quinta-feira, 24 de junho de 2010

COUTO VIANA (II)




Publicado ontem por Eduardo Pitta, no blogue "Da Literatura" e republicado por João Gonçalves, no blogue "Portugal dos Pequeninos". 


Passo a re-republicar:


António Manuel Couto Viana, poeta, contista, dramaturgo, memorialista, fundador (com Alberto de Lacerda e David Mourão-Ferreira) da Távola Redonda, morreu no passado dia 8. No dia 16, o PS agendou um projecto de voto de pesar pela sua morte, subscrito na véspera por doze deputados socialistas. No dia 18, presumo que em reunião dos grupos parlamentares, a intenção de voto foi retirada depois dos protestos apresentados pelo BE e PCP, com o argumento, e vou citar terceiros, de que o Parlamento não podia homenagear quem combatera «ao lado das tropas nacionalistas, na guerra civil de Espanha.» Não imagino qual pudesse ter sido o contributo de um garoto na Falange: Couto Viana tinha 13 anos quando a guerra começou, e 16 quando acabou. Adiante.

O imbróglio surpreende-me a vários títulos. Em primeiro lugar, pela passividade dos doze subscritores, entre os quais se encontra um capitão de Abril (Marques Júnior) e pessoas com responsabilidades na área cultural. Em segundo lugar, pela indiferença da direita, que não foi capaz de pensar pela sua cabeça. Ninguém no PSD e no CDS-PP achou pertinente homenagear Couto Viana. Teria sido preferível um voto chumbado a voto nenhum. Pelos vistos, os gestos solitários, i.e., não conformes ao diktat partidário, estão reservados à aliança policial-parlamentar. A direita, que tanto barafusta com o monopólio literário da esquerda, mostrou-se incapaz de celebrar o mais corajoso dos seus. Têm vergonha de quê? Quanto ao silêncio dos media, estamos conversados. Couto Viana? Quem é esse gajo?

O assunto vem atrasado? Talvez venha. Mas só ontem à noite tive conhecimento dele. E ainda não me refiz do espanto.

Este episódio é uma vergonha. Conheci António Manuel Couto Viana quando era eu muito jovem. Acompanhei, um pouco à distância, a sua carreira cultural e a sua actividade poética. Recordo que no princípio dos anos 70, numa sessão que promovi no Teatro  Primeiro Acto de Algés, e para a qual convidara José Carlos Ary dos Santos e Natália Correia (não tendo esta comparecido à última hora devido a algumas pequenas desavenças que frequentemente mantinha com Ary), e tendo o José Carlos ficado senhor do palco, leu poemas de diversos autores e a certa altura gritou (cito de cor): «Agora vou ler um poema de um homem que é um fascista mas que é um grande poeta e não posso omiti-lo, o Couto Viana». E, com a truculência que lhe era habitual, Ary leu, ou melhor, declamou (é a palavra certa) um poema de Couto Viana. A arte sobrepondo-se à política. E Couto Viana, quaisquer que fossem as suas ideias, não era um criminoso. Os seus poemas falam por si e, a seu respeito, publiquei um pequeno post, no dia 9 de Junho, a propósito da sua morte.

Vi e falei pela última vez com António Manuel Couto Viana, no atelier do escultor Lagoa Henriques, em 27 de Setembro de 2006,  numa pequena sessão evocativa em memória de João Belchior Viegas, no primeiro aniversário do falecimento deste. O João Belchior fora companheiro de lides literárias do Couto Viana, da Fernanda Botelho, do David Mourão-Ferreira e de vários outros, estivera ligado à Távola Redonda e era um homem profundamente culto. Fora, durante a sua vida profissional, funcionário da Valentim de Carvalho, tendo a seu cargo toda a produção de Amália Rodrigues. Aliás, o actual director da Valentim de Carvalho, David Ferreira, filho de David Mourão-Ferreira e de Maria Eulália Valentim de Carvalho, é afilhado de baptismo de João Belchior. O João Belchior fazia parte de um pequeno grupo de gente ligada às artes e às letras que almoçava aos domingos com Lagoa Henriques num restaurante do Bom Sucesso e do qual faziam parte Eunice Muñoz, Isabel da Nóbrega, Carlos Amado, Gonçalo Couceiro, José Manuel dos Santos, José Sarmento de Matos, eu, e tantas outras pessoas cujos nomes de momento não me ocorrem, uns assíduos frequentadores dominicais, outros aparecendo espaçadamente, como o David Mourão-Ferreira, o Luís Francisco Rebello, a Olga Pratts, o Rui Vieira Nery, etc.,etc.

Nessa sessão, entre outro "oradores", Couto Viana recordou o espírito de  João Belchior, e falou das aventuras poéticas comuns. Já estava debilitado pelo problema de saúde que lhe seria fatal. Não voltei a vê-lo.

O episódio relatado por Eduardo Pitta é uma vergonha nacional. A Assembleia da República, cujo prestígio anda muito por baixo, ultrapassou-se em indignidade. O que pensarão os deputados de si-mesmos? Possivelmente nada.

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