quarta-feira, 20 de abril de 2011

A FILHA DO REGIMENTO



Juan Diego Flórez em La Fille du régiment, de Donizetti (Wiener Staatsoper - 2007)


Acabei de ler Hotel de Dream (2007), de Edmund White, na tradução francesa. White, um dos mais francófilos escritores norte-americanos, pode ler-se perfeitamente em francês. Aliás, devem-se-lhe notáveis biografias de autores franceses: de Jean Genet (ainda hoje a biografia de referência), de Marcel Proust, de Rimbaud. 

Este livro de White, sobre o romancista, poeta e jornalista americano Stephen Crane, que morreu tuberculoso aos 28 anos em 1900, que foi amigo de Henry James e de Joseph Conrad e que é hoje praticamente ignorado, pelo menos na Europa, contém uma história, supostamente escrita por Crane (quiçá realmente) e que é, afinal, o objecto do livro..



Essa história, que anda à volta de um jovem prostituto nova-iorquino por cuja vida Crane se interessou, regista aspectos verdadeiramente curiosos em torno do círculo frequentado pelo rapaz, Elliot, permitindo a White deter-se em excitantes pormenores tão do seu agrado.

Não resisto à tentação de transcrever algumas linhas da fala de uma das personagens masculinas, que me proporcionou a oportunidade de apresentar no início deste post a célebre ária de Donizetti:


«Comme j'aime les soldats! J'en ai rencontré un à l'entrée du camp et je lui ai déclaré que j'admirais ses muscles, son cou hâlé, sa large poitrine et sa voix profonde. J'ai ajouté que j'étais prête à défaillir - de fait j'avais trébuché - en présence d'une virilité au caractère si affirmé. Il rougi comme un gosse et d'une voix étranglée m'a demandé mon nom. "Jennie June", ai-je répondu jovialement. Il m'a demandé alors avec un début de sourire si j'étais un garçon dans des vêtements de fille. Je me suis bouché les oreilles et j'ai agité furieusement la tête de droite à gauche: "Pas tant de ces horribles questions!" Puis j'ai ajouté en gazouillant en langage enfantin: "Je ne suis ni chair ni poisson. Suis un p'tit bébé bavoteux, un tout p'tit bébé geignard". Il a ri gaiement et a dit: "Peut-être que le bébé aimerait un biberon. Quelque chose à sucer? Il a si faim, le bébé." J'ai été enchanté de voir comme il perdait peu de temps - car j'ai toujours soutenu que l'intelligence consiste à remettre très vite sa montre à l'heure, et qui pouvait battre de vitesse le caporal Courtney?»
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«Je suis vite devenue la fille du régiment (...), je n'avais qu'à me pointer à l'entrée des casernes, les yeux fardés, dans mon chemisier quasi transparent et mes pantalons bouffants qui révélaient l'ampleur de mes hanches.»

Acrescentarei que a citação acima não passa de uma mera curiosidade, e que este livro de White, aliás como toda a sua obra, é uma profunda reflexão sobre os sentimentos (e os pressentimentos) do homem, sobre as inquietações do espírito, sobre o significado da vida. O livro, não sendo uma biografia de Crane, toma como pretexto os últimos tempos da vida do escritor, já muito doente, para o pôr a ditar à mulher a história de Elliot, o romance que afinal gostaria de ter escrito mas que a morte o impedirá de concluir. Porém, nem tudo é criação literária neste texto de White, já que Crane, segundo testemunhos da época, conheceu realmente o rapaz Elliot. O resto é efabulação, ou talvez não.

2 comentários:

Anónimo disse...

Ainda que o excerto que cita não seja exactamente "my cup of tea",parabens pela excelente reprodução da capa. E as grandes biografias do White,são realmente de muita qualidade.

Anónimo disse...

Magnífica articulação entre o livro e a ópera, pelo que não têm a ver e pelo que eventualmente possam ter.

MAIS UMA VEZ MAGNÍFICO POST.