necessariamente uma aurea mediocritas. Vive-se hoje artificialmente. De facto, prefiro a primeira forma.

4 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns ao blogger pela sua clarividência. De facto, essa Lisboa que nós tanto amámos, está morta e definitivamente enterrada. Os novos pensadores autárquicos e as "novas morais", tudo arrasaram e cilindraram, como se os males da sociedade, com essa tomada de posição, se tivessem miraculosamente eclipsado. Também a (des)comunicação social teve aí um papel preponderante, através de alguns dos seus elementos que, cheios de podres até ao cimo dos cabelos, vieram para a praça pública pregar uma moral que eles próprios jamais praticaram em causa própria.
Estamos sitiados nas nossas próprias casas, pois o espaço público está verdadeiramente contaminado por toda a espécie de lixo.

Anónimo disse...

Eu tb pela primeira vez estou de acordo consigo.
Faltou apenas fazer referenciar o
MARUJO PORTUGUES, que a nossa querida
HERMINIA SILVA imortalizou no fado
o marujo portugues................
quando ele passa o marujo portugues. no seu alcache, parece
uma pomba branca
Mudam-se ostempos e .................nada mais a dizer

Anónimo disse...

Felicito o autor porque penso exactamente como o senhor. Lisboa era uma das cidades mais alegres e hospitaleiras da Europa. Os bas-fonds de Lisboa eram dos mais seguros, divertidos e bem sortidos em relação aos outros países. A vida nocturna de Lisboa era tranquila e gratificante, os locais de encontro, da rua a certos bares proliferavam.

Esqueceu-se o autor de mencionar um templo de convívio marítimo, o Bar Rei-Mar, na rua das Pretas, por onde passaram, durante décadas, sucessivas incorporações de marinheiros e várias gerações de intelectuais e até de políticos da nossa praça.

Hoje tudo é triste e cinzento. A Europa (e o mundo) globalizada, retirou todo o encanto e sortilégio a Lisboa e a outras capitais europeias. Tudo se standardizou e a implementação do pensamento único reduziu a nada o espírito aventureiro dos portugueses.

Celebra-se hoje o domingo de Páscoa, mas Lisboa não ressuscitará. Se escrevesse em sexta-feira santa, diria, com mais propriedade: Tudo está consumado. Consumado e consumido (nos dois sentidos da palavra).

José Gonçalves Cravinho disse...

Eu,um simples operário emigrante na Holanda desde 1964 e já velho
(88anos),concordo em parte com quem escreveu o texto,embora me dê a impressão que o autor tem saudades do passado salazarento.
O Cais do Sodré e o Bairro Alto foram cenário de zaragatas com a marinagem inglesa e americana que se julgava superior,mas que também levava nas trombas.Em todo o caso direi que os pulhas,os velhacos,os trafulhas,os cínicos que sabiam como tirar o melhor partido da Ditadura clerical-fascista do Estado Novo,agora em liberdade e democracia e com o liberalismo económico em que cada qual se safa como pode,ÊLES e seus comparsas,
«filhos da mesma escola»,muito melhor sabem como tirar o melhor partido desta Situação.Sòmente os bem intencionados ou os palermas como eu,é que foram,são e serão sempre as eternas vítimas da Pulhice Humana.E não esquecer que ÊLES estão a vingar-se do 25 d'Abril.
Com populismo e demagogia,
muita mentira,verdade parece,
mas em liberdade e democracia,
o povo tem o Governo que merece.